quarta-feira, 24 de junho de 2020

O reencontro


Nem sei durante quantos anos deixei de ver Júlia, a mulher que eu mais amei na minha vida. Sei sim: dez anos.
Conheci intimamente muitas mulheres, gostei de algumas, mas o sentimento que nutri por elas não se comparava ao que senti por Júlia, tanto que mal me lembro de todas as outras, enquanto a voz, a maneira de andar, os olhos, a boca, os cabelos, o pescoço, os braços, as pernas, as mãos, os pés de Júlia estão gravados para sempre na minha mente, no meu coração, na minha carne.
Ela era conhecida como Juju.
Eu cantava para ela: “Juju, Juju...”
Ela respondia:
O que é, meu balangandã?”
Eu continuava:
Aqui estou eu, aí estás tu, minha Juju...”
Meu balangandã”, ela respondia.
E cantávamos em dueto a canção toda. Uma canção popular boba, mas as pessoas que se amam são sempre tolas.
E eu era um palerma. Nem sabia o que era balangandã. Hoje eu sei, fui ver no dicionário.
BALANGANDÃ. Ornamento de metal em forma de figa, fruto, animal etc., que, preso a outros, forma uma penca e é usado pelas baianas em dias de festa; serve também como objeto decorativo, lembrança ou, se miniaturizada, joia ou bijuteria; berenguendém. No passado era usado especialmente na festa do Senhor do Bonfim, em Salvador, pendente da cintura ou do pescoço das afro-brasileiras, e constituía amuleto contra o mau-olhado e outras forças adversas.
Um dia recebi um telefonema.
Rafa? Sabe quem está falando?”
Meu coração disparou.
Juju!”, exclamei, quase gritando.
Como descobriu? Há dez anos que não nos falamos.”
Jamais esqueci sua voz, jamais você saiu do meu pensamento.”
Eu fiquei muito triste quando você não quis casar comigo.”
Eu era muito pobre e você muito rica. E além disso você foi viajar.”
Meus pais se mudaram para Paris, eles tinham propriedade na França. Mas eu lhe dei o meu endereço, pedi que me visitasse.”
Eu não tinha dinheiro para isso. E não tive coragem de dizer. Eu tinha vergonha de ser pobre.”
Durante um curto momento ambos ficamos calados.
Você se casou?”
Não”, respondi.
Eu me casei. E me separei um ano depois. Eu não gostava dele. Eu queria me casar era com você... Vamos nos encontrar? Estou morrendo de saudades.”
Eu também. Não parei de pensar em você um minuto durante esses anos todos.”
Marcamos o encontro.
Fiquei um tempo enorme no espelho me vestindo.
Então constatei uma coisa horrível. Durante os últimos dez anos eu, que era elegante, esbelto, bonito, me tornara um sujeito gordo e barrigudo. Não, eu não podia me encontrar com Juju. Quando me visse ela ficaria horrorizada, até mesmo enojada com a minha obesidade.
Porém, eu queria ver a minha Juju desesperadamente.
Fiquei ansioso esperando a chegada de Juju. Como sempre, as mulheres se atrasam.
Afinal ela chegou. Fiquei horrorizado, senti vontade de morrer. Juju se transformara (ou seria mais correto dizer se transtornara?) numa mulher gorda, muito gorda. Inesperadamente deixei de sentir amor por ela.
Mas logo fui dominado por um pensamento redentor. Gorda como estava, Juju não se incomodaria com minha obesidade. Então, que maravilha, voltei a amá-la como antes.
Puxei a cadeira para ela sentar.
Sentada, Juju olhou para mim.
Você engordou muito”, ela disse.
Pude ver nos seus olhos um sentimento de desdém, pior, de repulsa.
Rubem Fonseca, in Histórias curtas

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