quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021

Estante-altar

          Conforme os anos passavam ela ia aperfeiçoando algumas técnicas. Melhorou o traço do delineador, a pronúncia de “Côte d’Azur”, o sabor do refogado e, sobretudo, a organização dos livros.
Não era boa para organizar quase nada: nem agenda, nem armário, nem pensamentos, nem bolsas. Mas quando o assunto era a separação criteriosa de livros, poucos poderiam superá-la.
Aos 14 anos, já separava crônicas numa prateleira, romances em outra e poesia numa terceira. Aos 18, inaugurou a estante dos jurídicos. Aos 21, reparou que aquilo não era suficiente. Separou contos de crônicas, romance histórico de ficção, nacionais de estrangeiros. Aos 24, viu sua estante invadida por filosofia e história e decidiu livrar novas prateleiras para tanto. No ano seguinte, quis que os livros de bolso ficassem separados, porque aquela oscilação de alturas não era tolerável.
Foi aos 28 que ela decidiu que deveria haver uma estante-altar. Um lugar de honra, um posto soberano de adoração para seus brâmanes literários. A estante-altar precisava ser pequena para exigir algum martírio na seleção. Uma espécie necessária de autoflagelo.
Decidiu que as quatro prateleiras da estante-altar seriam ocupadas, de baixo para cima, por biografias, arte, romance e poesia. Começou a refletir, angustiada. Já pensava nos seus irrenunciáveis A dama das camélias, Do amor e outros demônios, Sentimento do mundo, O estrangeiro, O apocalipse dos trabalhadores. Pensou na terrível hipótese de Contos do nascer da Terra e Sagarana não se encaixarem em nenhum dos estilos escolhidos. Via Vinicius, Alberto Caeiro e Manoel de Barros acenarem afetuosamente para ela.
Lembrou-se das biografias de Kiki de Montparnasse e Elza Soares. Não tinha muita clareza sobre o que sentia. Se gostava tanto assim dos livros ou só das personagens. Pensou no imenso livro de fotografias da vida de Frida Kahlo, na coletânea de pinturas e esculturas de Botero, nas obras de Vermeer, de Dalí e de Tarsila do Amaral e nas fotografias de Man Ray. Não estava disposta a renunciar a absolutamente nenhum.
Estava nervosa com a estante, com a escolha e com a imensa responsabilidade que carregava nas costas desde então. Sabia que aquele era um projeto de renúncias (duras renúncias que teriam que ficar nas prateleiras de sempre em vez de usufruir da sonhada promoção). Refletiu durante algumas semanas e concluiu que precisava de tempo. A estante-altar permaneceria vazia por alguns meses.
Passada uma semana, a estante-altar serviu de apoio temporário para umas revistas velhas que deveriam ir para a sala de espera do consultório de sua tia. Poucos dias depois, colocou ali um saquinho de pano com o par de sapatos que precisava devolver para a prima. O rádio que precisava levar à assistência técnica. Uns papéis do banco que não tinha certeza se já podia jogar fora.
A estante-altar foi rebaixada a depósito de bens sem-teto. Os livros permaneceram seguros nas prateleiras antigas. Ela nunca deixou de pensar no assunto, embora até hoje ainda lhe falte coragem para tomar alguma atitude a esse respeito.

Ruth Manus, in Um dia ainda vamos rir de tudo isso

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