quarta-feira, 7 de outubro de 2020

Xenofonte, Anábase

 


A impressão mais forte que Xenofonte causa para quem o lê hoje é a de estar vendo um velho documentário de guerra, como os que são reapresentados de vez em quando no cinema ou na televisão. O fascínio do preto e branco, do filme meio apagado, com fortes contrastes de sombras e movimentos acelerados, vem espontaneamente ao nosso encontro em trechos como este (capítulo V do Livro IV):

Sempre em cima de muita neve acumulada percorrem mais quinze parasangas em três dias. O terceiro dia é particularmente terrível por causa do vento tramontana que sopra no sentido contrário ao da marcha: sopra furiosamente por todos os cantos, queimando tudo e congelando os corpos… Para defender os olhos da reverberação da neve, os soldados, ao andar, colocam alguma coisa negra sobre os olhos; contra o perigo de congelamento, o remédio mais eficaz é mexer sempre os pés, não ficar parado nunca e sobretudo desatar os sapatos à noite… Um grupo de soldados, tendo ficado para trás por tais dificuldades, vislumbra não muito distante, numa vala em meio ao manto de neve, uma poça escura: é neve derretida, pensam. De fato, a neve se desfez naquele ponto, pela presença de uma nascente que brota ali perto, exalando vapores para o céu.

Mas citar Xenofonte não dá certo: aquilo que conta é a sucessão contínua de detalhes visuais e de ação; é difícil encontrar uma passagem que represente plenamente o prazer sempre variado da leitura. Tentemos esta, duas páginas antes:

Alguns gregos que se afastaram do campo contam ter vislumbrado à distância algo similar à massa de um exército e muitas fogueiras surgindo na noite. Ao ouvir isso, os estrategos consideram pouco seguro permanecer acampados de modo disperso e reúnem novamente o exército. Os soldados instalam-se todos ao ar livre, pois parece que vai haver bom tempo. Como se tivesse sido programado, durante a noite cai neve suficiente para cobrir armas, animais e homens encolhidos no chão; as bestas têm os membros tão enrijecidos pelo gelo que não conseguem erguer-se sobre as pernas; os homens hesitam em levantar-se, porque a neve depositada sobre os corpos e ainda não derretida transmite calor. Então, Xenofonte se levanta corajosamente e, despindo-se, começa a dar machadadas na lenha; a exemplo dele, alguém se ergue, arranca-lhe o machado das mãos e prossegue a obra; outros mais se levantam e acendem o fogo; todos untam braços e pernas não com óleo mas com unguentos encontrados na aldeia, feitos com sementes de gergelim, amêndoas amargas e almecegueira, misturados com gordura. Extraído das mesmas substâncias existe até um tipo de unguento perfumado.

A rápida mudança de uma representação visual para outra e daí para a anedota e de novo para o registro de costumes exóticos: este é o tecido que serve de fundo para um contínuo desenrolar de episódios aventurosos, de obstáculos imprevistos na marcha de um exército errante. Cada obstáculo é superado, em geral, mediante uma astúcia de Xenofonte: toda cidade fortificada a ser assaltada, toda tropa inimiga que se opõe em campo aberto, todo vau, toda intempérie exigem um achado, uma centelha de gênio, uma invenção estratégica do narrador-protagonista-comandante. Às vezes, Xenofonte parece uma daquelas personagens infantis de histórias em quadrinhos que, em cada capítulo, superam dificuldades impossíveis; ou melhor, muitas vezes os protagonistas do episódio são dois, os dois oficiais rivais, Xenofonte e Quirísofo, o ateniense e o espartano, e a invenção de Xenofonte é sempre a mais astuta, generosa e decisiva.

Em si mesmo, o tema da Anábase seria adequado a um conto picaresco ou herói-cômico: 10 mil mercenários gregos, engajados com pretexto mentiroso por um príncipe persa, Ciro, o jovem, numa expedição ao interior da Ásia Menor destinada na realidade a derrubar o irmão Artaxerxes II, são derrotados na batalha de Cunaxa e se encontram sem chefes, distantes da pátria, tendo de forçar o caminho de retorno entre populações inimigas. Só querem voltar para casa, mas, o que quer que façam, eles constituem um perigo público: são 10 mil, armados, famintos, aonde chegam depredam e destroem, como uma nuvem de gafanhotos; e arrastam um enorme séquito de mulheres.

Xenofonte não era o tipo de deixar-se tentar pelo estilo heroico da epopeia nem de explorar — a não ser raramente — os aspectos truculento-grotescos de uma situação como aquela. Escreve o memorial técnico de um oficial, um diário de viagem com todas as distâncias e os pontos de referência geográficos e informações sobre os recursos vegetais e animais, e uma resenha de problemas diplomáticos, logísticos, estratégicos e respectivas soluções.

O relato é entremeado de “atas de reuniões” do estado-maior e dos discursos de Xenofonte às tropas ou aos embaixadores dos bárbaros. Dessas passagens oratórias eu conservava, desde os bancos de escola, a lembrança de um grande tédio, mas me equivocava. O segredo, ao ler a Anábase, é jamais pular nada, acompanhar tudo ponto por ponto. Em cada um daqueles discursos existe um problema político: de política externa (as tentativas de relações diplomáticas com os príncipes e os chefes dos territórios através dos quais se pede passagem) ou de política interna (as discussões entre os chefes helênicos, com as habituais rivalidades entre atenienses e espartanos etc.). E como o livro é escrito em polêmica com outros generais, sobre as responsabilidades de cada um na condução daquela retirada, o fundo de polêmicas abertas ou apenas referidas precisa ser extraído daquelas páginas.

Como escritor de ação, Xenofonte é exemplar; se o confrontarmos com o autor contemporâneo que mais lhe corresponde — o coronel Lawrence — verificamos de que modo a mestria do inglês consiste em suspender — subentendido à exatidão, pura concretude, da prosa — um halo de maravilha estética e ética ao redor das histórias e das imagens; no grego não, a exatidão e a secura não deixam subentender nada: as duras virtudes do soldado não pretendem ser nada além das duras virtudes do soldado.

Existe, sim, um pathos da Anábase: é a ânsia do retorno, a angústia do país estrangeiro, o esforço de não se perder, pois enquanto estiverem juntos de algum modo carregam a pátria consigo. Essa luta pela volta de um exército conduzido à derrota numa guerra que não é sua e abandonado a si mesmo, esse combater só para abrir uma brecha contra ex-aliados e ex-inimigos, tudo isso aproxima a Anábase de um filão de nossas leituras recentes: os livros de memória sobre a retirada da Rússia dos alpinos italianos. Não é uma descoberta de agora: em 1953, Elio Vittorini, ao apresentar aquele que viria a tornar-se um livro exemplar no gênero, Il sergente nella neve de Mario Rigoni Stern, o definia como “pequena anábase dialetal”. E, de fato, os capítulos de retirada na neve da Anábase (dos quais extraí as citações anteriores) são ricos em episódios que poderiam ser tomados pelos do Sergente.

Característica de Rigoni Stern e de outros dentre os melhores livros italianos sobre a retirada da Rússia é que o narrador-protagonista é um bom soldado, tal como Xenofonte, e fala das ações militares com empenho e competência. Para eles como para Xenofonte as virtudes guerreiras, no desmoronamento geral das ambições mais pomposas, voltam a ser virtudes práticas e solidárias segundo as quais se mede a capacidade de cada um de ser útil não apenas a si mesmo mas também aos outros. (Lembremos La guerra dei poveri de Nuto Revelli pelo apaixonado furor do oficial desiludido; e um outro bom livro injustamente negligenciado, I lunghi fucili, de Cristoforo M. Negri.)

Porém, acabam aí as analogias. As memórias dos alpinos nascem do contraste de uma Itália humilde e sensata com as loucuras e o massacre da guerra total; nas memórias do general do século V, o contraste se dá entre a situação de nuvem de gafanhotos a que se reduziu o exército de mercenários helênicos e o exercício das virtudes clássicas, filosófico-cívico-militares, que Xenofonte e os seus tratam de adaptar às circunstâncias. E acontece que esse contraste não possui em absoluto a tragicidade comovente do outro: Xenofonte parece convencido de haver conciliado os dois termos. O homem pode reduzir-se a gafanhoto e mesmo assim aplicar a tal condição um código de disciplina e decoro — numa palavra: um “estilo”; e dar-se por satisfeito; não discutir nem muito nem pouco o fato de ser gafanhoto mas somente o modo de sê-lo. Em Xenofonte, já está bem delineada com todos os seus limites a ética moderna da perfeita eficiência técnica, do estar “à altura da situação”, do “fazer bem as coisas que têm de ser feitas” independentemente da avaliação da própria ação em termos de moral universal. Continuo a chamar de moderna essa ética porque assim era na minha juventude e era este o sentido que se extraía de tantos filmes americanos e também dos romances de Hemingway, e eu oscilava entre a adesão a esta moral “técnica” e “pragmática” e a consciência do vazio que se abria por baixo. Mas ainda hoje, quando parece tão longe do espírito da época, creio que tinha algo de bom.

Xenofonte tem o grande mérito, no plano moral, de não mistificar, de nunca idealizar a posição que defende. Se em relação aos costumes dos “bárbaros” manifesta frequentemente o distanciamento e a aversão do “homem civilizado”, deve ser dito que a hipocrisia “colonialista” lhe era estranha. Sabe que comanda uma horda de bandidos em terra estrangeira, sabe que a razão não pertence a ele mas aos bárbaros invadidos. Em suas exortações aos soldados não deixa de relembrar as razões dos inimigos: “Uma outra consideração vocês precisam fazer. Os inimigos terão tempo para destruir-nos e possuem boas razões para preparar-nos ciladas, já que ocupamos suas propriedades…”. Ao tentar conferir um estilo, uma norma, a essa movimentação biológica de homens ávidos e violentos entre as montanhas e as planícies da Anatólia, encontra-se toda a sua dignidade: dignidade limitada, não trágica, no fundo burguesa. Sabemos que se pode muito bem conseguir dar aparência de estilo e dignidade às piores ações, mesmo quando não ditadas como essas por um estado de necessidade. O exército dos helenos que serpenteia entre os desfiladeiros das montanhas e os vaus, entre contínuas emboscadas e saques, não mais distinguindo onde passa de vítima a opressor, circundado também na frieza dos massacres pela suprema hostilidade da indiferença e do acaso, inspira uma angústia simbólica que talvez só nós possamos entender.

Italo Calvino, in Por que ler os clássicos

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