Ainda
continuo um pouco sem jeito na minha nova função daquilo que não
se pode chamar propriamente de crônica. E, além de ser neófita no
assunto, também o sou em matéria de escrever para ganhar dinheiro.
Já trabalhei na imprensa como profissional, sem assinar. Assinando,
porém, fico automaticamente mais pessoal. E sinto-me um pouco como
se estivesse vendendo minha alma. Falei nisso com um amigo que me
respondeu: mas escrever é um pouco vender a alma. É verdade. Mesmo
quando não é por dinheiro, a gente se expõe muito. Embora uma
amiga médica tenha discordado: argumentou que na sua profissão dá
sua alma toda, e no entanto cobra dinheiro porque também precisa
viver. Vendo, pois, para vocês com o maior prazer uma certa parte de
minha alma – a parte de conversa de sábado.
Só
que, sendo neófita, ainda me atrapalho com a escolha dos assuntos.
Nesse estado de ânimo estava eu quando me encontrava na casa de uma
amiga. O telefone tocou, era um amigo mútuo. Também falei com ele,
e, é claro, anunciei-lhe que minha função era escrever todos os
sábados. E sem mais nem menos perguntei: “o que mais interessa às
pessoas? Às mulheres, digamos.” Antes que ele pudesse responder,
ouvimos do fundo da enorme sala a minha amiga respondendo em voz alta
e simples: “O homem.” Rimos, mas a resposta é séria. É com um
pouco de pudor que sou obrigada a reconhecer que o que mais interessa
à mulher é o homem.
Mas
que isso não nos pareça humilhante, como se exigissem que em
primeiro lugar tivéssemos interesses mais universais. Não nos
humilhemos, porque se perguntarmos ao maior técnico do mundo em
engenharia eletrônica o que é que mais interessa ao homem, a
resposta íntima, imediata e franca, será: a mulher. E de vez em
quando é bom lembrarmo-nos dessa verdade óbvia, por mais
encabulante que seja. Hão de perguntar: “mas em matéria de gente,
não são os filhos o que mais nos interessa?” Isto é diferente.
Filhos são, como se diz, a nossa carne e o nosso sangue, e nem se
chama de interesse. É outra coisa. É tão outra coisa que qualquer
criança do mundo é como se fosse nossa carne e nosso sangue. Não,
não estou fazendo literatura. Um dia desses me contaram sobre uma
menina semiparalítica que precisou se vingar quebrando um jarro. E o
sangue me doeu todo. Ela era uma filha colérica.
O
homem. Como o homem é simpático. Ainda bem. O homem é a nossa
fonte de inspiração? É. O homem é o nosso desafio? É. O homem é
o nosso inimigo? É. O homem é o nosso rival estimulante? É. O
homem é o nosso igual ao mesmo tempo inteiramente diferente? É. O
homem é bonito? É. O homem é engraçado? É. O homem é um menino?
É. O homem também é um pai? É. Nós brigamos com o homem?
Brigamos. Nós não podemos passar sem o homem com quem brigamos?
Não. Nós somos interessantes porque o homem gosta de mulher
interessante? Somos. O homem é a pessoa com quem temos o diálogo
mais importante? É. O homem é um chato? Também. Nós gostamos de
ser chateadas pelo homem? Gostamos.
Poderia
continuar com esta lista interminável até meu diretor mandar parar.
Mas acho que ninguém mais me mandaria parar. Pois penso que toquei
num ponto nevrálgico. E, sendo um ponto nevrálgico, como o homem
nos dói. E como a mulher dói no homem.
Com
a minha mania de andar de táxi, entrevisto todos os choferes com
quem viajo. Uma noite dessas viajei com um espanhol ainda bem moço,
de bigodinho e olhar triste. Conversa vai, conversa vem, ele me
perguntou se eu tinha filhos. Perguntei-lhe se ele também tinha,
respondeu que não era casado, que jamais se casaria. E contou-me sua
história. Há catorze anos amou uma jovem espanhola, na terra dele.
Morava numa cidade pequena, com poucos médicos e recursos. A moça
adoeceu, sem que ninguém soubesse de quê, e em três dias morreu.
Morreu consciente de que ia morrer, predizendo: “Vou morrer em teus
braços.” E morreu nos braços dele, pedindo: “Que Deus me
salve.” O chofer durante três anos mal conseguia se alimentar. Na
cidade pequena todos sabiam de sua paixão e queriam ajudá-lo.
Levavam-no para festas, onde as moças, em vez de esperar que ele as
tirasse para dançar, pediam-lhe para dançar com elas.
Mas
de nada adiantou. O ambiente todo lembrava-lhe Clarita – este é o
nome da moça morta, o que me assustou porque era quase meu nome e
senti-me morta e amada. Então resolveu sair da Espanha e nem avisar
aos pais. Informou-se de que só dois países na época recebiam
imigrantes sem exigir carta de chamada: Brasil e Venezuela.
Decidiu-se pelo Brasil. Aqui enriqueceu. Teve uma fábrica de
sapatos, vendeu-a depois; comprou um bar-restaurante, vendeu-o
depois. É que nada importava. Resolveu transformar seu carro de
passeio em carro de praça e tornou-se chofer. Mora numa casa em
Jacarepaguá, porque “lá tem cachoeiras de água doce (!) que são
lindas”. Mas nesses catorze anos não conseguiu gostar de nenhuma
mulher, e não tem “amor por nada, tudo dá no mesmo para ele”.
Com delicadeza o espanhol deu a entender que no entanto a saudade
diária que sente de Clarita não atrasa sua vida, que ele consegue
ter casos e variar de mulheres. Mas amar – nunca mais.
Bom.
Minha história termina de um modo um pouco inesperado e assustador.
Estávamos
quase chegando ao meu ponto de parada, quando ele falou de novo na
sua casa em Jacarepaguá e nas cachoeiras de água doce, como se
existissem de água salgada. Eu disse meio distraída: “Como
gostaria de descansar uns dias num lugar desses.”
Pois
calha que era exatamente o que eu não devia ter dito. Porque, sob o
risco de enveredar com o carro por alguma casa adentro, ele
subitamente virou a cabeça para trás e perguntou-me com a voz
carregada de intenções: “A senhora quer mesmo?! Pois pode vir!”
Nervosíssima com a repentina mudança de clima, ouvi-me responder
depressa e alto que não podia porque ia me operar e “ficar muito
doente”(!). Dagora em diante só entrevistarei os choferes bem
velhinhos. Mas isso prova que o espanhol é um homem sincero: a
saudade intensa por Clarita não atrasa mesmo sua vida.
O
final dessa história desilude um pouco os corações sentimentais.
Muita gente gostaria que o amor de catorze anos atrasasse e muito a
sua vida. A história ficaria melhor. Mas é que não posso mentir
para agradar vocês. E além do mais acho justo que a vida dele não
fique totalmente atrasada. Já basta o drama de não conseguir amar
ninguém mais.
Esqueci
de dizer que ele também me contou histórias de negócios comerciais
e de desfalques – a viagem era longa, o tráfego péssimo. Mas
encontrou em mim ouvidos distraídos. Só o que se chama de amor
imorredouro tinha me interessado. Agora estou me lembrando
vagamente do desfalque. Talvez, concentrando-me, eu me lembre melhor,
e conte no próximo sábado. Mas acho que não interessa.
Clarice
Lispector, in Todas as crônicas
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