segunda-feira, 12 de outubro de 2020

Fechados

          Conheço um rapaz que fantasia o tempo todo. Quer dizer, o sujeito caminha pela rua com os olhos fechados. Um dia, sentado no banco do carona do carro dele, olhei para a esquerda e o vi com ambas as mãos no volante e os olhos fechados. Falando sério, ele dirigia de olhos fechados.
Chagui – digo –, isso não é uma boa ideia. Abra os olhos, cara. – Mas ele continuou dirigindo como se tudo estivesse bem.
Você sabe onde estou agora? – ele me pergunta.
Abra os olhos – insisto. – Vamos, abra logo, isso já está me assustando. – Por milagre, não acabou em desastre.
O fulano fantasia sobre casas de outras pessoas, fantasia que são a casa dele. Sobre carros, sobre trabalhos. Não importa o trabalho. Sobre a esposa. Imagina que outras mulheres são a sua esposa. E também sobre crianças. Crianças que encontrava na rua ou no parque, ou que tinha visto em algum seriado de TV. Imagina-as no lugar de seus filhos. Passava horas fazendo isso. Se dependesse dele, passaria a vida inteira assim.
Chagui – eu lhe digo –, Chagui, acorde. Acorde para a sua própria vida. Você tem uma vida incrível. Uma mulher fantástica. Filhos encantadores. Acorde.
Pare – ele responde, afundado em seu pufe. – Pare, não estrague tudo. Você sabe com quem eu estou agora? Com Yotam Ratsabi, que serviu comigo no batalhão como sargento de operações. Estou em um passeio de jipe com Yotam Ratsabi. Só eu, Yoti e o pequeno Eviatar Mendelssohn. Ele é o garoto mais espertinho da turma de Amit no jardim. E Eviatar, este pequeno demônio, me diz: “Papai, estou com sede. Você pode me dar uma cerveja?” Você percebe? O menino nem tem sete anos. Então eu digo: “Não dá para ser cerveja, Evi. Mamãe não deixa.” A mãe dele, minha ex, é Lilach Yedidia, da época da escola. Bonita como uma modelo, reconheço, mas dura, dura como uma pedra.
Chagui – digo do sofá –, não é seu filho e não é sua esposa. Você não está divorciado, cara, você é feliz no casamento. Abra os olhos.
Toda vez que vou devolver o menino para ela, fico de pau duro – Chagui continua, como se não me ouvisse –, como o mastro de um navio. Ela é linda, minha ex, bonita, mas dura. E essa dureza é que me faz ficar de pau duro.
Ela não é sua ex, e não é bem uma ereção isso que você tem. – Eu sei do que estou falando. Ele está a um metro de distância de mim, de cueca. Sem
Tivemos que nos separar – diz ele –, eu não me sentia bem com ela. E ela? Nem ela ficava bem com ela mesma.
Chagui – eu imploro –, o nome de sua esposa é Karny. E sim, ela é linda. Mas ela não é dura. Não com você. – A esposa dele é muito suave. Ela tem a alma gentil de um pássaro e um grande coração, sente pena de todos. Já estamos juntos há nove meses. Chagui começa a trabalhar cedo, então eu venho vê-la às oito e meia, logo depois que ela deixa as crianças na escola.
Lilach e eu nos conhecemos no ensino médio – ele continua. – Ela foi a minha primeira e eu fui o primeiro dela. Depois que nos divorciamos, transei muito por aí, mas nenhuma das mulheres chegou aos pés dela. E ela, pelo menos de longe, parece que ainda está sozinha. Se eu descobrisse de repente que ela tem alguém, isto iria me quebrar, ainda que estejamos divorciados. Me quebraria em pedaços. Eu simplesmente não suportaria. Nenhuma das outras significa alguma coisa. Apenas ela. Ela é a única que sempre esteve lá.
Chagui, ela se chama Karny, e ninguém está com ela. Vocês ainda são casados.
Com Lilach também não tem ninguém – diz ele, e lambe os lábios secos –, nem com Lilach. Eu me mataria se houvesse.
Karny chega agora em casa, carregando uma sacola de compras. Ela joga um oi casual em minha direção. Desde que estamos juntos, tenta parecer mais distante quando há outras pessoas ao redor. Ela nem cumprimenta Chagui, sabe que não tem o que conversar com ele quando os olhos dele estão fechados.
A minha casa – diz ele – fica bem no centro de Tel Aviv. Bonita, com uma amoreira junto à janela. Mas é pequena, de fato muito pequena. Preciso de mais um quarto. Nos fins de semana, quando as crianças estão comigo, preciso abrir o sofá para elas na sala. Não é legal. Se eu não encontrar uma solução até o verão, vou ter de me mudar.

Etgar Keret, in De repente, uma batida na porta

Nenhum comentário:

Postar um comentário