Imagem: Migrantes
saltando cercas em Ceuta
Esta
semana vi um documentário da televisão espanhola sobre os
refugiados africanos saltando a fronteira de Ceuta. As imagens são
trágicas: homens cobrem com o seu corpo o arame farpado para que
outros passem por cima dos seus corpos. Gente desesperada converte-se
em chão magoado para que outros cheguem à terra do paraíso. Que
esse paraíso seja ilusório, isso pouco importa.
Não
interessa o lugar de destino como também não interessa o nome dos
países de onde são originários. Não fogem exatamente de um lugar
de África. Fogem do desespero que é pensar que essa miséria não
terá nunca fim. Fogem de um futuro que está nascendo já morto.
O
que é verdade é que, para milhares de africanos, vale a pena saltar
sobre o abismo. Isto quer dizer o quê? Que estamos dando razão ao
chamado afropessimismo? Que a Europa e a América são terras de
bem-estar essencial e o nosso continente está entregue à
decadência? Na realidade, a imagem que chega da fronteira de Ceuta
não veio sozinha. Chegaram, quase ao mesmo tempo, imagens de Nova
Orleans inundada pelo furacão Katrina. Essas imagens revelavam um
universo de miséria inqualificável, e denunciavam a paralisia da
maior potência do planeta perante um pedaço de Terceiro Mundo
encravado na sua própria garganta. Outras imagens chegavam da
Europa. E mostravam uma França doente, uma nação pegando fogo
perante a incapacidade de integrar e dignificar os pobres que ali
chegavam como construtores de riqueza alheia.
O
que estas imagens todas, vindas de todos os lados, nos dizem é o
seguinte: não, não fomos apenas nós, nações periféricas, que
falhamos. Algo maior falhou. E o que está desmoronando é todo um
sistema que nos disse que se propunha tornarmo-nos mais humanos e
mais felizes.
Na
luta pelas nossas independências era preciso esperança para ter
coragem. Agora é preciso coragem para ter esperança. Antes nós
sonhamos uma pátria porque éramos sonhados por essa mesma pátria.
Agora, queremos pedir a essa grande mãe que nos devolva a esperança.
Mas não há resposta, a mãe está calada, ausente. A única coisa
que ela nos diz é que ela teve voz enquanto nós fomos essa voz.
Enquanto nos calarmos, ela permanecerá no silêncio. O que significa
que precisamos de recomeçar sempre e sempre. Há que inventar uma
outra narrativa, viver uma outra crença. A verdade é esta: somos
nós que temos de ir dando à luz uma mãe. Só somos parentes,
pátria e cidadão, numa relação alimentada grão a grão, gota a
gota.
Mia
Couto, in Dar
tempo ao futuro (trecho da palestra)
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