domingo, 15 de março de 2020

O índio


Um cafezinho.
Essa não.
Não o quê?
Essa nota de índio.
Que que tem o índio?
Essa eu não aceito.
O senhor tem alguma coisa contra o índio? Contra a jangada? Contra a vitória-régia?
Moço, tem gente esperando para comprar ficha. Não posso ficar conversando à toa.
À toa como? Então o senhor recusa uma cédula emitida pela Casa da Moeda, eu lhe pergunto a razão por que recusa, e o senhor me diz que não pode conversar? Tem que conversar, essa é boa. Me diga por que não aceita uma nota do Brasil — não estamos no Brasil?
Estamos.
Então?
Então o quê?
Então dinheiro brasileiro vale ou não vale?
Claro que vale. Mas as notas de cinco cruzeiros, com cara de índio, estão sendo falsificadas, eu não sou dono desta joça e não quero receber dinheiro falso, tá bom?
O que que o senhor está me dizendo? Repita.
Não repito.
Repita, se é capaz.
Sou capaz mas não sou relógio de repetição.
Repita que sou moedeiro falso.
Eu não disse isso, mas se o senhor diz que é…
Eu disse que sou? Repita que eu disse que sou.
Ai ai ai. Assim não vale. O senhor está me baralhando a cabeça. O que eu disse foi que tem notas falsificadas, então não tem?
E esta é falsa?
Eu é que sei?
Se não sabe, como recusa minha nota? É porque desconfiou de mim. O senhor me conhece? De onde? Tenho pinta de vigarista?
Não conheço nem quero ter o prazer de conhecer. Não sei se tem pinta disso ou daquilo. Sei que não aceito sua nota, e pronto.
Tem que aceitar. (Vozes na fila: Chega! Chega! Para com isso!)
Viu? O senhor está empatando o movimento do café.
Empatando está o senhor, mas é a circulação do papel-moeda no Brasil. Anda, me dá a fichinha.
Então me dá uma nota de outra qualidade.
Dou, mas vamos fazer o seguinte: a outra fica em depósito. (Voltando-se para trás.) Os senhores são testemunhas. Vou pagar dez cruzeiros por um cafezinho. É o preço da eterna vigilância. Pago até cem cruzeiros, se for preciso. Até mil. Mas esta nota de índio ele tem de receber, levar à Casa da Moeda, perguntar se ela é falsa — falsa coisa nenhuma, estão vendo? —, trazer um certificado e me pedir desculpa. O dinheiro fica em depósito. Depois eu dou para a abbr.
(Sensação na fila. Chega um menino.)
Moço, deixa eu espiar a nota.
Olhe bem, garoto. Para você aprender a lutar pelas instituições.
O senhor viu o que está escrito aqui?
Não. O quê?
Está escrito: fac-símile. É nota de propaganda comercial, o senhor não vê que está na cara?
Ô diabo, como é que eu não reparei!
Carlos Drummond de Andrade, in A bolsa & a vida

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