terça-feira, 13 de outubro de 2020

Sob as toras de madeira

        O jovem canadense, que não devia ter mais de quinze anos, tinha hesitado demais. Por um momento, seus pés pararam de se mover sobre as toras de madeira que flutuavam logo acima da curva do rio, ele escorregou e submergiu antes que alguém pudesse agarrar sua mão estendida. Um dos madeireiros estendeu a mão para agarrar o cabelo comprido do rapaz – os dedos do homem tatearam dentro da água gelada, que estava grossa, densa, cheia de pedaços de casca de árvore. Então duas toras colidiram com força no braço do aspirante a salvador, quebrando-lhe o pulso. O tapete de toras flutuantes fechou-se completamente sobre o jovem canadense, que não voltou à tona; nem mesmo uma de suas botas ou a mão apareceu na superfície daquela água marrom.
Num engavetamento de toras de madeira, assim que a tora principal era liberada, os condutores tinham que se mover depressa e continuamente; se parassem mesmo que só por um ou dois segundos, seriam arremessados na correnteza. Num comboio de madeira pelo rio, a morte entre toras em movimento podia ocorrer por esmagamento, antes que a pessoa tivesse a chance de se afogar – mas o mais comum era o afogamento.
Da margem do rio, onde o cozinheiro e o seu filho de doze anos podiam ouvir os xingamentos do madeireiro cujo pulso tinha sido quebrado, ficou logo claro que alguém estava mais encrencado do que o aspirante a salvador, que havia soltado o braço machucado e conseguido recuperar o equilíbrio sobre as toras flutuantes. Seu companheiro no comboio ignorou-o; eles se moveram com passos rápidos e curtos na direção da margem, gritando o nome do rapaz desaparecido. Os madeireiros procuravam sem parar com seus ganchos, direcionando as toras à frente deles. Eles estavam, principalmente, procurando o caminho mais seguro para a margem, mas para o filho esperançoso do cozinheiro, parecia que eles estavam criando um espaço de largura suficiente para o jovem canadense emergir. Na realidade, havia agora apenas intervalos intermitentes entre as toras. O rapaz que tinha dito a eles chamar-se “Angel Pope, de Toronto”, desapareceu rapidamente.
É o Angel? – o menino de doze anos perguntou ao pai. Este menino, de olhos castanho-escuros e expressão séria e intensa, poderia ser confundido com um irmão mais moço de Angel, mas não havia como negar sua semelhança com seu sempre atento pai. O cozinheiro emanava uma aura de apreensão controlada, como se rotineiramente antecipasse os desastres mais imprevistos, e havia algo no ar sério do filho que refletia isso; na verdade, o menino se parecia tanto com o pai que diversos madeireiros já haviam manifestado surpresa de que o filho não tivesse o andar manco do pai.
O cozinheiro sabia muito bem que fora o jovem canadense quem havia caído sob as toras. Foi o cozinheiro que avisara aos madeireiros que Angel era inexperiente demais para o trabalho de transportar madeira pelo rio; o rapaz não devia estar tentando desfazer um engavetamento. Mas provavelmente o rapaz estava louco para agradar, e talvez os madeireiros não tivessem prestado atenção nele no começo.
Na opinião do cozinheiro, Angel Pope também era inexperiente e desajeitado demais para estar trabalhando perto da lâmina principal de uma serraria. Esse era estritamente o território do serrador – um cargo altamente qualificado nas serrarias. O operador de plaina também fazia um trabalho relativamente qualificado, embora não especialmente perigoso.
As tarefas mais perigosas e menos qualificadas eram trabalhar no deque de toras, onde as toras eram roladas para dentro da serraria e para cima do carro de serra, ou descarregando toras dos caminhões. Antes do advento dos carregadores mecânicos, as toras eram descarregadas soltando-se uma alavanca do lado do caminhão – isto permitia que a carga toda rolasse para fora do caminhão ao mesmo tempo. Mas as alavancas às vezes não funcionavam; os homens às vezes eram apanhados sob uma cascata de toras enquanto estavam tentando liberar uma carga.
Na opinião do cozinheiro, Angel não deveria estar fazendo nenhum trabalho que o colocasse perto de toras em movimento. Mas os madeireiros gostavam tanto do jovem canadense quanto o cozinheiro e o filho dele, e Angel tinha dito que estava entediado de trabalhar na cozinha. O rapaz queria fazer um trabalho mais pesado, e gostava do ar livre.
O ruído constante dos ganchos batendo nas toras foi brevemente interrompido pelos gritos dos madeireiros que avistaram o gancho de Angel – a mais de cinquenta metros do local onde o rapaz desapareceu. A vara de quase cinco metros estava flutuando onde a correnteza do rio a havia levado, longe das toras.
O cozinheiro viu que o madeireiro com o pulso quebrado tinha chegado na margem, carregando seu gancho com a mão boa. Primeiro pela familiaridade dos seus palavrões, e em segundo lugar pelo cabelo mechado e a barba desgrenhada do madeireiro, o cozinheiro percebeu que o homem machucado era Ketchum – nenhum neófito na tarefa traiçoeira de conduzir toras de madeira.
Era abril – pouco depois do último degelo e do começo da estação de lama – mas o gelo só se quebrara recentemente na bacia do rio, com as primeiras toras caindo na corrente de gelo da bacia que dava nos lagos Dummer. O rio estava gelado e cheio, e muitos dos madeireiros tinham cabelos compridos e barbas espessas, o que lhes dava uma certa proteção contra os mosquitos de meados de maio.
Ketchum deitou-se de costas na margem do rio como um urso encalhado. A massa de toras flutuantes passou por ele. Parecia que o comboio de toras era uma jangada e os madeireiros que ainda estavam no rio pareciam náufragos no mar – só que o mar, de um momento para outro, passava de marrom esverdeado para preto azulado. A água do rio Twisted era tingida de tanino.
Que merda, Angel! – Ketchum gritou. – Eu disse para bater os pés, Angel. Você tem que ficar batendo os pés! Que merda.
A vasta extensão de toras não servira de jangada salvadora para Angel, que tinha se afogado ou sido esmagado na bacia após a curva do rio, embora os madeireiros (Ketchum inclusive) fossem seguir o comboio de toras pelo menos até onde o rio Twisted desaguava no Reservatório Pontook, da Represa Dead Woman. A Represa Pontook do rio Androscoggin tinha criado o reservatório; depois que as toras fossem soltas no Androscoggin, elas iriam encontrar em seguida os espaços de triagem perto de Milan. Em Berlin, o Androscoggin caía sessenta metros em três milhas; duas fábricas de papel pareciam dividir o rio nos intervalos de triagem em Berlin. Não era inconcebível imaginar que o jovem Angel Pope, de Toronto, estivesse a caminho de lá.

John Irving, in A última noite perto do rio

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