domingo, 17 de janeiro de 2021

Q

          Pela 108ª vez (segundo seus cálculos mais que imprecisos), Eder Barkarna respondia a uma pesquisa de algum grupo de estudantes de linguística (provavelmente americanos), que procuravam descobrir definitivamente a origem da língua basca. Pela 108ª vez, ele dizia que a língua era pré-romana, que tinha algum parentesco com o georgiano e algumas estruturas semelhantes às do japonês, e que não era verdade que seus verbos eram utilizados sempre na voz passiva. Já sabia praticamente de cor os termos de suas respostas, só trocando esporadicamente a ordem de algumas frases, já que os estudantes de linguística são os que mais gostam de estudos comparativos, e seriam capazes de pesquisar com outros colegas para cotejar as respostas de Barkarna. Ninguém, até agora, tinha se mostrado ousado ou criativo o bastante para imaginar perguntas mais intrigantes e capciosas. De 108 turmas de linguística, nenhuma que buscasse uma teoria ou gênese mais interessantes, que diabo! E Barkarna, sozinho (como seu próprio nome dizia) com suas poucas descobertas filológicas, etimológicas e possivelmente até metafísicas, precisaria esperar, quem sabe até 1108 cartas, ou 100 808, para que algum estudante mais ou talvez menos esperto fizesse as perguntas certas. 
Mas quais seriam as perguntas certas? Havia tal pergunta? Eder, como o maior estudioso da língua basca, ou euskera, já sabia havia muito tempo que só perguntas certas poderiam levar a respostas exatas — não, “exata” não era a palavra certa —, a respostas verdadeiras. Ele tinha feito algumas; era por isso que tinha descoberto também algumas poucas coisas, mas não poderia compartilhá-las com pessoas que faziam perguntas tontas e mecânicas. Qualquer estudioso de línguas sabe que não se podem dividir segredos linguísticos com qualquer um. Agora, os segredos do euskera não só não poderiam ser partilhados com qualquer um, como precisariam sê-lo com alguém que se dispusesse a ir além de encontrar respostas e que aceitasse, por muito tempo, ficar só com perguntas não respondidas; talvez irrespondíveis.
Afinal, por que “gato” era katu, “filho” era seme, com familiaridade tão clara e aparente com tantas línguas indo-europeias, mas “filha” era alaba e “mar”, itsabo? Eder conhecia todos os harrespilak do país basco, já tinha pesquisado as minúsculas inscrições funerárias gravadas nesses círculos de pedra; conhecia e tinha traduzido os poemas bascos da Idade Média e, por isso, tinha com a língua uma intimidade tão grande que chegava a ser perturbadora. Nos sonhos, surgiam-lhe coreografias de palavras, desafios etimológicos; na vigília, Eder se distraía de suas tarefas científicas criando jogos linguísticos, obsessões comparativas, charadas sonoras. De tanto desencaminhar-se dos trabalhos mais técnicos, acabou por descobrir a origem de mistérios impensados: alaba, por exemplo, vinha provavelmente de alpha, a letra grega primogênita e fundadora, assim como a própria língua basca, possivelmente falada até por Adão e Eva, como dizia um padre navarrês do século XVII. Ogia, que nas línguas bárbaras do restante da Europa era chamado de “pão”, “pan”, “brot” e “pain”, em euskera se relacionava com o som produzido pelos grãos de trigo ao passarem pelos moinhos de pedra, raspando asperamente as rodas. Cada palavra basca, o solitário Eder pensava (e, no fundo, sabia), tinha uma origem diferente. Elas não pertenciam a uma família; não possuíam uma lógica esquemática, coletiva — era isso que diferenciava a língua basca de todas as outras línguas do resto do mundo. Não havia conjuntos com significados comuns: cada vocábulo era a sua própria família e comunidade, como se algum Adão pré-histórico e constantemente dinâmico nomeasse cada uma das coisas do país basco separadamente, sem estabelecer relação alguma entre elas. Seu nome, Eder Barkarna, significava exatamente o que ele era, como se sentia e aquilo que fazia: belo e solitário. Sua beleza o levara à solidão e sua solidão, à filologia, a mais bela das ciências. A beleza e a solidão são circulares: tudo o que é belo é solitário e toda prática solitária é bela. Em basco, como nas línguas mais evoluídas do planeta — as línguas indígenas —, os nomes determinam as coisas e suas atividades.
Mas Eder não podia dizer nada disso em suas cartas aos estudantes de linguística; seria preciso que eles viessem até sua casa e, como ele, se distraíssem das gramáticas, das genealogias, das árvores que remontam às histórias precisas das línguas indo-europeias, protoindo-europeias, sânscritas e semíticas. Seria preciso dormir sobre as palavras. Se ele escrevesse qualquer dessas verdades em suas cartas acadêmicas, seria motivo de chacota no país da língua combinatória, que também chamavam de “inglês”. Que absurdo poder utilizar um mesmo verbo com várias preposições diferentes, assim possibilitando alterar seu significado. Como pode uma língua prestar-se a tamanha flexibilidade? Isso só pode querer dizer que, nessa língua, como parecia ser a tendência de todas as outras, as palavras não têm significado próprio, permitindo que outras se aproximem e transtornem seu conteúdo e, pior ainda, sua forma. Qual é a substância de uma língua como essa?
Mas, para além das críticas de Eder a outras línguas, quase mortas de tão vivas, persistia um mistério máximo, que correspondia ao mistério ontológico da própria terra, do próprio homem. As palavras, em basco, têm origem única e não familiar. Mas: por quê? Será que coube ao belo solitário decifrar o veio geográfico de onde viriam as palavras do euskera, o povo que se define pela língua que fala? Será que ela vinha de um lugar e não de um tempo? Será que sua origem estava em todos os tempos e lugares ou então em tempo e lugar nenhum? Eder é belo porque é possível reescrever o mesmo nome com suas letras. Eder é belo porque é duas vezes Eder.
Será que Eder estava enganado? De tanto distrair-se e brincar com as palavras bascas e de tanta convicção que havia adquirido sobre sua teoria da origem única de cada palavra, pode ser que estivesse cego a outras teorias mais plausíveis, menos poéticas, mais científicas. Pode ser que estivesse hipnotizado por uma possibilidade infernal, sem saída. A chave era sempre apoiar-se nas palavras mínimas; não os substantivos, os adjetivos, os verbos, mas as preposições, as conjunções, os advérbios, as locuções adverbiais. Palavras como “de”, “em”, “com”, “lá”, “sem dúvida”, “talvez”, “porém”. Se essas palavras não tivessem, elas sim, parentesco com nenhuma outra, de nenhuma outra língua, então sua teoria seria verdadeira.
Porém” é baina; “e” é eta; “com” é ekin; “sem” é gabe. E ia? A ideia de ia não tinha correspondente em outras línguas. Em espanhol, aquela língua que se falava numa região tão próxima da sua, uma língua cujos falantes se diziam proprietários até de Navarra, não parecia existir a ideia de ia. Claro, sempre tão certos de si; donos de tudo. E o mesmo acontecia com as outras línguas daquele continente em tudo selvagem; bando de arrogantes. Qual seria a língua capaz de oferecer um pensamento tão belo como o de ia, uma ideia não propriamente formada, uma protoforma, uma aproximação da verdade? Ia é “como se”, é “antes de”, é “ainda não”, é “próximo de”; ia é seu mesmo som, fraco e forte, semifechado e totalmente aberto. Como faria, sem a existência dessa palavra em outras línguas, a tradução dos poemas de Geshina Igon, de Mitxel Xabier? Repassou as letras do alfabeto basco, adotadas do latim por algum maldito expedicionário romano ou espanhol, e percebeu que, se acrescentasse um apêndice à letra O, tão perfeita e coincidente consigo mesma, assim como a palavra “ia”, poderia criar um som e, com ele, uma palavra nova. Criou com essa forma a letra Q e a palavra “quase”, que é quase parecida com ia, porque também possui o ditongo crescente, que vai do fechado para o aberto e porque a letra Q, que lhe dá início, indica também sua imperfeição. A letra Q é quase um O, sem jamais sê-lo.
Pela imperfeição da letra Q e por sua semelhança com o som de outra letra já existente em basco, o K, Eder optou por não incorporá-la a sua língua. Entretanto, ainda criou outras palavras em outras línguas, como “quartzo”, “quem” e “quilate”. Outros filólogos, poetas e cientistas, de outras nacionalidades, adotaram também a letra Q e a palavra “quase” e passaram a utilizá-las em ensaios, poemas e artigos científicos, tornando assim as línguas um pouco menos arrogantes.

Noemi Jaffe, in A verdadeira história do alfabeto

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