quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

Minha aldeia

          Não gosto muito da retórica, mas há que dizê-lo de alguma forma: as temporadas na aldeia eu chamo de minha formação espiritual. Nesse sentido, lembro-me que, quando criança, até os catorze ou quinze anos, o que eu gostava era dos passeios pelo campo, sozinho, pelo rio, nas colinas dali, sozinho.
[...]
Era disso que eu gostava, da solidão, e parar para ver alguma coisa, um lagarto que estava ali, ou um pássaro, ou nada, ficar sentado na beira do rio, matar umas rãs. Gostava dessas pequeníssimas coisas, a sensação do lodo nos pés descalços, da qual falo num conto, que é uma sensação que sinto ainda agora: os pés naquele lodo do rio, a terra ensopada. É curioso como ficou gravado daquele tempo uma coisa tão banal como a sensação do lodo entre os dedos dos pés. Mas é assim que me lembro, do mesmo modo que das pequeníssimas nascentes que estavam na beira do rio e da água que brotava da nascente, que removia a areia com seu impulso, todas essas pequeníssimas coisas. Meus avós não se preocupavam nem um pouco com meu comportamento. Se tivessem sido gente da cidade talvez houvessem ficado preocupadíssimos, mas eles sabiam que eu saía de casa de manhã ou de tarde e podia ficar horas e horas fora. Depois voltava com a cabeça cheia de coisas, mas não com uma espécie de intuição da natureza, do mistério da vida e da morte… Não, não, eu era muito mais um pequeno animal que se sentia à vontade naquele lugar.
Na aldeia, no rio que passava e passa — mas já não é o mesmo: agora é um esgoto, isso acontece com quase todos os rios do mundo —, eu andava descalço e o lodo se insinuava, subia. Posso ter esquecido muitas outras coisas, porém as mais simples ficaram: a fogueira em casa dos meus avós, os passeios no campo, o banho nos rios, os porcos, tudo isso, tudo, tudo, tudo.
[...]
Há imagens que estão aí. E a imagem das coisas tem muito a ver com a pessoa que somos, com o olhar que temos, com a sensibilidade que transportamos dentro de nós. Quando me encontrei com a natureza na minha aldeia de Azinhaga, eu era um menino. Era um menino simples e pobre, nem mesmo precoce. Sensível e sério, isso sim. E um menino sério era um bicho meio esquisito. Estava cheio de melancolia, às vezes de tristeza. Gostava da solidão. Os longos percursos pelos olivais, ao luar. Essa imagem da natureza que sofreu a intervenção do cultivo do homem era minha imagem do mundo. Quando fui para Lisboa, com dois anos, passava os dias sonhando com o momento em que poderia voltar à aldeia, que era onde eu descobria as coisas pequenas. Trepar numa árvore pela primeira vez! Creio que a sensação foi idêntica à do senhor Hillary quando chegou ao Everest e ficou ali, no teto do mundo. Eu me agarrei com força ao tronco, com medo porque a árvore se mexia, mas o mundo era aquele e não outra coisa.

José Saramago, in As palavras de Saramago

Nenhum comentário:

Postar um comentário