quarta-feira, 27 de maio de 2020

O indomável



É inútil – confessou Weedon Scott.
Sentado no degrau da sua cabana, ele fitava o condutor de cães, que reagiu com um dar de ombros igualmente sem esperança.
Juntos olharam para Caninos Brancos na ponta da sua corrente esticada, pelo eriçado, rosnando, feroz, lutando para pegar os cachorros do trenó. Depois de receberem várias lições de Matt, lições que foram ministradas com um pedaço de pau, os cachorros tinham aprendido a deixar Caninos Brancos em paz, e desde então estavam deitados a certa distância, aparentemente esquecidos da sua presença.
É um lobo, e não há como domá-lo – anunciou Weedon Scott.
Oh, não sei – objetou Matt. – Talvez tenha um bocado de cachorro dentro dele, apesar das aparências. Mas de uma coisa tenho certeza, e não dá para negar.
O condutor fez uma pausa e virou a cabeça confiante para a Montanha Moosehide.
Bem, não fique guardando o que você sabe como um avarento – disse Scott asperamente, depois de esperar um tempo razoável. – Desabafe. O que é?
O condutor indicou Caninos Brancos com o polegar virado para trás.
Lobo ou cachorro, dá no mesmo... ele já foi domado.
Não!
Foi sim, e chegou a ser arreado. Olhe aqui. Está vendo estas marcas no peito?
Tem razão, Matt. Ele foi um cachorro de trenó antes de Beleza Smith o pegar.
E não há muitas razões para ele não voltar a ser um cachorro de trenó.
O que você acha? – perguntou Scott ansioso. Depois a esperança esmoreceu enquanto acrescentava, sacudindo a cabeça: – Já está conosco há duas semanas e, se há alguma diferença, está mais selvagem do que nunca.
Dê uma chance ao animal – aconselhou Matt. – Solte-o um pouco.
O outro o olhou incrédulo.
Sim – continuou Matt –, sei que você tentou, mas não usou um pedaço de pau.
Tente você então.
O condutor pegou um pedaço de pau e aproximou-se do animal acorrentado. Caninos Brancos observou o pedaço de pau à maneira de um leão enjaulado que observa o chicote do domador.
Está vendo que ele não tira o olho do pedaço de pau? – disse Matt. – É um bom sinal. Ele não é bobo. Não vai se atrever a me atacar, enquanto eu tiver este pau na mão. Não é louco.
Quando a mão do homem se aproximou do seu pescoço, Caninos Brancos eriçou o pelo, rosnou e abaixou-se. Mas, enquanto olhava a mão que se aproximava, dava um jeito de ao mesmo tempo vigiar o pau na outra mão, suspenso ameaçadoramente sobre a sua cabeça. Matt desprendeu a corrente da coleira e deu um passo para trás.
Caninos Brancos não conseguia compreender que estava livre. Muitos meses tinham transcorrido desde que passara para as mãos de Beleza Smith, e durante todo esse período nunca conhecera um momento de liberdade, exceto nas ocasiões em que fora solto para lutar com outros cachorros. Imediatamente depois dessas lutas, voltava a ser aprisionado.
Não sabia o que pensar. Talvez alguma nova maldade dos deuses estivesse prestes a ser perpetrada sobre a sua cabeça. Caminhou lenta e cautelosamente, preparado para ser atacado a qualquer momento. Não sabia o que fazer, era tudo sem precedentes. Tomou a precaução de afastar-se dos dois deuses que o observavam e caminhou cuidadosamente para o canto da cabana. Nada aconteceu. Estava claramente perplexo, e voltou parando a uns três metros de distância e olhando os homens com atenção.
Ele não vai fugir? – perguntou o seu novo dono.
Matt deu de ombros.
Temos que apostar. A única maneira de descobrir é descobrindo.
Pobre diabo – murmurou Scott com pena. – O que ele precisa é de um pouco de bondade humana – acrescentou, virando-se e entrando na cabana.
Voltou a sair com um pedaço de carne, que atirou para Caninos Brancos. Este pulou, afastando-se, e de uma certa distância estudou a carne com suspeição.
Ei, cuidado, Major! – foi o grito de alerta de Matt, mas era tarde demais.
Major pulara para pegar a carne. No instante em que suas mandíbulas se fecharam sobre o pedaço de carne, Caninos Brancos o atacou. Major foi derrubado. Matt correu para apartar a briga, porém Caninos Brancos foi mais rápido. Major levantou-se cambaleando, mas o sangue que jorrava da sua garganta avermelhou a neve, formando uma trilha que se alargava.
Que pena, mas foi bem feito – disse Scott rápido.
Mas o pé de Matt já começara o seu trajeto para chutar Caninos Brancos. Um salto, um relampejar de dentes, uma exclamação aguda. Caninos Brancos, rosnando ferozmente, recuou atrapalhadamente vários metros, enquanto Matt se abaixava e examinava a perna.
Ele me pegou com certeza – anunciou, apontando para a calça e ceroula rasgadas, e a crescente mancha vermelha.
Eu lhe disse que era inútil, Matt – disse Scott com voz desanimada. – Andei pensando nisso uma vez por outra, apesar de não querer pensar nisso. Mas agora chegou a hora da decisão. É a única coisa a fazer.
Enquanto falava, com movimentos relutantes sacou o revólver, abriu o tambor e assegurou-se do seu conteúdo.
Pense um pouco, sr. Scott – objetou Matt –, esse cachorro passou pelo inferno. Não pode querer que ele saia um anjo branco e brilhante. Dê um pouco de tempo para ele.
Olhe para Major – respondeu o outro.
O condutor examinou o cachorro abatido. Afundara sobre a neve no círculo de seu sangue, e estava claramente nas últimas.
Bem feito. Foi o que o senhor falou, sr. Scott. Ele tentou tirar a carne de Caninos Brancos, e está morto da silva. Era de esperar. Não daria dois vivas no inferno por um cachorro que não lutasse pelo seu pedaço de carne.
Mas olhe para você, Matt. Tudo bem sobre os cachorros, mas temos de traçar o limite em algum lugar.
Bem feito para mim – argumentou Matt obstinado. – Por que fui me meter a chutá-lo? O senhor mesmo disse que ele estava com a razão. Então eu não tinha o direito de chutá-lo.
Seria um ato de compaixão matá-lo – insistiu Scott. – Ele é indomável.
Espere um pouco, sr. Scott, dê uma chance ao pobre diabo. Ele ainda não teve uma chance. Acaba de passar pelo inferno, e esta é a primeira vez que está solto. Dê uma chance para ele e, se ele não aprovar, eu próprio o matarei. Assim!
Só Deus sabe que não quero matá-lo nem mandar matá-lo – respondeu Scott, guardando o revólver. – Vamos deixá-lo correr solto e ver como a bondade pode ajudá-lo. Uma primeira tentativa.
Caminhou para perto de Caninos Brancos e começou a lhe falar numa voz gentil e branda.
Melhor ter um pedaço de pau na mão – avisou Matt.
Scott sacudiu a cabeça e continuou a tentar ganhar a confiança de Caninos Brancos.
Caninos Brancos estava cheio de suspeitas. Algo estava por acontecer. Ele tinha matado o cachorro desse deus, mordido o companheiro do deus, e que mais esperar do que algum terrível castigo? Mas, diante das circunstâncias, continuava indomável. Eriçou o pelo e mostrou os dentes, os olhos vigiando, todo o seu corpo desconfiado e preparado para qualquer coisa. O deus não tinha nenhum pedaço de pau, por isso deixou que chegasse bem perto. A mão do deus se estendeu e começou a descer sobre a sua cabeça. Caninos Brancos encolheu-se e ficou tenso, enquanto se abaixava sob aquela mão. Ali havia perigo, algum golpe baixo ou coisa parecida. Ele conhecia as mãos dos deuses, o seu domínio comprovado, a sua destreza para machucar. Além disso, era antiga a sua antipatia a ser tocado. Rosnou mais ameaçador, abaixou-se ainda mais, mas a mão continuava a descer. Ele não queria morder a mão, e suportou o seu perigo até que o instinto cresceu dentro dele, dominando-o com seu desejo insaciável de vida.
Weedon Scott tinha pensado que era bastante rápido para evitar qualquer mordida ou cutilada. Mas ainda tinha de conhecer a rapidez extraordinária de Caninos Brancos, que o atacou com a certeza e a velocidade de uma cobra enroscada.
Scott deu um grito agudo de surpresa, pegando a mão rasgada e segurando-a bem apertado na outra mão. Matt soltou uma enorme praga e pulou para o lado do patrão. Caninos Brancos encolheu-se e recuou, o pelo eriçado, mostrando as presas, os olhos malévolos de ameaça. Agora podia esperar uma surra tão terrível quanto qualquer uma das que recebera de Beleza Smith.
Ei! O que está fazendo? – gritou Scott de repente.
Matt tinha corrido para a cabana e vinha com um rifle.
Nada – disse devagar, com uma calma descuidada que era simulada –, apenas vou cumprir a promessa que fiz. Acho que me cabe matá-lo como disse que faria.
Não vai matar, não!
Vou matar, sim. Observe.
Assim como Matt suplicara pela vida de Caninos Brancos quando fora mordido, agora era a vez de Weedon Scott suplicar.
Você disse para lhe dar uma chance. Bem, então lhe dê a chance. Apenas começamos a tentativa, e não podemos desistir no início. Desta vez, bem feito para mim. E... veja!
Caninos Brancos, perto do canto da cabana e a uns doze metros de distância, rosnava com um rancor pavoroso, não para Scott, mas para o condutor dos cães.
Bem, com mil diabos! – foi a expressão de espanto do condutor.
Observe a sua inteligência – continuou Scott apressado. – Ele sabe o significado das armas de fogo tão bem quanto você. Tem inteligência, e temos de dar uma chance a essa inteligência. Guarde essa arma.
Tá bem, de acordo – concordou Matt, encostando o rifle contra a pilha de lenha.
Mas olhe para isso! – exclamou no momento seguinte.
Caninos Brancos tinha se aquietado e parado de rosnar.
Vale a pena investigar. Observe.
Matt estendeu a mão para pegar o rifle, e no mesmo momento Caninos Brancos rosnou. Ele se afastou do rifle, e os lábios de Caninos Brancos desceram, cobrindo as presas.
Agora, só de brincadeira.
Matt pegou o rifle e começou lentamente a levá-lo ao ombro. O rosnado de Caninos Brancos iniciou-se com o movimento, e aumentou quando o movimento chegou perto do clímax. Mas, no minuto antes de o rifle ficar no mesmo nível que ele, Caninos Brancos pulou para o lado e escondeu-se atrás do canto da cabana. Matt ficou fitando no seu campo de visão o espaço vazio na neve que fora ocupado por Caninos Brancos.
O condutor baixou o rifle solene, depois virou-se e olhou para seu patrão.
Concordo, sr. Scott. Esse cachorro é inteligente demais para ser morto.
Jack London, in Caninos Brancos

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