sábado, 7 de novembro de 2020

Cyrano na Lua

          Na época em que Galileu entrava em choque com o Santo Ofício, um de seus partidários parisienses propunha um sugestivo modelo de sistema heliocêntrico: o universo é feito como uma cebola, que “conserva, protegida por cem películas que a envolvem, o precioso broto do qual 10 milhões de outras cebolas irão tirar sua essência… O embrião, na cebola, é o pequeno Sol deste pequeno mundo, que aquece e nutre o sal vegetativo de toda a massa”.
Com aqueles milhões de cebolas, do sistema solar passamos àquele dos infinitos mundos de Giordano Bruno; de fato, todos esses corpos celestes “que se veem ou não se veem, suspensos no azul do universo, não passam da espuma dos sóis que se depuram. Como poderiam subsistir esses grandes fogos, se não fossem alimentados por alguma matéria que os nutre?”. Esse processo espumígero afinal não é muito diferente de como hoje nos explicam a condensação dos planetas da nebulosa primordial e as massas estelares que se contraem e se expandem:

Todo dia, o Sol descarrega e se purga dos restos da matéria que alimenta o seu fogo. Mas quando tiver consumido inteiramente a matéria de que é composto, expandir-se-á de todos os lados para buscar outro alimento e se propagará para todos os mundos que um dia construíra e em particular aqueles que estiverem mais próximos. Então aquele grande fogo, tornando a fundir todos os corpos, irá lançá-los desordenadamente de todos os lados como antes e, tendo se purificado pouco a pouco, começará a servir de Sol aos planetas que há de gerar, lançando-os fora de sua esfera.

Quanto ao movimento da Terra, são os raios do Sol que, “vindo a golpeá-la, com sua circulação fazem-na girar como fazemos girar um globo golpeando-o com a mão”, ou então são os vapores da própria Terra aquecida pelo Sol que, “batidos pelo frio das regiões polares, caem-lhe por cima e, só podendo atingi-la de lado, fazem com que ela gire em círculo”.
Este imaginoso cosmógrafo é Savinien de Cyrano (1619-55), mais conhecido como Cyrano de Bergerac, e a obra aqui citada é Histoire comique des états et empires de la Lune.
Precursor da ficção científica, Cyrano nutre suas fantasias com os conhecimentos científicos da época e com as tradições mágicas renascentistas e, assim fazendo, produz antecipações que somente nós, mais de três séculos depois, podemos apreciar como tais: os movimentos do astronauta que se livrou da força da gravidade (ele chega a isso mediante gotas de orvalho que são atraídas pelo Sol), os foguetes em vários estágios, os “livros sonoros” (carrega-se o mecanismo, coloca-se uma agulha sobre o capítulo desejado, ouvem-se os sons que saem de uma espécie de boca).
Mas sua imaginação poética nasce de um verdadeiro sentimento cósmico e o leva a imitar as comovidas evocações do atomismo lucreciano; assim ele celebra a unidade de todas as coisas, inanimadas ou vivas, e também os quatro elementos de Empédocles são um único, com os átomos ora mais rarefeitos ora mais densos.

Vocês se maravilham de como esta matéria misturada confusamente, dependendo do acaso, pode ter constituído um homem, visto que havia tantas coisas necessárias para a construção de seu ser, mas não sabem que cem milhões de vezes essa matéria, quando estava a ponto de produzir um homem, se deteve para formar, ora uma pedra, ora chumbo, ora coral, ora uma flor, ora um cometa, para as excessivas ou muito poucas figuras que eram necessárias para projetar um homem.

Essa combinação de figuras elementares que determina a variedade das formas vivas liga a ciência epicuriana à genética do DNA.
Os sistemas para ir à Lua já oferecem uma amostragem da inventividade cyranesca: o patriarca Enoch amarra sob as axilas dois vasos cheios de fumaça de um sacrifício que deve subir ao céu; o profeta Elias realizou a mesma viagem instalando-se numa pequena embarcação de ferro e lançando para o ar uma bola imantada; quanto a ele, Cyrano, tendo untado com unguento à base de miolo de boi as amassaduras resultantes das tentativas precedentes, sentiu-se erguido na direção do satélite, porque a Lua costuma sugar o miolo dos animais.
A Lua abriga entre outras coisas o Paraíso impropriamente chamado de terrestre, e Cyrano cai justamente sobre a Árvore da Vida, emplastando a cara com uma das famosas maçãs. Quanto à serpente, depois do pecado original, Deus a relegou ao corpo do homem: é o intestino, serpente enrolada sobre si mesma, animal insaciável que domina o homem e o condiciona aos seus desejos e o dilacera com seus dentes invisíveis. 
Essa explicação é dada pelo profeta Elias a Cyrano, que não sabe conter uma salaz variação sobre o tema: a serpente é também aquela que sai do ventre do homem e se lança para a mulher a fim de espirrar seu veneno nela, provocando um inchaço que dura nove meses. Mas Elias de fato não gosta dessas brincadeiras de Cyrano e, diante de uma impertinência mais grave que as anteriores, expulsa-o do Éden. O que demonstra que nesse livro todo jocoso há brincadeiras que podem ser consideradas verdades e outras que não são ditas a sério, embora não seja fácil distingui-las.
Cyrano expulso do Éden visita as cidades da Lua: algumas móveis, com casas sobre rodas que podem mudar de aparência em cada estação; outras sedentárias, parafusadas no solo, onde podem enterrar-se durante o inverno para proteger-se das intempéries. Terá como guia uma personagem que esteve na Terra várias vezes em séculos diferentes: é o “demônio de Sócrates” do qual Plutarco falou num pequeno livro seu. Esse sábio espírito explica por que os habitantes da Lua não só se abstêm de comer carne, mas também tomam cuidados especiais em relação às hortaliças: só comem repolhos mortos de morte natural, pois decapitar um repolho é um assassinato para eles. De fato, nada nos garante que os homens, depois do pecado de Adão, sejam mais queridos por Deus que os repolhos nem que estes últimos sejam mais dotados de sensibilidade e beleza e feitos mais à imagem e semelhança de Deus.) “Portanto, se nossa alma não é mais o Seu retrato, não nos parecemos mais com Ele por causa das mãos, da boca, da testa, das orelhas que a planta por causa das folhas, das flores, do pedúnculo, do talo e da cabeça do repolho.” E quanto à inteligência, mesmo admitindo que os repolhos não tenham uma alma imortal, talvez participem de uma inteligência universal e se de seus conhecimentos ocultos jamais se nos revelou nada talvez seja só porque não estejamos à altura de receber as mensagens que nos mandam.
Qualidade intelectual e qualidade poética convergem em Cyrano e fazem dele um escritor extraordinário, no Seiscentos francês e em termos absolutos. Intelectualmente é um “libertino”, um polemista envolvido na confusão que está mandando para os ares a velha concepção do mundo: é partidário do sensualismo de Gassendi e da astronomia de Copérnico, mas é nutrido sobretudo pela “filosofia natural” do Quinhentos italiano: Cardano, Bruno, Campanella. (Quanto a Descartes, será em Histoire comique des états et empires du Soleil, seguido do livro sobre a Lua, que Cyrano o encontrará e fará com que seja acolhido naquele empíreo de Tommaso Campanella, que vai ao encontro dele e o abraça.)
Literariamente, é um escritor barroco (suas “cartas” contêm trechos de virtuose, como a Descrição de um cipreste, em que se diria que o estilo e o objeto descrito se tornam a mesma coisa) e sobretudo é escritor até o fundo, que não quer tanto ilustrar uma teoria ou defender uma tese quanto pôr em movimento um carrossel de invenções que equivalem, no plano da imaginação e da linguagem, àquilo que a nova filosofia e a nova ciência estão colocando em movimento no plano do pensamento. Em seu Histoire … Lune não é a coerência das ideias que conta, mas o divertimento e a liberdade com que ele se vale de todos os estímulos intelectuais que mais aprecia. É o conte philosophique que começa: e isso não quer dizer narrativa com uma tese a ser demonstrada, mas narrativa em que as ideias aparecem e desaparecem e fazem troça umas das outras, pelo prazer de quem tem familiaridade com elas para brincar mesmo quando as leva a sério.
Poderíamos dizer que a viagem à Lua de Cyrano antecipa em algumas situações as viagens de Gulliver: na Lua como em Brobdignag o visitante se encontra no meio de seres humanos muito maiores que ele e que o exibem como um animalzinho. Assim como a sequência de desventuras e de encontros com personagens de sabedoria as peripécias do Candide voltairiano. Mas o êxito literário de Cyrano foi mais tardio: esse livro saiu postumamente e mutilado pela censura de amigos temerosos e só veio à luz integralmente no século XX. Entretanto, a redescoberta de Cyrano ocorrera na época romântica: Charles Nodier primeiro e depois sobretudo Théophile Gautier haviam, baseando-se numa tradição anedótica dispersa, desenhado a personagem do poeta-espadachim e zombeteiro que depois o habilíssimo Rostand transformou no herói do bem-sucedido drama em versos.
Mas Savinien Cyrano na realidade não era nem nobre nem gascão, mas parisiense e burguês. (O predicado Bergerac fora acrescentado por ele, extraído do nome de uma propriedade de seu pai advogado.) O famoso nariz, é provável que o tivesse mesmo, dado que nesse livro encontramos um elogio dos narizes distintos, elogio que, embora pertencendo a um gênero comum na literatura barroca, é improvável que tivesse sido escrito por alguém de nariz pequeno, achatado ou parecido com focinho de cachorro. (Para saber a hora, os habitantes da Lua se valem de um meridiano natural formado pelo nariz comprido que projeta sua sombra sobre os dentes, usados como quadrante.)
Mas não se trata só de exibir o nariz: os lunares de condição nobre andam nus e como se não bastasse levam na cintura um pingente de bronze em forma de membro viril. “Esse uso me parece tão extraordinário”, disse ao meu jovem hóspede, “porque em nosso mundo é sinal de nobreza usar a espada”. Mas ele, sem se perturbar, exclamou:

Meu pequeno homem, como são fanáticos os grandes de seu mundo ao exibir um instrumento que designa o carrasco, construído só para destruir-nos, em suma, inimigo jurado de tudo aquilo que vive, e ao contrário esconder um membro sem o qual estaríamos na condição daquilo que não existe, o Prometeu de cada animal, o reparador incansável das debilidades da natureza! Infeliz lugar, em que os símbolos da procriação são objeto de vergonha e são honrados os da destruição! E, ainda por cima, vocês chamam aquele membro ‘as partes vergonhosas’, como se houvesse algo mais glorioso que dar a vida ou alguma coisa mais infame que tirá-la!”.

Onde se demonstra que o belicoso espadachim de Rostand era na realidade um adepto do “fazer amor e não a guerra”, mesmo tratando com indulgência uma ênfase procriadora que nossa época contraceptiva só pode considerar obsoleta.

Italo Calvino, in Por que ler os clássicos

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