quinta-feira, 18 de junho de 2020

Algo maior falhou

Imagem: Migrantes saltando cercas em Ceuta

Esta semana vi um documentário da televisão espanhola sobre os refugiados africanos saltando a fronteira de Ceuta. As imagens são trágicas: homens cobrem com o seu corpo o arame farpado para que outros passem por cima dos seus corpos. Gente desesperada converte-se em chão magoado para que outros cheguem à terra do paraíso. Que esse paraíso seja ilusório, isso pouco importa.
Não interessa o lugar de destino como também não interessa o nome dos países de onde são originários. Não fogem exatamente de um lugar de África. Fogem do desespero que é pensar que essa miséria não terá nunca fim. Fogem de um futuro que está nascendo já morto.
O que é verdade é que, para milhares de africanos, vale a pena saltar sobre o abismo. Isto quer dizer o quê? Que estamos dando razão ao chamado afropessimismo? Que a Europa e a América são terras de bem-estar essencial e o nosso continente está entregue à decadência? Na realidade, a imagem que chega da fronteira de Ceuta não veio sozinha. Chegaram, quase ao mesmo tempo, imagens de Nova Orleans inundada pelo furacão Katrina. Essas imagens revelavam um universo de miséria inqualificável, e denunciavam a paralisia da maior potência do planeta perante um pedaço de Terceiro Mundo encravado na sua própria garganta. Outras imagens chegavam da Europa. E mostravam uma França doente, uma nação pegando fogo perante a incapacidade de integrar e dignificar os pobres que ali chegavam como construtores de riqueza alheia.
O que estas imagens todas, vindas de todos os lados, nos dizem é o seguinte: não, não fomos apenas nós, nações periféricas, que falhamos. Algo maior falhou. E o que está desmoronando é todo um sistema que nos disse que se propunha tornarmo-nos mais humanos e mais felizes.
Na luta pelas nossas independências era preciso esperança para ter coragem. Agora é preciso coragem para ter esperança. Antes nós sonhamos uma pátria porque éramos sonhados por essa mesma pátria. Agora, queremos pedir a essa grande mãe que nos devolva a esperança. Mas não há resposta, a mãe está calada, ausente. A única coisa que ela nos diz é que ela teve voz enquanto nós fomos essa voz. Enquanto nos calarmos, ela permanecerá no silêncio. O que significa que precisamos de recomeçar sempre e sempre. Há que inventar uma outra narrativa, viver uma outra crença. A verdade é esta: somos nós que temos de ir dando à luz uma mãe. Só somos parentes, pátria e cidadão, numa relação alimentada grão a grão, gota a gota.
Mia Couto, in Dar tempo ao futuro (trecho da palestra)

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