terça-feira, 21 de julho de 2020

As flores de Novidade


Novidade Castigo era filha de Verónica Manga e do mineiro Jonasse Nhamitando. Lhe apelidaram de Castigo pois ela viera ao mundo como uma punição. Se adivinhou logo na nascença pelo azul que a menina trazia nos olhos. Negra, filha de negros: de onde vinha tal azul?
Iniciemos pela moça: ela era espantadamente bela, com face de invejar aos anjos. Nem água fosse mais cristalinda. O porém dela, contudo: era vagarosa de mente, o pensamento parecia nela não pernoitar. Ficara-se assim, desacertada, certa uma vez em que, já moça, foi atacada de convulsões.
Nessa noite, Verónica estava sentada na varanda quando sentiu o aranhiçar da insónia em seu peito.
Esta noite vou contar estrelas, pressentiu-se.
A noite já roía as unhas à madrugada foi quando aconteceu. No cantinho da casa, a moça se despertou, em espasmos e esticões. Parecia a carne se queria soltar da alma. A mãe, na adivinhação das sombras, sentiu o surdo aviso: que foi? Leve como um susto, acorreu ao leito de Novidadinha. Em casa de pobre tudo está certo, conforme no arrumo ou desalinho. Verónica Manga atravessou o escuro, evitou caixotes e latões, saltou enxadas e sacos a pontos de se acercar da filha e lhe ver o braço, erguido como drapejante bandeira. Verónica nem chamou o pai, não merecia a pena suspender o descanso dele.
Só na seguinte manhã ela ao homem anunciou o acontecido. Ele se preparava para despegar para o trabalho, em véspera de descida ao fundo da montanha. Parou na porta, reconsiderou intenção. Jonasse Nhami-tambo, todo pai, foi ao quarto da menina e lhe encontrou, parada, só com vontade de sossego. Sem tirar a áspera luva passou uma carícia pelo rostinho dela. Despedia-se daquela outra, a que já fora sua menina? Depois, o pai se afastou em modos da nuvem que se aparta da água.
Passou-se o tempo, num abrir sem fechar de olhos. Novidade crescia, sem novidade. Os pais confirmavam e se conformavam: aquela filha fechara o ventre de Verónica. Não era filha única: era filha-nenhuma, criatura de miolo miudinho. Jonasse era homem bondoso, não abandonou Verónica. E a filha, naquele pacto com o vazio, dedicava amores e ternuras a seu pai. Não que ela se explicasse em perceptíveis palavras. Mas pelo modo como ela esperava, suspensa, a chegada do mineiro. Enquanto durasse o turno dele, a menina se perplexava, sem comer nem beber. Só depois de o pai retornar a menina voltava a atinar seu rosto e, em sua voz de riachinho, se adivinhavam cantigas que ninguém, senão ela, conhecia. E havia ainda as prendas que ela para ele recolhia: bizarras florinhas, da cor de nenhum outro azul que não fosse o encontrável em seus olhos. Ninguém nunca soube onde ela recolhia tais pétalas.
Muitas noites além, a família repadeceu os acontecimentos. Jonasse não se encontrava. O mineiro esburacava a terra, em turno noturno. Em casa, a mãe ainda deixou seus olhos sobrarem na copa da luz do xipefo. Costurava tecido nenhum, roupinhas para um filho que, conforme o sabido, nunca haveria de vir. Novidadinha, a seu lado, dormitava. Foi quando a moça se franziu, convulsiva, em epilapsos. A mãe, repentina, acudiu. No sobressalto, ela desmanchou a claridade, entornando luz e lamparina. Enquanto desalvoroçava a menina, lábios e sopros, Verónica Manga procurou os fósforos sobre a caixa. Só então foi chamada a um barulho enlameado que chegava de fora, lá da montanha. Era o quê? A mina explodindo? Céus, se arrepiou. E Jonasse, seu marido?
A mulher zululuava pela casa, num corre-morre, de aflição para susto, mosca em rabo de boi. E vieram as maiores explosões. Espreitada da janela, a montanha parecia o pangolim cuspidor de incêndios. Desabariam rochas e penedos por cima das casas? Não, a montanha, aquela, tinha muita consistência. E Jonasse? A mulher sabia que devia esperar pela manhã para saber novas de seu marido. Mas a menina se antecipou à claridade. Em silêncio recolheu seus pequenitos bens em cestinho e saco. Depois, arrumou as pertenças da mãe na velha mala. De sua boca saíram as magras palavras, em suave ordem:
Vamos, mãe!
Sem pensar, a mãe abandonou o seu lugar, ali onde ninhara por plenos anos. E se deixou conduzir pela mão da menina, confiante em não se sabe qual sapiência dela. No caminho, as duas se entrecruzaram com uns alguns, fugidios como elas. E Verónica lhes perguntou:
Isso que se escuta: é o quê?
Não era a mina. Eram explosões militares, a guerra que chegava. E nossos maridos, que lugar é o deles se salvarem?
Não há tempo. Suba no camião, lhe responderam.
E subiram. Verónica acomodou melhor suas coisas que a si própria, fez sentar Novidade em cima do cesto. E o motor girou, rodando mais lento que seus olhos na ânsia de ver aparecer Jonasse, correndo entre os fumos e zonzeiras. O camião partiu, somando as demais poeiras e explosões. A mãe fitou a filha, o sossego de seu rosto, seu sujo vestido. O que ela fazia? Cantarolava. No flagrante de toda aquela voragem, a moça peneirava alegriazinhas em cantigas de surdina. Desenvenenava o tempo, sempre grávido de desgraça?
No meio de bombas e tiros, o camião progrediu até passar defronte da mina onde Jonasse trabalhava. Então, a menina, desafiando o andamento do momento, saltou para o desaconselhável chão. Avançou umas passadas, endireitando as rugas de seu vestidinho, se virou para trás para dedicar uma delicadeza a sua mãe. Em espanto, o veículo estacou. Novidadinha retomou o passo, cruzando a estrada em certo e exposto perigo. O camião apitava, buzina em fúria. Que ali se demorava apenas a morte. A moça não parecia nem ouvir. Estava na estrada como se ela fosse seu inteiro caminho. No abecedário de seus passos se via não haver arrogância, nem proclamação. O estar-se ruando, atrapalhando o caos, não era desafio mas singela distração. Ela fazia valer o azul de seus olhos. O camionista, nervoso, a chamou por última vez. E os restantes gritavam para a mãe impor ordem de regresso. Mas Verónica não mexeu palavra.
Sobre um monte de areias tiradas da mina, Novidadinha se debruçou para colher flores silvestres, dessas que espreitam nas bermas. Escolhia com o vagar de cemitério. E parou frente a umas azulzinhas, de igual cor de seus olhos. O camião, desistido de esperar, acossado por afligidas vozearias, repentinou-se estrada afora. A mãe teimou atenção em sua filha, fosse querer saber o último desenho de seu destino. O que se passou, quem sabe, só ela viu. Lá, entre a poeira, o que sucedia era as flores, aquelas de olhar azul, se encherem de tamanho. E, num somado gesto, colherem a menina. Pegaram Novidadinha por suas pétalas e a puxaram terra-abaixo. A moça parecia esperar esse gesto. Pois ela, sempre sorrindo, se susplantou, afundada no mesmo ventre em que via seu pai se extinguir, para além das vistas, para além do tempo.
Mia Couto, in Estórias abensonhadas

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