Pela 108ª
vez (segundo seus cálculos mais que imprecisos), Eder Barkarna
respondia a uma pesquisa de algum grupo de estudantes de linguística
(provavelmente americanos), que procuravam descobrir definitivamente
a origem da língua basca. Pela 108ª vez, ele dizia que a língua
era pré-romana, que tinha algum parentesco com o georgiano e algumas
estruturas semelhantes às do japonês, e que não era verdade que
seus verbos eram utilizados sempre na voz passiva. Já sabia
praticamente de cor os termos de suas respostas, só trocando
esporadicamente a ordem de algumas frases, já que os estudantes de
linguística são os que mais gostam de estudos comparativos, e
seriam capazes de pesquisar com outros colegas para cotejar as
respostas de Barkarna. Ninguém, até agora, tinha se mostrado ousado
ou criativo o bastante para imaginar perguntas mais intrigantes e
capciosas. De 108 turmas de linguística, nenhuma que buscasse uma
teoria ou gênese mais interessantes, que diabo! E Barkarna, sozinho
(como seu próprio nome dizia) com suas poucas descobertas
filológicas, etimológicas e possivelmente até metafísicas,
precisaria esperar, quem sabe até 1108 cartas, ou 100 808, para que
algum estudante mais ou talvez menos esperto fizesse as perguntas
certas.
Mas quais seriam as perguntas certas?
Havia tal pergunta? Eder, como o maior estudioso da língua basca, ou
euskera, já sabia havia muito tempo que só perguntas certas
poderiam levar a respostas exatas — não, “exata” não era a
palavra certa —, a respostas verdadeiras. Ele tinha feito algumas;
era por isso que tinha descoberto também algumas poucas coisas, mas
não poderia compartilhá-las com pessoas que faziam perguntas tontas
e mecânicas. Qualquer estudioso de línguas sabe que não se podem
dividir segredos linguísticos com qualquer um. Agora, os segredos do
euskera não só não poderiam ser partilhados com qualquer
um, como precisariam sê-lo com alguém que se dispusesse a ir além
de encontrar respostas e que aceitasse, por muito tempo, ficar só
com perguntas não respondidas; talvez irrespondíveis.
Afinal, por que “gato” era katu,
“filho” era seme, com familiaridade tão clara e aparente
com tantas línguas indo-europeias, mas “filha” era alaba
e “mar”, itsabo? Eder conhecia todos os harrespilak
do país basco, já tinha pesquisado as minúsculas inscrições
funerárias gravadas nesses círculos de pedra; conhecia e tinha
traduzido os poemas bascos da Idade Média e, por isso, tinha com a
língua uma intimidade tão grande que chegava a ser perturbadora.
Nos sonhos, surgiam-lhe coreografias de palavras, desafios
etimológicos; na vigília, Eder se distraía de suas tarefas
científicas criando jogos linguísticos, obsessões comparativas,
charadas sonoras. De tanto desencaminhar-se dos trabalhos mais
técnicos, acabou por descobrir a origem de mistérios impensados:
alaba, por exemplo, vinha provavelmente de alpha, a
letra grega primogênita e fundadora, assim como a própria língua
basca, possivelmente falada até por Adão e Eva, como dizia um padre
navarrês do século XVII. Ogia, que nas línguas bárbaras do
restante da Europa era chamado de “pão”, “pan”, “brot” e
“pain”, em euskera se relacionava com o som produzido
pelos grãos de trigo ao passarem pelos moinhos de pedra, raspando
asperamente as rodas. Cada palavra basca, o solitário Eder pensava
(e, no fundo, sabia), tinha uma origem diferente. Elas não
pertenciam a uma família; não possuíam uma lógica esquemática,
coletiva — era isso que diferenciava a língua basca de todas as
outras línguas do resto do mundo. Não havia conjuntos com
significados comuns: cada vocábulo era a sua própria família e
comunidade, como se algum Adão pré-histórico e constantemente
dinâmico nomeasse cada uma das coisas do país basco separadamente,
sem estabelecer relação alguma entre elas. Seu nome, Eder Barkarna,
significava exatamente o que ele era, como se sentia e aquilo que
fazia: belo e solitário. Sua beleza o levara à solidão e sua
solidão, à filologia, a mais bela das ciências. A beleza e a
solidão são circulares: tudo o que é belo é solitário e toda
prática solitária é bela. Em basco, como nas línguas mais
evoluídas do planeta — as línguas indígenas —, os nomes
determinam as coisas e suas atividades.
Mas Eder não podia dizer nada disso em
suas cartas aos estudantes de linguística; seria preciso que eles
viessem até sua casa e, como ele, se distraíssem das gramáticas,
das genealogias, das árvores que remontam às histórias precisas
das línguas indo-europeias, protoindo-europeias, sânscritas e
semíticas. Seria preciso dormir sobre as palavras. Se ele escrevesse
qualquer dessas verdades em suas cartas acadêmicas, seria motivo de
chacota no país da língua combinatória, que também chamavam de
“inglês”. Que absurdo poder utilizar um mesmo verbo com várias
preposições diferentes, assim possibilitando alterar seu
significado. Como pode uma língua prestar-se a tamanha
flexibilidade? Isso só pode querer dizer que, nessa língua, como
parecia ser a tendência de todas as outras, as palavras não têm
significado próprio, permitindo que outras se aproximem e
transtornem seu conteúdo e, pior ainda, sua forma. Qual é a
substância de uma língua como essa?
Mas, para além das críticas de Eder a
outras línguas, quase mortas de tão vivas, persistia um mistério
máximo, que correspondia ao mistério ontológico da própria terra,
do próprio homem. As palavras, em basco, têm origem única e não
familiar. Mas: por quê? Será que coube ao belo solitário decifrar
o veio geográfico de onde viriam as palavras do euskera, o
povo que se define pela língua que fala? Será que ela vinha de um
lugar e não de um tempo? Será que sua origem estava em todos os
tempos e lugares ou então em tempo e lugar nenhum? Eder é belo
porque é possível reescrever o mesmo nome com suas letras. Eder é
belo porque é duas vezes Eder.
Será que Eder estava enganado? De tanto
distrair-se e brincar com as palavras bascas e de tanta convicção
que havia adquirido sobre sua teoria da origem única de cada
palavra, pode ser que estivesse cego a outras teorias mais
plausíveis, menos poéticas, mais científicas. Pode ser que
estivesse hipnotizado por uma possibilidade infernal, sem saída. A
chave era sempre apoiar-se nas palavras mínimas; não os
substantivos, os adjetivos, os verbos, mas as preposições, as
conjunções, os advérbios, as locuções adverbiais. Palavras como
“de”, “em”, “com”, “lá”, “sem dúvida”,
“talvez”, “porém”. Se essas palavras não tivessem, elas
sim, parentesco com nenhuma outra, de nenhuma outra língua, então
sua teoria seria verdadeira.
“Porém” é baina; “e” é
eta; “com” é ekin; “sem” é gabe. E ia?
A ideia de ia não tinha correspondente em outras línguas. Em
espanhol, aquela língua que se falava numa região tão próxima da
sua, uma língua cujos falantes se diziam proprietários até de
Navarra, não parecia existir a ideia de ia. Claro, sempre tão
certos de si; donos de tudo. E o mesmo acontecia com as outras
línguas daquele continente em tudo selvagem; bando de arrogantes.
Qual seria a língua capaz de oferecer um pensamento tão belo como o
de ia, uma ideia não propriamente formada, uma protoforma,
uma aproximação da verdade? Ia é “como se”, é “antes
de”, é “ainda não”, é “próximo de”; ia é seu
mesmo som, fraco e forte, semifechado e totalmente aberto. Como
faria, sem a existência dessa palavra em outras línguas, a tradução
dos poemas de Geshina Igon, de Mitxel Xabier? Repassou as letras do
alfabeto basco, adotadas do latim por algum maldito expedicionário
romano ou espanhol, e percebeu que, se acrescentasse um apêndice à
letra O, tão perfeita e coincidente consigo mesma, assim como a
palavra “ia”, poderia criar um som e, com ele, uma palavra nova.
Criou com essa forma a letra Q e a palavra “quase”, que é quase
parecida com ia, porque também possui o ditongo crescente,
que vai do fechado para o aberto e porque a letra Q, que lhe dá
início, indica também sua imperfeição. A letra Q é quase um O,
sem jamais sê-lo.
Pela imperfeição da letra Q e por sua
semelhança com o som de outra letra já existente em basco, o K,
Eder optou por não incorporá-la a sua língua. Entretanto, ainda
criou outras palavras em outras línguas, como “quartzo”, “quem”
e “quilate”. Outros filólogos, poetas e cientistas, de outras
nacionalidades, adotaram também a letra Q e a palavra “quase” e
passaram a utilizá-las em ensaios, poemas e artigos científicos,
tornando assim as línguas um pouco menos arrogantes.
Noemi Jaffe, in A verdadeira história do alfabeto
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