Cole
Porter poderia dizer de George Gershwin o que Gore Vidal disse de
Norman Mailer. Para Vidal, Mailer era um privilegiado. Tinha nascido
pobre e judeu, estava feito na vida. Já Vidal, rico, aristocrático
e cristão, precisara vencer todas estas adversidades para se tornar
um escritor.
Gershwin,
nascido no Brooklyn, lutava para sobreviver no comércio de música
de Nova York, o Tin Pan Alley, enquanto Porter fazia canções
satíricas para os shows de seus colegas bem-nascidos em Yale ou
Harvard, as escolas preparatórias para o poder do establishment
no Leste americano. Por isso sempre se disse que Porter era mais
brilhante, mas Gershwin era mais importante. Mas estas comparações
perdem um pouco no detalhe. Mailer, por exemplo, também estudou em
Harvard, embora diga que estava tão bêbado que não se lembra. E
Gershwin, apesar da sua origem mais “humilde”, teve mais formação
musical do que Porter e foi musicalmente bem mais ambicioso,
incursionando pela ópera e a sinfonia enquanto Porter nunca foi além
da canção popular.
O
cinema difundiu as músicas de Porter e Gershwin, feitas para o
teatro, pelo mundo. Mas o cinema também lhes pregou algumas peças.
Nada mais falso do que a versão hollywoodiana do processo de criação
musical. Um dos exemplos inesquecíveis disso é a própria biografia
cinematográfica de Cole Porter — Cary Grant era um improvável
Porter —, quando ele, vítima de um bloqueio que o impedia de
compor e de uma arrasadora crise amorosa, ouve, em sequência,
tambores distantes, o tiquetaque do relógio na parede e o ruído da
chuva na vidraça, e começa a tirar no piano a introdução de
“Night and Day”: “Like the beat, beat, beat of the tom-tom,
when the jungle shadows fall; like the tick, tick, tock of the
stately clock...” Pior do que isso só a cena da biografia de
Strauss em que o compositor ouve, num bosque de Viena, as patas dos
cavalos e o canto dos passarinhos lhe ditarem a primeira estrofe de
uma valsa. Não fazem mais cinema como antigamente, felizmente.
Cole
Porter também poderia dizer de George Gershwin que ele teve a
vantagem injusta de morrer antes. Gershwin morreu em 1937, Porter em
1984, quando a fofoca já era tão valorizada quanto o talento.
Porter conseguiu viver livre de inconfidências públicas até a sua
velhice, mas ainda viveu o bastante para se ver retratado como
homossexual e toxicômano por Truman Capote no seu Answered
Prayers, provavelmente o mais famoso livro nunca terminado de
todos os tempos. Não se sabe o que teria acontecido com a reputação
de Gershwin se vivesse tanto quanto Porter.
Luís
Fernando Veríssimo, in Banquete com os deuses
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