Eu nunca tinha ouvido falar dela. Vivo
nesse edifício de 70 apartamentos há alguns anos. A maioria dos
moradores só encontro na reunião de condomínio. Há o velho que
toma sol pela manhã e que me cumprimenta sorridente porque lá em
casa a gente se dá tchau na janela quando alguém sai. Ele acha
curiosíssimo e acompanha o ritual enternecido. Há as mulheres que
passeiam com os cachorros, e as que fiscalizam o crescimento das
roseiras do jardim. Existe a vizinha que sempre tenta me vender
produtos de beleza. E o Pedrão, um aumentativo irônico para um
cachorro tão pequeno, tão desmilinguido e cego pela idade, que sobe
e desce o elevador comigo, protegendo com olhos erráticos um dono
que é quase um gigante. Há o vizinho de passo marcial que não
cumprimenta ninguém. E ela, que morava lá havia uma eternidade, mas
a quem eu nunca vira.
Numa tarde vêm o chaveiro, os bombeiros
e a polícia. Arrombam a porta do apartamento. E somos todos lançados
para dentro de uma paisagem muito semelhante à nossa, mas que era
dela. As histórias de sua vida me alcançam aos farrapos. Aos 82
anos, ela vivia só. Tinha sido médica, com consultório no centro
de São Paulo. Era uma mulher independente, que veio do interior para
vencer na cidade grande, quando as mulheres de sua geração apenas
recolhiam os passos até a casa do marido. Viajou o mundo, falava
várias línguas, expressas nos livros espalhados pela casa. Não sei
de seus amores, ninguém ali sabe. De repente, ela se descobriu só.
Não queria morrer, só não sabia como seguir vivendo. Resistiu viva
— morrendo.
Há dois anos ela estacionou sua Brasília
vermelha, meticulosamente limpa e bem conservada, numa vaga tamanho
G. E nunca mais a tirou de lá. Poderia ter sido um sinal, mas um
sinal só se torna um sinal se for decodificado. Este gerou apenas
uma multa do condomínio. O carro deveria estar numa vaga M. Talvez
P. Há pouco mais de um ano, ela deixou de pagar a conta do
condomínio. O acúmulo da dívida virou um processo judicial e uma
primeira audiência a qual ela não compareceu. Outra pista não
decifrada.
A vizinha do lado percebeu que ela não
mais saía de casa. Insistiu com o síndico, com o zelador, algo
estava errado. Ela nem atendia mais a porta, e um cheiro novo se
impregnava no corredor. Mas a lei não escrita da cidade grande
determina não perturbar a privacidade de ninguém. Cada um é uma
ilha — ou um apartamento. Proprietário-indivíduo de seu número
de metros quadrados aéreos no mundo. Os funcionários do condomínio
devem avisar pelo interfone quando vão entregar uma correspondência
que precisa ser assinada, porque, do contrário, muitos moradores
sequer abrem a porta. E ela era conhecida como “a doutora”, o
título um abismo que ela e tantos se esforçam para cavar. Ninguém
ousou perguntar se algo diferente, algo pior, estava acontecendo com
ela.
Naquela tarde, a conhecida de uma
associação onde ela trabalhava como voluntária veio procurá-la,
preocupada com seu sumiço. Ela então conseguiu se arrastar e
sussurrar que não tinha forças para abrir a porta. Quando a porta
caiu, e os fossos foram transpostos, descobriu-se que havia dois
meses ela vivia no escuro, à luz de velas primeiro, nada depois. A
energia elétrica tinha sido cortada por falta de pagamento. Ela já
não podia andar. E há semanas quase não comia. A doutora estava
morrendo de fome em meio a centenas de pessoas na cidade de milhões.
Em sua própria sujeira.
Num prédio de classe média de São
Paulo, ela estava mais isolada do que qualquer ribeirinho dos confins
da Amazônia. Não queria que descobrissem que havia perdido o
controle da sua vida. E quando quis pedir ajuda, já não teve
forças. Imagino quanto desespero sentia para conseguir romper as
amarras de toda uma existência, se arrastar até a porta e admitir
que não era mais capaz de abrir. Foi levada ao hospital, onde agora
briga para viver.
Ela morava dois andares abaixo do meu.
Quando eu soube, fiquei rememorando os últimos meses. Enquanto eu
trabalhava, cozinhava, bebia vinho, tomava chimarrão, gargalhava,
assistia a filmes, me emocionava com livros, me indignava com
acontecimentos, conversava, namorava, sonhava, fazia planos, escrevia
esta coluna e às vezes chorava, dois andares abaixo do meu, num
espaço igual ao meu, uma mulher de 82 anos morria de fome nas
trevas, em abissal solidão.
Enquanto eu ria, ela morria. Enquanto eu
comia, ela morria. Enquanto eu sonhava, ela morria. No escuro, ela
morria no escuro enquanto eu abanava da janela, o velho sorria ao
sol, uma vizinha tentava me vender um novo creme antirrugas e Pedrão
rosnava cegamente no elevador sob o olhar terno de seu gigante.
Não consegui dormir por algumas noites,
porque me via arremessada ao outro lado da rua, tentando adivinhar os
enredos que se passavam atrás das cortinas daqueles outros 69
apartamentos. Que vidas são aquelas, que dores se escondem, quais
são os dramas que sou impotente para estancar? Anos atrás, antes de
eu morar no prédio, um homem se lançou pela janela e morreu
estatelado na laje. Como tantos o tempo todo. Um soluço apavorante
na rotina e depois o esquecimento. Como agora, nesse morrer sem
sangue e sem alarde.
Numa fissura do tempo, algo que não pode
mais ser oculto se revela — revelando também o nosso medo. Portas
são derrubadas, cortinas rasgadas por um corpo que se lança para o
nada, para nós. E, talvez pior, por um corpo que se esconde até ser
exposto pelo cheiro da decomposição ainda antes da morte, corroendo
os muros de nossa privacidade protegida com tanto empenho. Como a
dela.
Depois, precisamos esquecer para seguir
vivendo. Mas não consigo esquecer. O que aconteceu com ela está
acordado dentro de mim como um bicho. Dentro de nós também há um
condomínio onde portas se fecham, chaves se perdem e o suicida que
nos habita se lança no vazio enquanto outros em nós se decompõem
em vida pela morte dos dias que não acontecem. Mergulho, então,
além dos dois que nos separavam, vários andares em mim. E lembro-me
de Mário Sá-Carneiro, escritor português: “Perdi-me dentro de
mim porque eu era labirinto. E hoje, quando me sinto, é com saudades
de mim”.
Acredito que todos no prédio restaram em
choque, cada um à sua maneira. Porque ninguém percebeu a tempestade
logo ali. Porque tudo se passou enquanto no avesso de cada janela
tentávamos viver. Mas também — e talvez principalmente por isso —
porque a tragédia se desenrolou no mesmo cenário onde tecemos o
enredo de nossos dias.
O apartamento dela é igual ao nosso.
Essa semelhança de condições e de arquitetura, de portas e de
janelas, nos provoca um incômodo difícil de dissipar. Poderíamos
ser nós a morrer de fome no escuro. Mesmo com uma história diversa,
lá no fundo cada um de nós sabe que a solidão nos espreita. Que
não estamos tão protegidos como gostaríamos. Seria mais fácil
afastar nosso horror se fosse um assassinato, uma morte por ciúme,
uma violência cometida por um psicopata. Isso está sempre mais
longe. Mas não. A doutora morria logo ali, de solidão. E isso está
bem perto.
Ela não viveu uma vida à toa. Ou uma
vida egoísta. Ela apenas viveu mais tempo do que a maioria de seus
amigos, que deve ter sepultado um a um. Mais tempo que os pacientes
que tantas vezes salvou, e então o consultório ficou vazio. Ela
tinha bens que poderia ter vendido quando ficou restrita a uma renda
que não lhe permitia manter o padrão. Mas não tinha mais saúde
para fazer o que era preciso. Com o tempo, não conseguia mais nem
caminhar até o banco para buscar o dinheiro da aposentadoria ou
pagar a conta de luz ou qualquer outra. Lentamente, os fios de sua
vida foram lhe escapando das mãos. E, no fim, quando percebeu que
precisava romper o pudor cimentado nela e pedir ajuda, já não era
capaz de andar pela casa para abrir a porta da rua e escancarar sua
miséria. A doutora não queria morrer, só não tinha forças para
viver nesse mundo.
Por um tempo fiquei acordada pelas
madrugadas, dormindo nas auroras, aterrorizada com as vidas
desconhecidas abaixo e acima de mim. Com os socorros que eu não
sabia que precisava prestar, com o monstro de olhos abertos em mim.
Devagar, comecei a pensar nas minhas escolhas. E agora tento aprender
a amar melhor, para além das paredes de meus metros quadrados de
mundo, mais iguais às dela do que eu e todos gostaríamos.
Eliane Brum, in A menina quebrada
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