Enterrem meu coração na curva do rio,
rápido, pois essa é a única maneira de poupá-lo de um dos meus
pânicos modernos – as pessoas, pelo menos as que se tentam
apresentar mais sensíveis e gente boa, estão mandando como prova de
carinho e ternura um beijo bem gostoso no coração. Não me façam
tal, por favor. Ainda não cheguei à idade de dispensar qualquer
tipo de beijo. Desse, no entanto, caio fora. Peço licença para
mandar Detefon em meu lugar.
Não me beijem o coração, ressuplico. O
colesterol anda péssimo, as desilusões amorosas não cessam, ele é
um pote até aqui de água malparada. Nada porém me é pior ao já
combalido do que a ameaça do tal beijo. Sobra gordura desse afeto,
esparrama açúcar dessa afeição molenga. Não levem a mal se
recolho o carcomido para dentro da camisa, se o tranco ainda mais por
detrás das costelas portuguesas. Desculpem. Deve ser por timidez,
cosquinha, herança da loura que se mandou mês passado – escolham
o motivo.
O velho poeta pernambucano pedia que não
se perfumasse a flor. Contenham-se nos arroubos estéticos
desnecessários, ensinava com o verso enxuto. Eu, peladeiro
suburbano, sem nenhuma lição artística a oferecer com minhas
esquisitices cronicais, rogo apenas que não bombeiem melado pela
aorta já com 112 pontos de glicose. Esse beijinho doce que você me
trouxe, glacê de bons sentimentos, mata de tão cafona.
O beijo no coração é derramamento
hippie do politicamente correto, uma necessidade hiperbólica de
realçar, sublinhar, olha só, como estamos impregnados não apenas
das boas causas mas das boas palavras. Papo-furado. Não faz bem
nenhum. O tal beijo é banha pura. Enseba os ouvidos. Não é só a
população, como vi outro dia numa pesquisa do IBGE, que está mais
adiposa. O carinho também ficou balofo.
Se duas maravilhas indiscutíveis da
civilização, beijo e coração, com todas as suas conotações de
prazer e sentimento, estão juntas na mesma frase, ficaria tudo
barra-limpa. Definitivamente, estaríamos do lado das forças
corretas. Mas não é bem assim. É acúmulo de toucinho simpático,
piscinão do colesterol ruim onde mergulham os que fogem do beijo
certo. O beijo no coração substituiu a falsa gentileza do tapinha
nas costas. Deus me livre de ser tão querido!
Despejem o ursinho blau-blau da conversa.
Passem mão de tinta adulta no quartinho cor-de-rosa desse bicho. Eu
sei que os tempos são cruéis. Sei de todo o horror dos primeiros
cadernos dos jornais. No meio do açougue terminal das almas em que
nos metemos deve ter alguém achando que, sabido de todo esse bode,
mandar beijo no coração deveria ser saudado com aplausos. Não
acordo. É tudo parte do mesmo e pavoroso crime, um estilo de
contrapor ao horror da barbárie a pasmaceira radical dos tolinhos.
Cuidado com os dois.
Há bandidos demais ao redor, alguns
esperando apenas a edição de amanhã para serem declarados como
tal. Do outro lado do ringue, o oponente pelas forças do bem não
pode ser o escoteiro medíocre que oferece hóstia vazia em troca da
glória suprema - ser reconhecido como “muito gente”. Olho vivo
nessa turma.
Sempre vestidos com uma camiseta onde
está escrito “Nada contra”, há que lhes temer – hum, aí tem!
– a subserviência gentil, a obsessão samaritana, a retidão ong,
a benemerência de crachá e a doação de um quilo de alimento não
perecível para a arquibancada. O falso boa-praça, com sua
insistência em se mostrar mais gente fina que todos, querendo
agradar geral e nunca conjugando o verbo não - será que ninguém
percebe que esse cara sufocando o coração dos outros com seus
beijinhos é muito chato e perigoso?
Não há nada que se queira mais próximo
do que os donos das boas palavras, dos bons gestos e da alegria
amiga. Vivam todos e cheguem mais. O beijo no coração, filho
espúrio do casamento de locutor-FM com heroína de novela mexicana,
é outra coisa. Parece novo-rico que acabou de chegar à linguagem
afetiva e exagera juntando duas jóias lindas mas incompatíveis.
Desconfio da intenção fofinha.
Falta sinceridade na gratidão
ternurinha.
Os taxistas cariocas e os motoboys
paulistas dão provas definitivas de que o brasileiro não é essa
cordialidade toda que andaram escrevendo nos livros. Xavecos do saci-
pererê. O beijo que se aplica agora nesse músculo improvável soa
como mais uma palavra de ordem rumo ao troféu de outro desvario
nacional – somos o povo mais bom coração do mundo.
E porque assim somos, quietinhos
esperamos. Enquanto não vem o espetáculo do crescimento econômico,
assistimos, ursinhos fofinhos, ao espetáculo do sentimento. Falta
emprego, esse aborrecido detalhe estatístico. Mas sobra afeto e um
beijo muiiiiiiiiiiito gostoso no coração de todos vocês.
Joaquim Ferreira dos Santos, in Em busca do borogodó perdido
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