terça-feira, 9 de junho de 2020

Um fiapinho de grama



Nunca soube exatamente por que, mas Chuck, Eddie, Gene e Frank deixaram que me juntasse a alguns dos seus jogos. Acho que isso começou quando outro cara apareceu e eles precisavam de três para cada lado. Eu ainda precisava treinar mais para me tornar realmente bom, mas estava melhorando. Sábado era o melhor dia. Era quando disputávamos nossos maiores jogos, outros garotos entravam nos times, e jogávamos futebol na rua. Sobre o gramado, jogávamos o futebol de verdade, com bloqueios e tudo. Na rua, jogávamos o de toque. Nessa modalidade, havia mais passes, porque não podíamos ir muito longe numa corrida.
Lá em casa a coisa estava feia, meus pais não paravam de brigar e, como consequência, quase que se esqueceram de mim. Eu ia jogar futebol todos os sábados. Durante um dos jogos, rompi pelo espaço aberto atrás do último defensor e vi Chuck me lançar a bola. Era um arremesso longo e com efeito e eu continuei correndo. Olhei por sobre o ombro, vi a bola chegando, ela caiu bem nas minhas mãos e eu a segurei, chegando à linha do touchdown.
Então ouvi a voz do meu pai gritar:
HENRY!
Ele estava parado na frente de casa. Passei a bola para um dos caras do meu time para que eles pudessem dar o chute de finalização e caminhei até onde meu pai estava. Ele parecia furioso. Eu quase podia sentir sua raiva. Ele sempre parava com um dos pés um pouco mais à frente que o outro, o rosto vermelho, e eu podia ver como sua barriga subia e descia no compasso da sua respiração. Ele tinha 1,89 metro de altura e, como eu disse, parecia ser constituído apenas de orelhas, boca e nariz quando estava furioso. Eu não podia olhar nos seus olhos.
Muito bem – ele disse –, você já tem idade suficiente para cortar a grama agora. Já está bem crescidinho para cortá-la, apará-la e regá-la, além de molhar também as flores do jardim. Já está mais do que na hora de você fazer alguma coisa pela casa. Está na hora de você mexer esse rabo!
Mas estou jogando futebol com os garotos. Sábado é o único dia em que tenho uma chance de verdade.
Você está me retrucando?
Não.
Pude ver minha mãe assistindo a tudo por detrás das cortinas. Sábado era o dia em que faziam uma faxina completa na casa. Aspiravam os tapetes e lustravam a mobília. Retiravam os tapetes e passavam cera no chão, para depois recolocar os tapetes. Nem dava para ver o local que eles haviam encerado.
O cortador de grama e o podador estavam na entrada da garagem.
Agora você vai pegar o cortador e vai percorrer todo o gramado, sem deixar de passar em nenhum lugar. Esvazie o saco de grama aqui, cada vez que ele ficar cheio. Agora, depois que você tiver percorrido o gramado em uma direção e terminado, pegue o cortador e passe na direção contrária, entendeu? Primeiro, você faz o sentido norte-sul; depois, leste-oeste. Entendeu bem?
Sim.
E não me olhe com esse olhar tão cheio de infelicidade ou lhe darei realmente uma razão para se sentir infeliz! Depois que você terminar de cortar, pegue os podadores. Corte as extremidades do gramado com a pequena tesoura. Corte até debaixo da sebe, corte cada pedacinho de grama! Então... você pega essa lâmina circular e corta rente à borda. É preciso que a borda do gramado fique absolutamente perfeita! Entendeu?
Sim.
Depois que você tiver terminado essa tarefa, você pega isso aqui...
Meu pai me mostrou um tesourão.
...e se ajoelha e vai percorrendo o gramado em busca de pontas que não foram cortadas. Depois você pega a mangueira e rega as sebes e os canteiros de flores. Então você liga o irrigador e deixa a água correr por uns quinze minutos em cada parte do gramado. Você faz tudo isso no gramado da frente e também nos canteiros, e depois repete no gramado e nos canteiros dos fundos. Alguma pergunta?
Não.
Muito bem, agora quero lhe dizer uma coisa. Virei aqui fora conferir o seu trabalho quando estiver ter minado, e depois de encerrado, NÃO QUERO VER UM FIAPINHO DE GRAMA SOBRANDO NEM NO GRAMADO DA FRENTE NEM NO DOS FUNDOS! NEM UM FIAPINHO! AI DE VOCÊ SE...
Deu a volta, passou pela entrada da garagem, cruzou a varanda, abriu a porta, bateu-a, e entrou em casa. Peguei o cortador, percorri a distância até o gramado e comecei a passá-lo no primeiro sentido, norte-sul. Podia ouvir os garotos jogando futebol rua abaixo...
Terminei de cortar, podar e aparar o gramado da frente. Reguei os canteiros, ajeitei o irrigador e me dirigi para o gramado dos fundos. Havia uma faixa de grama no caminho que levava para o pátio de trás. Cuidei da faixa também. Não sabia se estava infeliz. Sentia-me miserável demais para ser infeliz. Era como se o mundo inteiro houvesse se transformado num gramado e minha missão fosse abrir caminho nele. Segui me esforçando e trabalhando, mas subitamente desisti. Levaria horas, o resto do dia, e o jogo teria terminado. Os garotos teriam ido jantar, o sábado teria acabado, e eu continuaria cortando grama.
Quando comecei a cortar a grama dos fundos, percebi meu pai e minha mãe parados na porta dos fundos me observando. Ficaram lá em silêncio, sem se mover. Numa das vezes em que passei empurrando o cortador, ouvi minha mãe dizer para meu pai:
Veja só, ele não sua como você quando corta a grama. Veja como ele parece calmo.
CALMO? ELE NÃO ESTÁ CALMO, ELE ESTÁ É MORTO!
Quando voltei a passar na frente deles, ouvi-o:
EMPURRE ESSA COISA MAIS DEPRESSA! VOCÊ SE ARRASTA COMO UMA LESMA!
Empurrei o cortador mais depressa. Era difícil, mas a sensação era boa. Empurrei-o mais e mais depressa. Estava quase correndo com o cortador. A grama cortada voava com tanta força que grande parte dela caía fora do saco. Sabia que isso ia irritá-lo.
SEU FILHO DA PUTA! – ele gritou.
Vi quando ele saiu correndo porta afora em direção à garagem. Voltou com um pedaço de madeira de uns cinco por dez centímetros. Com o canto do olho o vi jogar o objeto contra mim. Percebi a madeira vindo, mas não fiz nenhum esforço para evitar o impacto. O pedaço me acertou na parte de trás da perna direita. A dor foi terrível. A perna inchou, e tive dificuldade em continuar caminhando. Continuei empurrando o cortador, tentando não mancar. Quando me virei para cortar outra seção do gramado, o toco de madeira estava no caminho. Peguei-o, jogando-o para um dos lados e segui adiante. A dor estava piorando. Então meu pai parou bem junto de mim.
PARE!
Parei.
Quero que você refaça o trajeto nos locais em que você deixou os pedaços de grama cortada caírem fora do saco! Está me entendendo?
Sim.
Meu pai caminhou de volta até a casa. Pude vê-lo, ao lado de minha mãe, me espreitando da porta dos fundos.
A parte final do trabalho era varrer todas as gramas que tinham caído na calçada e em seguida lavá-la com a mangueira. Eu estava quase terminando, faltava apenas acionar o irrigador por quinze minutos em cada seção do gramado dos fundos. Quando eu arrastava a mangueira até o local para ajeitar o irrigador, meu pai saiu da casa.
Antes de você começar com o irrigador, quero ver se não ficou nenhum fiapinho nesse gramado.
Meu pai caminhou até o centro do pátio, ficou de quatro e baixou bem a cabeça até quase roçar a grama com o lado do rosto, procurando pela mínima pontinha que pudesse sobressair. Ficou procurando, movendo o pescoço para lá e para cá, revisando com cuidado. Esperei.
A-HA!
Deu um pulo e correu na direção da casa.
MAMÃE! MAMÃE!
Lançou-se desabalado porta adentro.
O que houve?
Encontrei um fiapo!
Sério?
Venha, deixa eu lhe mostrar!
Saiu da casa apressado com minha mãe a segui-lo.
Aqui! Aqui! Vou lhe mostrar!
Ficou novamente de quatro.
Estou vendo! Vejo dois fiapinhos!
Minha mãe se pôs ao seu lado.
Sim, paizinho, também os vejo...
Ambos se ergueram. Minha mãe foi para dentro de casa. Meu pai olhou para mim.
Pra dentro…
Caminhei até a porta e entrei. Meu pai veio atrás de mim.
Pro banheiro.
Meu pai fechou a porta.
Baixe as calças. Ouvi-o pegar o amolador de navalha. Minha perna direita continuava doendo. De nada ajudava conhecer o cas tigo, tantas vezes já aplicado. Para o mundo inteiro lá fora era indiferente o que se passava aqui dentro, e pensar nisso também não me ajudava. Havia milhões de pessoas espalhadas por aí, assim como cachorros e gatos e ratos, prédios, ruas, mas nada disso importava. Havia apenas meu pai e a correia e o banheiro e eu. Ele usava aquela correia de couro para afiar sua navalha, e logo cedo pelas manhãs costumava odiá-lo com sua cara branca pela espuma de barbear, plantado na frente do espelho, a navalha na mão. Então a primeira lambada da correia me atingiu. O golpe soou plano e alto, o próprio som era quase tão terrível quanto a dor. Mais uma lambada. Era como se meu pai fosse uma máquina, girando aquela correia. Eu tinha a sensação de estar numa tumba. Outro golpe me atingiu e pensei, este é certamente o último. Mas não era. Houve ainda outro. Eu não o odiava. Simplesmente não podia acreditar que houvesse alguém como ele, só queria me afastar d a sua presença. Eu não conseguia chorar. Estava nauseado demais para chorar, confuso demais. A correia me acertou mais uma vez. Então ele parou. Fiquei de pé e esperei. Ouvi-o pendurar seu amolador.
Da próxima vez, não quero encontrar nenhum fiapo.
Escutei seus passos ecoando para fora do banheiro. Fechou a porta atrás de si. As paredes eram lindas, a banheira era linda, a pia e a cortina do chuveiro eram lindas, e até mesmo a privada era linda. Meu pai se fora.
Charles Bukowski, in Misto-Quente

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