Paulo José é o nome dele, muito embora
tenha se tornado Pajé desde sempre. Meu irmão é oito anos mais
velho do que eu. Mesmo assim, quando eu era criança, frequentemente
queixava-me dele para a minha mãe, sobretudo em virtude de ataques
de cócegas que ele impingia contra mim. Nessas horas eu dizia
“Mãããe, manda o Pauzuzé paraaaar”, pois a voz chorosa de
filha mais nova não me permitia pronunciar Paulo José de forma mais
inteligível do que isso.
Meu irmão mede 1,83m. Acho que ele
atingiu essa altura quando tinha uns 16 anos. Eu tinha 8 e, naquela
época, nada na vida era mais legal do que dizer que meu irmão media
1,83m. Dizia isso para todo mundo, como quem noticiava algo realmente
imperdível.
Lembro-me da primeira vez que percebi
que, um dia, meu irmão poderia não viver mais comigo. Foi quando eu
estava assistindo a televisão e vi uma propaganda do alistamento
militar. Corri até meu pai e perguntei se era verdade. Se o Pauzuzé
teria que fazer aquilo. Ele disse que sim, mas tentou me acalmar,
afirmando que normalmente eles escolhiam meninos diferentes do meu
irmão para serem soldados. Voltei para o sofá com um choro
engasgado, lágrimas começando a escorrer e um verdadeiro pânico de
pensar na ideia de ele estar com uma arma em vez de estar comigo.
Houve uma época, quando eu tinha uns 9
anos, em que ele me convidava para ir até o quarto dele depois do
jantar para me explicar coisas. Ele me explicou o que era inflação.
O que era a força da gravidade. Quem era cada um dos Beatles. O que
era direita e esquerda. Como se contava até dez em japonês. Se
àquela altura eu soubesse o que era ser Ph.D. na Universidade de
Londres, não teria dúvida nenhuma de que o Pajé um dia o seria –
como hoje, de fato, o é.
Meu irmão saiu de casa aos 17 anos para
fazer faculdade no interior. Lembro-me de não querer entender muito
o que estava acontecendo. Fingi não perceber todo aquele movimento.
As malas, a matrícula na faculdade, as visitas à república na qual
ele iria morar. Fiz vista grossa, desconsiderei e nem chorei. Talvez
eu deva trabalhar isso na terapia. Acho que nunca ajeitei essa
história dentro do peito, principalmente porque depois daquele
fatídico ano de 1997 eu nunca mais tive a chance de ficar ao lado
dele sem estar numa contagem regressiva.
Acredito que meu irmão seja a única
pessoa que eu endeusei ao longo da vida. Não admirei tanto nem meus
pais, nem o Papa, nem a Britney Spears nos seus tempos áureos.
Sempre tive a sensação de que meu irmão era uma criatura
intangível, muito diferente das demais. Minha irmã sempre foi
terrena, sempre olhei para ela da mesma forma como olho para mim
mesma. Mas com ele sempre foi – e ainda é – diferente. Talvez um
semideus, uma divindade. Não sei explicar muito bem.
Nunca questionei a capacidade do Paulo
José para nada. Tinha certeza de que ele era bom em tudo. E se ele
ficava em recuperação em matemática todo ano na escola, era porque
a matemática era uma porcaria, não ele. Acho que fui a única
pessoa que não se preocupou quando meu irmão anunciou que seria pai
aos 23 anos. Para mim era óbvio que ele seria um pai irretocável.
Nunca me preocupei com a minha sobrinha, nem de longe, e hoje ela é
mesmo incrível. Eu estava certa.
Pauzuzé é uma espécie de sina para
mim. Até hoje sinto que preciso provar para ele que sou boa o
bastante. Até hoje sinto necessidade de fazer com que ele se orgulhe
de mim, embora ele nunca me cobre nada disso. Sei traduzir facilmente
meu amor pelo meu pai, pela minha mãe, pela minha irmã. Mas meu
amor pelo Pajé é diferente de todos os outros. Talvez porque eu
sinta que não o tive pelo tempo que queria ter. Talvez porque eu
tenha sede do meu irmão até hoje. Ou talvez porque ele, de fato,
seja diferente de todas as outras pessoas do mundo.
Ruth Manus, in Um dia ainda vamos rir de tudo isso
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