quarta-feira, 4 de março de 2020

Porter e Gershwin

Cole Porter poderia dizer de George Gershwin o que Gore Vidal disse de Norman Mailer. Para Vidal, Mailer era um privilegiado. Tinha nascido pobre e judeu, estava feito na vida. Já Vidal, rico, aristocrático e cristão, precisara vencer todas estas adversidades para se tornar um escritor.
Gershwin, nascido no Brooklyn, lutava para sobreviver no comércio de música de Nova York, o Tin Pan Alley, enquanto Porter fazia canções satíricas para os shows de seus colegas bem-nascidos em Yale ou Harvard, as escolas preparatórias para o poder do establishment no Leste americano. Por isso sempre se disse que Porter era mais brilhante, mas Gershwin era mais importante. Mas estas comparações perdem um pouco no detalhe. Mailer, por exemplo, também estudou em Harvard, embora diga que estava tão bêbado que não se lembra. E Gershwin, apesar da sua origem mais “humilde”, teve mais formação musical do que Porter e foi musicalmente bem mais ambicioso, incursionando pela ópera e a sinfonia enquanto Porter nunca foi além da canção popular.
O cinema difundiu as músicas de Porter e Gershwin, feitas para o teatro, pelo mundo. Mas o cinema também lhes pregou algumas peças. Nada mais falso do que a versão hollywoodiana do processo de criação musical. Um dos exemplos inesquecíveis disso é a própria biografia cinematográfica de Cole Porter — Cary Grant era um improvável Porter —, quando ele, vítima de um bloqueio que o impedia de compor e de uma arrasadora crise amorosa, ouve, em sequência, tambores distantes, o tiquetaque do relógio na parede e o ruído da chuva na vidraça, e começa a tirar no piano a introdução de “Night and Day”: “Like the beat, beat, beat of the tom-tom, when the jungle shadows fall; like the tick, tick, tock of the stately clock...” Pior do que isso só a cena da biografia de Strauss em que o compositor ouve, num bosque de Viena, as patas dos cavalos e o canto dos passarinhos lhe ditarem a primeira estrofe de uma valsa. Não fazem mais cinema como antigamente, felizmente.
Cole Porter também poderia dizer de George Gershwin que ele teve a vantagem injusta de morrer antes. Gershwin morreu em 1937, Porter em 1984, quando a fofoca já era tão valorizada quanto o talento. Porter conseguiu viver livre de inconfidências públicas até a sua velhice, mas ainda viveu o bastante para se ver retratado como homossexual e toxicômano por Truman Capote no seu Answered Prayers, provavelmente o mais famoso livro nunca terminado de todos os tempos. Não se sabe o que teria acontecido com a reputação de Gershwin se vivesse tanto quanto Porter.
Luís Fernando Veríssimo, in Banquete com os deuses

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