quarta-feira, 18 de novembro de 2020

O hino

        No domingo de manhã, começou a nevar. Os alvos flocos caíam rápidos e espessos; as pequenas vidraças da casa amarela ficaram forradas de neve.
Mais cedo nesse dia um cavalariço vindo de Fossum trouxe um bilhete às duas irmãs. A velha senhora Loewenhielm ainda residia em sua casa de campo. Estava agora com noventa anos de idade e surda como uma porta, e perdera todo o sentido do olfato ou do paladar. Mas fora uma das primeiras seguidoras do deão e nem sua enfermidade, nem a viagem de trenó impediriam-na de honrar sua memória. Agora, escrevia, o sobrinho, general Lorens Loewenhielm, aparecera inesperadamente para uma visita; falara com profunda veneração do deão e a mulher rogava permissão para levá-lo junto. Faria-lhe bem, pois o caro rapaz parecia um pouco deprimido.
Martine e Philippa, ao ler aquilo, lembraram-se do jovem oficial e de suas visitas; era um alívio para sua ansiedade presente falar a respeito dos velhos dias felizes. Escreveram de volta para dizer que o general Loewenhielm seria bem-vindo. Também chamaram Babette para informá-la que agora seriam doze para o jantar; acrescentaram que o último convidado vivera em Paris por vários anos. Babette pareceu feliz com a notícia e assegurou-lhes que a comida seria suficiente.
As anfitriãs fizeram seus pequenos preparativos na sala de visitas. Não ousavam pôr o pé na cozinha, pois Babette arranjara misteriosamente um ajudante de um navio do porto – o mesmo rapaz, percebeu Martine, que trouxera a tartaruga – para auxiliá-la na cozinha e servir à mesa, de modo que agora a mulher morena e o rapaz ruivo, como uma bruxa com seu demônio familiar, haviam tomado posse daquelas paragens. As duas senhoras não saberiam dizer que chamas queimavam ou que caldeirões borbulhavam ali desde antes do amanhecer.
Toalhas e guardanapos e jogos de pratos haviam sido magicamente passados pela calandra uns e polidos outros, trouxeram-se copos e garrafas para servir licores, só Babette sabia de onde. A casa do deão não possuía doze cadeiras na sala de jantar, então o comprido sofá de crina de cavalo fora trazido da sala de estar, que, sempre escassamente mobiliada, agora parecia estranhamente grande e desguarnecida sem ele.
Martine e Philippa fizeram o melhor possível para embelezar os domínios deixados a elas. Fossem quais fossem os apertos que pudessem estar à espera de seus convidados, em todo caso ao menos não passariam frio; por todo o dia, as irmãs alimentaram o imenso aquecedor com tocos de bétula. Penduraram uma coroa de zimbros em torno do retrato do pai na parede e puseram castiçais na pequena mesa de costura de sua mãe, sob ele; queimaram ramos de zimbro para espalhar um odor agradável pelo ambiente. Nesse ínterim, perguntavam-se se com aquele tempo o trenó vindo de Fossum conseguiria chegar. No fim, arrumaram-se com seus melhores vestidos pretos velhos e os crucifixos de ouro da crisma. Sentaram-se, cruzaram as mãos no colo e se consagraram a Deus.
Os velhos irmãos e irmãs chegaram em pequenos grupos e entraram na sala lenta e solenemente.
O cômodo baixo com seu piso nu e mobília parca era caro aos discípulos do deão. Além de suas janelas ficava o vasto mundo. Visto do lado de dentro, o vasto mundo em sua alvura hibernal era sempre lindamente delineado em rosa, azul e vermelho pela fileira de jacintos nos peitoris. E no verão, quando as janelas estavam abertas, o vasto mundo era emoldurado por cortinas levemente esvoaçantes de branca musselina.
Nessa noite, os convidados foram acolhidos na soleira pelo calor e o cheiro agradável e fitaram o rosto do estimado mestre engrinaldado por sempre-vivas. Seus corações, assim como os dedos adormecidos, se aqueceram.
Um irmão muito idoso, após alguns minutos de silêncio, com a voz trêmula começou a entoar um dos hinos escritos pelo próprio mestre:

Jerusalém, minha terra feliz,
nome para mim sempre querido…

Uma a uma, as demais vozes se juntaram, finas e alquebradas vozes de mulheres, guturais vozeirões de velhos confrades e lobos do mar, e acima de todas o límpido soprano de Philippa, um pouco abatido pela idade, mas ainda angelical. Involuntariamente, o coro dera-se as mãos. Cantaram o hino até o fim, mas não conseguiram parar e emendaram mais um:

Descuida de roupa ou alimento,
Zeloso, e tanta angústia…

As donas da casa tranquilizaram-se um pouco ao ouvi-lo, e as palavras da terceira estrofe

Darias uma pedra, um réptil,
De alimento a teu filho suplicante?…

calaram fundo no coração de Martine, enchendo-a de esperança.
Na metade desse hino, sinos de trenó foram ouvidos do lado de fora; os convidados de Fossum haviam chegado.
Martine e Philippa foram recebê-los e os acompanharam até a sala de visitas. A senhora Loewenhielm, com a idade, ficara um tanto miúda, com um rosto pálido como pergaminho e bastante impassível. A seu lado, o general Loewenhielm, alto, largo, rubicundo, com seu uniforme brilhante, o peito coberto de condecorações, empertigava-se e cintilava como uma ave ornamental, um faisão dourado ou um pavão, em meio ao austero grupo preto de corvos e gralhas.

Karen Blixen, in A festa de Babette 

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