Rua Professor Antônio Prudente, 211.
Talvez algum dia eu esqueça meu próprio endereço, mas desse eu sei
que não me esqueço mesmo que queira. Era lá. Descia na estação
São Joaquim, andava três quadras na Vergueiro e entrava na Antônio
Prudente com uma mochila nas costas.
Esse não era um bom ponto de encontro
para um grupo de amigas de 18 anos. Seria bem melhor se fosse o
Parque Ibirapuera ou o Chicohamburger. Mas era lá no A.C. Camargo,
belíssimo eufemismo para o hospital do câncer, que nós passávamos
nossas noites de sábado, nossas tardes de domingo e o entardecer
durante a semana. Era lá.
No início de 2006, nossos planos eram
bem diferentes. Imaginamos viagens nos fins de semana e noites
intermináveis com brigadeiro e DVD repetido. Não planejamos aquelas
entregas de comida pálida no quarto nem as jarras de contraste antes
das tomografias. Mas foi o que a vida trouxe e era lá que a gente
vivia nossos dias, porque nenhum dos nossos planos fazia sentido se
estivesse faltando uma. E se uma estava na Antônio Prudente, 211,
todas estavam na Antônio Prudente, 211.
Aprendemos todas as rotas. Algumas se
julgavam íntimas do hospital porque sabiam o roteiro
crachá-elevador-quarto. Mas esse não era o nosso roteiro.
Diariamente, extrapolávamos o limite de três visitantes. Sabíamos
passar pelos fundos do Rei do Mate, pegar a escada dos médicos e
subir sem crachá. O amor tem dessas marginalidades. Conhecemos
muitos andares, incluindo o da pediatria. Este era mais colorido e
mais dolorido que os outros. Os vizinhos doíam mais.
Conhecemos o cardápio do Rei do Mate de
trás para frente, até o cheiro do pão de queijo tornar-se
insuportável. Conhecemos cada um dos sofás da recepção. Os
restaurantes de comida a quilo do bairro. As calçadas nas quais
desmoronamos algumas vezes.
Nós chegamos quase a nos habituar. Nas
primeiras semanas, achamos que era um endereço passageiro. Nas
semanas seguintes voltamos contrariadas. Nas subsequentes já não
questionávamos mais. Levávamos material para estudar, esmalte para
pintar as unhas, panelas de brigadeiro e até um aparelho de DVD. Não
desistimos dos planos, apenas mudamos o endereço.
Há quem diga que a gente cresce quando
sai da casa dos pais. Eu digo que a gente cresce mais na rua
Professor Antônio Prudente, 211. Entramos ali meninas, preocupadas
com provas, sofrendo por amores não correspondidos, nos queixando da
demora do metrô enquanto esperávamos na plataforma. Saímos de lá
mulheres, preocupadas em permanecer de pé, sofrendo por não
podermos fazer mais nada, nos questionando sobre o sentido da vida.
Houve um dia em que eu corri para fora do
hospital e me sentei na sarjeta, chorando com os olhos, a garganta e
o estômago. Uma desconhecida que saía do hospital veio até mim,
colocou a mão no meu rosto e disse “O que quer que seja, uma hora
vai parar de doer”. Nunca esqueci seu rosto. Eu tinha 18 anos.
A Má passou seu último fim de semana
conosco. Sábado à noite, estávamos todos lá, não faltava
ninguém. Antes de sair, eu contei uma piada e ela riu muito. Nunca
consegui lembrar qual foi a piada. Dei um beijo nela e disse “Eu te
amo, nega”. A Má morreu num domingo, em 2007. Um mês antes, ela
tinha completado 19 anos. E houve festa.
Na rua Professor Antônio Prudente, 211,
nos despedimos. Escolhemos o vestido azul e o chapéu marrom para ela
se despedir dos demais. Entrei no carro dos meus pais naquele domingo
e já não tinha mais 18 anos. Não sei quantos anos eu tinha, nem
sei quantos anos eu tenho. Talvez 211.
Mas eu sei que a moça tinha razão. Já
não dói. Ainda é uma grande nuvem confusa que nunca deixará de
ser, mas já não corta o peito, só aperta. São saudades e
hipóteses, não são navalhas. Exceto o cheiro do pão de queijo.
Esse ainda invade, revira e dói. Esse eu nunca superei.
P.S.: A Má sempre foi pequenina,
baixinha, magrinha. Mas foi com ela que eu aprendi o que é grandeza.
Encarar um câncer de frente, sem nunca amaldiçoar a vida,
preocupada em manter-se forte por amor aos outros, rindo de tudo o
que podia em cada um dos dias da sua batalha. Foi com ela que aprendi
que é possível sair vitoriosa de uma luta mesmo quando você não a
vence.
Ruth Manus, in Um dia ainda vamos rir de tudo isso
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