Casy
e tio John, Connie e Rosa de Sharon desceram do caminhão. E todos
postaram-se em silêncio. Rosa de Sharon procurava pentear os cabelos
para trás, mas quando seus olhos pousaram sobre o vale, suas mãos
caíram lentamente.
— Onde
está a mãe? Quero que ela veja isso. Mãe, vem cá! — gritou Tom.
A
mãe descia vagarosa, tesa, pela traseira do caminhão. Tom olhou-a.
— Meu
Deus, a senhora tá doente? — O rosto dela estava rígido como o de
uma estátua; os olhos vermelhos pareciam ter mergulhado
profundamente nas órbitas, revelando um enorme cansaço. Seus pés
dela tocaram o chão, e ela precisou apoiar-se bem na borda do
veículo.
Sua
voz estava rouca.
— Que
é que vocês disseram? A gente já chegou?
Tom
apontou para o grande vale.
— Olhe!
Ela
voltou a cabeça, e seus lábios entreabriram-se. Os dedos tatearam a
garganta, apertando de leve a pele.
— Graças
a Deus! — disse. — A família chegou. — Seus joelhos vergaram e
ela sentou-se no estribo do caminhão.
— Mãe,
a senhora tá doente?
— Não,
somente cansada.
— Mas
a senhora não dormiu?
— Não.
— A
avó passou mal?
A
mãe olhou as mãos, que jaziam em seu colo qual amantes fatigados.
— Só
queria não precisar dizer nada a vocês; só queria poder dizer
coisas boas.
— Então
a avó tá mal? — perguntou o pai.
A
mãe ergueu a cabeça e lançou seu olhar sobre o vale.
— A
avó morreu.
Eles
a olhavam.
— Quando
foi? — redarguiu o pai.
— De
noite, antes de eles querer revistar o caminhão.
— Então
foi por isso que ocê não queria...
— Tinha
medo que eles não iam deixar a gente passar. Eu disse pr’avó que
não se podia fazer nada. A família tinha que passar. Disse a ela
quando ela tava morrendo. Pois que a gente não podia parar no
deserto! Tinha as crianças... e o bebê de Rosasharn. Eu disse a
ela. — A mãe ergueu as mãos e cobriu as faces por um instante. —
Agora ela pode ser enterrada num lugar bonito, todo verde. — E
falou baixinho: — Uma terra linda, cheia de árvores. Ela tinha que
descansar na Califórnia.
A
família olhou a mãe com um ligeiro temor de sua coragem.
— Meu
Deus! A senhora ficou a noite toda ao lado dela! — disse Tom.
— A
família tinha que passar — replicou a mãe acabrunhada.
Tom
chegou-se a ela e depositou-lhe a mão no ombro.
— Não
me toca — disse ela. — Senão, não aguento mais.
O
pai disse:
— Bom,
vamo indo, vamo indo logo lá pra baixo.
A
mãe olhou-o:
— Eu...
eu posso sentar na frente agora? Não quero ficar mais lá atrás. Tô
cansada, muito cansada.
Subiram
todos no caminhão, evitando olhar o corpo rígido, coberto e bem
embrulhado numa manta. Tomaram os respectivos lugares e tentaram
desviar os olhos do macabro volume, em uma das extremidades, aquela
pequena saliência devia ser o nariz, e aquela mais aguda, mais
embaixo, o queixo. Tentaram desviar os olhos mas não puderam. Ruthie
e Winfield, que se tinham encolhido no canto mais afastado, o mais
afastado possível do corpo, olhavam-na como que magnetizados.
— É
a vovó... ela tá morta — sussurrou Ruthie.
Winfield
concordou solenemente:
— Ela
nem respira mais. Tá bem morta, mesmo.
Rosa
de Sharon disse baixinho a Connie:
— Ela
tava morrendo justamente quando nós...
— A
gente não podia adivinhar — tranquilizou-a o marido.
Al
subiu na carroceria deixando o seu lugar para a mãe. E Al assumiu um
ar fanfarrão, pois que se sentia triste. Deixou-se cair entre Casy e
tio John.
— Ora,
ela já era muito velha. Chegou a hora dela — disse. — Um dia
todos têm que morrer. — Casy e tio John olharam-no sem expressão
nos olhos, como se ele fosse um fantoche. — Ou não têm, talvez? —
perguntou. E os olhos continuaram inexpressivos, deixando Al
carrancudo e agitado.
Casy
disse, admirado:
— A
noite toda, e ela estava sozinha. — E acrescentou: — John, ela é
uma mulher tão cheia de amor... ela me assusta. Palavra que ela me
mete medo. Eu me sinto pequeno perto dela.
John
perguntou:
— Será
que foi um pecado? Será uma das coisas que você chamava de pecado,
hem?
Casy
virou-se para ele, atônito:
— Pecado?
Não, senhor. Nada disso.
— Eu
nunca fiz uma coisa que não tivesse um pouco de pecado — disse
John, e olhou para o comprido vulto embrulhado.
Tom,
a mãe e o pai subiram na cabine do motorista. Tom soltou o veículo
e depois ligou o motor. O pesado caminhão descia a montanha
saltando, sacolejando e matraqueando. O sol estava atrás dele, e o
vale dourado e verdejante espalhava-se à frente. A mãe sacudiu
vagarosamente a cabeça, admirada:
— Mas
que beleza! Só queria que eles pudessem ver também.
— É
verdade — disse o pai.
Tom
deu palmadinhas leves no volante.
— Eles
já eram muito velhos. Nem iam dar valor direito a isso tudo. O avô
ia pensar que vinham índios pelos campos, que nem quando ele era
moço. E a avó ia pensar na primeira casa em que ela viveu. Já eram
muito velhos, demais. Quem vê isso tudo direito é a Ruthie e o
Winfield.
— Esse
Tommy tá falando que nem um homem feito, até parece um pregador —
comentou o pai.
E
a mãe esboçou um sorriso triste.
— Ele
é um homem feito, mesmo. Cresceu tanto que às vezes nem consigo
acreditar.
Iam
descendo a montanha, aos pulos e sacudidelas, perdendo algumas vezes
o vale e tornando a achá-lo. E o hálito quente do vale subia até
eles, exalações quentes de vegetações resinosas, de verduras e
tomilho. Os grilos cantavam ao longo da estrada. Uma cascavel
atravessou, rastejando. Tom atropelou-a e ela ali ficou,
contorcendo-se.
Tom
disse:
— Acho
que antes de mais nada a gente tem que procurar a polícia pra dar
parte da morte da avó. Depois a gente faz um enterro decente. Quanto
dinheiro sobra ainda, pai?
— Uns
quarenta dólares — respondeu o pai.
Tom
riu.
— Puxa,
vamo começar a vida aqui muito bem! A gente veio mesmo de mão
abanando! — Riu ainda por um instante, depois suas feições
tornaram-se sérias. Puxou a pala do boné bem sobre os olhos. E o
caminhão ia descendo a montanha, rumo ao grande vale.
John
Steinbeck, in As vinhas da ira
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