Não gosto muito da retórica, mas há
que dizê-lo de alguma forma: as temporadas na aldeia eu chamo de
minha formação espiritual. Nesse sentido, lembro-me que, quando
criança, até os catorze ou quinze anos, o que eu gostava era dos
passeios pelo campo, sozinho, pelo rio, nas colinas dali, sozinho.
[...]
Era disso que eu gostava, da solidão, e
parar para ver alguma coisa, um lagarto que estava ali, ou um
pássaro, ou nada, ficar sentado na beira do rio, matar umas rãs.
Gostava dessas pequeníssimas coisas, a sensação do lodo nos pés
descalços, da qual falo num conto, que é uma sensação que sinto
ainda agora: os pés naquele lodo do rio, a terra ensopada. É
curioso como ficou gravado daquele tempo uma coisa tão banal como a
sensação do lodo entre os dedos dos pés. Mas é assim que me
lembro, do mesmo modo que das pequeníssimas nascentes que estavam na
beira do rio e da água que brotava da nascente, que removia a areia
com seu impulso, todas essas pequeníssimas coisas. Meus avós não
se preocupavam nem um pouco com meu comportamento. Se tivessem sido
gente da cidade talvez houvessem ficado preocupadíssimos, mas eles
sabiam que eu saía de casa de manhã ou de tarde e podia ficar horas
e horas fora. Depois voltava com a cabeça cheia de coisas, mas não
com uma espécie de intuição da natureza, do mistério da vida e da
morte… Não, não, eu era muito mais um pequeno animal que se
sentia à vontade naquele lugar.
Na aldeia, no rio que passava e passa —
mas já não é o mesmo: agora é um esgoto, isso acontece com quase
todos os rios do mundo —, eu andava descalço e o lodo se
insinuava, subia. Posso ter esquecido muitas outras coisas, porém as
mais simples ficaram: a fogueira em casa dos meus avós, os passeios
no campo, o banho nos rios, os porcos, tudo isso, tudo, tudo, tudo.
[...]
Há imagens que estão aí. E a imagem
das coisas tem muito a ver com a pessoa que somos, com o olhar que
temos, com a sensibilidade que transportamos dentro de nós. Quando
me encontrei com a natureza na minha aldeia de Azinhaga, eu era um
menino. Era um menino simples e pobre, nem mesmo precoce. Sensível e
sério, isso sim. E um menino sério era um bicho meio esquisito.
Estava cheio de melancolia, às vezes de tristeza. Gostava da
solidão. Os longos percursos pelos olivais, ao luar. Essa imagem da
natureza que sofreu a intervenção do cultivo do homem era minha
imagem do mundo. Quando fui para Lisboa, com dois anos, passava os
dias sonhando com o momento em que poderia voltar à aldeia, que era
onde eu descobria as coisas pequenas. Trepar numa árvore pela
primeira vez! Creio que a sensação foi idêntica à do senhor
Hillary quando chegou ao Everest e ficou ali, no teto do mundo. Eu me
agarrei com força ao tronco, com medo porque a árvore se mexia, mas
o mundo era aquele e não outra coisa.
José Saramago, in As palavras de Saramago
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