sábado, 13 de fevereiro de 2021

A vida e as aventuras de Robinson Crusoé (trecho inicial)

          Nasci no ano de 1632, na cidade de York, de uma família boa, embora não original daquela área, sendo meu pai um estrangeiro de Bremen, que se estabeleceu primeiro em Hull. Acumulou boa fortuna com o comércio e, deixando esse ofício, instalou-se depois em York, onde se casou com minha mãe, cuja família chamava-se Robinson, muito boa família daquela região, ao que devo meu nome de Robinson Kreutznaer; todavia, devido à corrupção costumeira das palavras na Inglaterra, somos hoje chamados, melhor, nós mesmos nos chamamos, e nos assinamos, Crusoé, como meus companheiros sempre me chamaram.
Tive dois irmãos mais velhos, um dos quais chegou a tenente-coronel de um regimento inglês de infantaria em Flandres, comandado inicialmente pelo famoso Coronel Lockhart, e foi morto na batalha perto de Dunquerque contra os espanhóis.
O que foi feito do meu segundo irmão, nunca vim a saber mais que meu pai ou minha mãe jamais saberiam do que ocorreu comigo.
Sendo o terceiro filho da família, e sem formação em nenhum ofício, desde muito cedo minha cabeça começou a se encher de pensamentos errantes. Meu pai, que era muito idoso, deu-me a devida quantidade de instrução, até onde geralmente chega a formação em casa e numa escola gratuita de província, e me destinava ao Direito; mas a mim não me satisfaria nada menos que seguir para o mar, e essa minha inclinação me opôs com tanta energia à vontade, ou melhor, às ordens do meu pai, e a todas as admoestações e persuasões da minha mãe e outros amigos, que parecia haver algo de fatal naquela propensão da Natureza, conduzindo diretamente à vida de infortúnios que mais adiante haveria de me caber.
Meu pai, homem sábio e grave, deu-me sérios e excelentes conselhos em oposição ao que antevia como meu destino. Chamou-me um dia de manhã a seus aposentos, aos quais estava confinado pela gota, e me cumulou de rogos afetuosos em torno do tema. Perguntou quais motivos além da mera inclinação pela vida errante eu tinha para deixar a casa paterna e a terra natal, onde podia ter certeza de um bom começo e da possibilidade de melhorar sempre minha posição recorrendo tão somente ao zelo e à diligência, que me valeriam uma vida airosa e confortável. Disse-me ele que eram homens de fortuna desesperada, por um lado, ou com fortunas superiores e cheias de aspirações, por outro, os que seguiam para o estrangeiro em busca de aventuras, tentando ascender à custa da iniciativa e tornar-se famosos em empreendimentos fora do caminho comum; que eu era de condição média, ou o que se pode chamar da camada superior dos homens inferiores, que ele descobrira por longa experiência ser a melhor posição do mundo, a mais adequada à felicidade humana, poupada dos sofrimentos e das asperezas, dos trabalhos e das dores da fração mecânica da humanidade, e dos embaraços que o orgulho, o luxo, a ambição e a inveja podem trazer para a camada superior. Disse-me que uma coisa bastava para avaliar a felicidade desse estado, a saber: que era sempre essa a condição de vida invejada por todos os demais; que muitas vezes os reis lamentavam os efeitos terríveis de terem nascido para os grandes acontecimentos, desejando na verdade terem nascido a meio caminho entre os dois extremos, a igual distância do pequeno e do grande; que muitos sábios afirmavam ser esse o justo padrão da verdadeira felicidade; e que ele rezava para nunca se ver às voltas com a pobreza nem com riquezas.
Garantiu-me que, observando esse princípio, eu haveria de descobrir que as calamidades da vida eram compartilhadas pelas camadas inferior e superior dos homens, mas que a posição intermediária sofria menos desastres e não era exposta a tantas vicissitudes quanto as partes superior ou inferior da humanidade. Não, não se via sujeita a tantos destemperos e desconfortos, fossem do corpo ou da mente, quanto os produzidos pela vida de vícios, luxo e extravagâncias, de um lado, ou de trabalhos forçados, necessidades ou dieta ruim ou escassa do outro, que provocam o próprio desconcerto como consequência natural desses modos de vida; que a situação intermediária na vida era a mais adequada a todo tipo de virtude e todo tipo de proveito; que a paz e a fartura eram as damas de companhia de uma fortuna intermediária; que a temperança, a moderação, a calma, a saúde e a sociedade, todas as diversões adequadas e todos os prazeres desejáveis, eram bênçãos destinadas às posições intermediárias da vida; que desse modo os homens passavam em silêncio e sem percalços pelo mundo, e o deixavam em conforto, sem o embaraço dos grandes trabalhos das mãos ou da cabeça, nem vendidos para uma vida de escravidão em troca do pão de cada dia ou acossados por circunstâncias complicadas, que roubam a paz da alma e o descanso do corpo; nem enfurecidos pela paixão da inveja nem pelo ardor secreto do desejo e da ambição de grandes feitos; mas em circunstâncias fáceis, numa calma deriva pelo mundo, experimentando os deleites da vida com comedimento e sem amargor; sentindo que são felizes, e aprendendo com a experiência de cada dia a ter dessa condição uma consciência sensata.
Depois disso, ele me pressionou o quanto pôde, e da maneira mais afetuosa, a não agir como um menino, a não me precipitar em provações de que a natureza e a condição de vida em que eu nascera podiam manter-me a salvo; que eu não tinha necessidade de sair em busca do meu pão; que ele me proveria a contento, e cuidaria de me introduzir no momento oportuno à situação na vida que acabava de me recomendar e que, se eu não me sentia à vontade e feliz no mundo, deviam ser apenas meus fados ou algum defeito que me prejudicava, e que ele não podia ser chamado a responder por mais nada depois de se desincumbir do seu dever de me advertir contra rumos que, ele sabia, só podiam me causar dano. Numa palavra, que assim como ele faria muito por mim caso eu ficasse e me estabelecesse na terra natal como ele recomendava, não desejava qualquer participação em meus infortúnios me encorajando a partir. E, para encerrar, disse que eu tinha o exemplo do meu irmão mais velho, com quem ele empregou o mesmo empenho de persuasão tentando impedir que partisse para as guerras dos Países Baixos, mas sem sucesso contra os desejos do jovem, que o levaram a entrar para o exército onde acabou morto; e embora, disse ele, jamais fosse deixar de rezar por mim, ainda assim queria me dizer que, se eu de fato persistisse naquela decisão insensata, Deus não haveria de me abençoar, e eu teria tempo de sobra mais adiante para refletir sobre o desacato a seu conselho quando não houvesse ninguém para me apoiar em meu restabelecimento.
Observei nesta última parte de seu discurso que ele foi realmente profético, embora imagine que meu pai não sabia ele próprio o quanto; disse que vi as lágrimas escorrendo abundantes por seu rosto, especialmente quando falou do meu irmão que havia sido morto; e quando falou que eu teria tempo para me arrepender, e ninguém para me ajudar, ficou tão comovido que interrompeu suas palavras, falando que seu coração estava tão embargado que não conseguiria me dizer mais nada.
Fiquei sinceramente tocado com esse discurso, e de fato ninguém poderia reagir de outro modo; resolvi não cogitar mais de viajar para o estrangeiro, e sim me estabelecer em minha terra, de acordo com a vontade do meu pai. Mas, ai de mim! Em poucos dias essa minha vontade desapareceu e, em suma, para prevenir que meu pai não tornasse a me importunar, dali a algumas semanas resolvi fugir da companhia dele. Todavia, não me precipitei como me incitava o primeiro calor da minha decisão, mas abordei minha mãe, num momento em que a achei mais cordial que de costume, e lhe disse que meus pensamentos estavam tão inteiramente voltados para ver o mundo que eu jamais conseguiria tomar qualquer outro rumo com suficiente decisão para seguir adiante, e que seria melhor meu pai me dar seu consentimento do que me obrigar a partir sem ele; que agora eu tinha dezoito anos, e já era tarde demais para me iniciar como aprendiz de algum ofício ou escrevente para algum advogado; que tinha certeza de que, fosse esse o caso, jamais conseguiria concluir a aprendizagem e certamente acabaria fugindo do meu mestre antes do prazo combinado, indo para o mar; e que, se ela falasse com meu pai para me deixar seguir numa única viagem ao estrangeiro, caso na volta eu não gostasse, nunca mais tornaria a embarcar, prometendo diligência em dobro para recuperar o tempo assim perdido.
Isso deixou minha mãe muito agitada. Disse-me estar convencida de que não surtiria efeito ela falar com meu pai sobre esse assunto; que ele sabia perfeitamente qual era meu interesse e jamais daria seu consentimento a alguma coisa que me prejudicasse; e que ela se perguntava como eu podia seguir pensando dessa maneira depois da conversa com meu pai e das expressões gentis e carinhosas que ela sabia ter ele usado comigo; e que, em suma, aquilo seria minha ruína, e não havia jeito; mas que eu podia ter certeza de que jamais iria obter o consentimento deles. E que, pela parte dela, não queria ter papel algum em minha desdita; e que eu jamais poderia afirmar que minha mãe dizia sim quando meu pai dizia não.
Embora minha mãe se recusasse a transmitir minhas palavras a meu pai, ainda assim, como mais tarde eu soube, contou a ele toda a conversa, ao que meu pai, depois de se mostrar muito apreensivo, disse a ela com um suspiro: “Esse rapaz podia ser feliz se ficasse em casa; mas se viajar para o estrangeiro será o infeliz mais desgraçado que jamais nasceu: não posso consentir”.
Foi só um ano mais tarde que finalmente fui embora, ainda que nesse meio-tempo tenha me obstinado na recusa a qualquer proposta de trabalho, perseverando em discussões frequentes com meu pai e minha mãe em que me queixava do quanto os dois persistiam numa oposição determinada ao que reconheciam como minha inclinação. Entretanto, num dia em que estive em Hull, aonde ia de tempos em tempos, e sem qualquer plano de escapar naquela ocasião; mas, dizia eu, quando me encontrava lá, um dos meus companheiros estava prestes a viajar por mar até Londres no barco de seu pai e convidou-me a ir com eles, com o atrativo geralmente usado com os novos marujos, a saber: que eu não precisaria pagar nada pela passagem. Não consultei de novo meu pai nem minha mãe, e nem sequer lhes mandei aviso, deixando que soubessem da nova como pudessem, sem pedir a bênção de Deus nem a do meu pai. Sem qualquer consideração das circunstâncias ou consequências, e em má hora, sabe Deus, no dia 1o de setembro de 1651, embarquei num navio que rumava para Londres. Nunca os infortúnios de um jovem aventureiro, creio eu, começaram mais cedo, ou duraram tanto quanto os meus. Assim que o navio se afastou de Humber o vento começou a soprar, e as ondas, a crescer da maneira mais assustadora; e, como eu jamais estivera antes no mar, senti a mais indescritível agonia do corpo, e o espírito aterrorizado. Agora eu começava a refletir a sério no que tinha feito, e a ver como era justo sofrer a sentença dos Céus por minha cruel partida da casa do meu pai e o abandono dos meus deveres. Todos os bons conselhos dos dois, as lágrimas do meu pai e as súplicas da minha mãe, ressurgiram em minha mente, e minha consciência, que ainda não se tornara calejada como haveria de se tornar, repreendia meu desdém àqueles conselhos e a quebra dos meus deveres para com Deus e meu pai.
Tudo isso enquanto a tormenta recrudescia, e o mar, pelo qual eu nunca antes tinha viajado, crescia muito, embora nada como mais tarde eu chegaria a ver; não, nem mesmo como o que veria poucos dias depois. Mas era suficiente para impressionar àquela altura a mim, jovem que fazia a primeira viagem e não sabia nada sobre o assunto. Eu imaginava que a próxima onda nos engoliria, e cada vez que o navio se precipitava para baixo, dando a impressão de que descia ao fundo de um poço ou nas profundezas do mar, achava que nunca mais tornaria à superfície; e em meio a essa agonia mental fiz muitas promessas e tomei muitas resoluções, que se aprouvesse a Deus poupar minha vida naquela viagem, que se eu tornasse a pisar em terra firme, voltaria diretamente para a casa do meu pai e nunca mais poria os pés num navio até o fim dos meus dias; que acataria os seus conselhos e nunca mais me exporia a provações como aquela. Agora eu via claramente o acerto de suas observações sobre a situação intermediária na vida; como ele vivia com conforto e facilidade todos os seus dias, sem jamais se ver exposto a tormentas no mar ou a problemas em terra; e resolvi que, como um verdadeiro Filho Pródigo arrependido, regressaria para a casa do meu pai.
Esses pensamentos sóbrios e sensatos persistiram enquanto durou a tempestade, e até um pouco mais; no dia seguinte, porém, o vento abrandou, o mar aquietou e comecei a ficar mais habituado a ele. Entrementes, passei o dia todo a cismar, pois ainda me sentia um tanto mareado; mas no fim do dia o céu clareou, o vento arrefeceu quase de todo e veio uma linda noite; o sol se pôs totalmente sem nuvens, e se levantou da mesma forma no dia seguinte; e havendo vento pouco, quase nenhum, com o mar liso e ensolarado, o panorama, em minha opinião, era o mais lindo que eu jamais contemplara.
Eu havia dormido bem à noite, e agora não me sentia mais enjoado, e sim muito bem-disposto, contemplando maravilhado o mar que se mostrava encapelado e assustador um dia antes, mas tão depressa conseguia parecer tranquilo e agradável. E agora, para que minhas boas resoluções não continuassem em vigor, meu companheiro, que na verdade me convencera àquela viagem, se aproxima de mim. “E então, Bob”, diz ele, dando-me um tapa no ombro, “como está se sentindo depois de tudo? Garanto que ficou com medo, não foi, ontem à noite, quando tivemos uma boa lufada de vento?” “Uma boa lufada, é como você diz?”, respondi eu. “Foi uma tempestade terrível.” “Tempestade, tonto?”, respondeu ele. “Você chama aquilo de tempestade? Ora, mas não foi nada! Basta estar num bom navio e em mar aberto, e nem cuidamos muito de rajadas de vento como aquelas. Mas você não passa de um marinheiro de água doce, Bob. Venha, quero preparar uma jarra de ponche, e vamos esquecer disso tudo. Viu como o tempo agora ficou lindo?” Para resumir essa triste passagem da minha história, fizemos como sempre fazem os marinheiros. O ponche foi preparado, e me embriaguei com ele. E no vício daquela noite afoguei todo o meu arrependimento, todas as reflexões sobre minha conduta anterior, e todas as resoluções para o futuro. Numa palavra, assim como o mar foi devolvido a seu estado liso e calmo no fim daquela tempestade, da mesma forma, tendo cessado a agitação dos meus pensamentos, ficando esquecidos meus medos e apreensões de ser tragado pelo mar, retornou a corrente dos meus desejos anteriores, e esqueci inteiramente os votos e as promessas que fiz em minha provação. Volta e meia eu tinha alguns intervalos de reflexão, e os pensamentos sérios, por assim dizer, logravam retornar; mas eu me livrava deles, despertei como depois de uma doença, e me entregando à bebida e à companhia logo controlei a recaída desses acessos, pois era esse o nome que lhes dava, e logrei em cinco ou seis dias a vitória mais completa sobre a consciência que qualquer jovem decidido a não se deixar incomodar por ela poderia desejar. Mas ainda me aguardavam novas provações; e a Providência, como geralmente opera nesses casos, resolveu me deixar totalmente sem desculpa. Pois se eu não considerei ter sido salvo naquela ocasião, a seguinte seria de tal monta que mesmo os piores e mais calejados dentre nós haveriam de admitir o tamanho do perigo de que fomos poupados.

Daniel Defoe, in Robinson Crusoé

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