sábado, 21 de março de 2020

Mudança

Uma caminhada extensa, dezenas de léguas. Eu ia de garupa, escanchado num travesseiro, agarrando-me ao paletó de José Leonardo para equilibrar-me, em posição muito incômoda. A princípio a novidade me tornou loquaz e curioso, perguntei os nomes de aves e plantas, mas veio o sol, veio o mormaço, e caí numa sonolência estúpida. As virilhas suadas ardiam-me, o chouto do animal sacolejava-me, revolvia-me as tripas, deslocava-me os ossos.
Amolecido, bambo, admirava-me de ver em redor cavaleiros palradores, satisfeitos com o duro como um papagaio, trôpego, as juntas doídas.
Descansamos uma tarde em casa do poeta Cordeiro Manso. Nos pousos, arrastava-me, cambaleava, pular. Pernoitamos depois junto a um açude lamacento, onde patos nadavam. Construiu-se com fardos, caixas e encerados uma tenda, e aí me estirei sobre peças de estopa, friorento, iluminado a cera de carnaúba. As estacas de uma cerca roçavam nas costelas; interrompiam-me o sono o choro do vento, a conversa dos arrieiros aboletados na vizinhança e os gemidos quase humanos de uma ovelha doente.
Outras estações fugiram-me da memória. José Leonardo e Antônio Vale despediram-se — e com eles o sertão desapareceu. Xiquexiques e mandacarus foram substituídos por uma vegetação densa e muito verde; nos caminhos escuros os chocalhos calaram-se; surgiram regatos, cresceram, transformaram-se em rios e atrasaram a marcha.
Figuras desconhecidas vieram encontrar-nos, amáveis, risonhas, primos em vários graus, familiares como se tivéssemos vivido sempre juntos. Evidentemente a situação econômica de meu pai era razoável. Emigrara, encalacrara-se, mas recompusera-se, e, graças às cargas de fazenda, tranquilizava os parentes. Os mais graúdos perceberiam de longe a existência dele; os pequenos se chegariam, flexíveis, exaltando-o. E assim, tolerado por uns, adulado por outros, fixaria de novo na terra antiga as raízes cortadas.
José da Luz, Padre João Inácio, a velha professora de cabelos brancos, Filipe Benício, Chico Brabo e os meninos de Teotoninho Sabiá diluíam-se a distância. E as caras estranhas me inspiravam receio.
Fiz o resto da viagem com um moço alegre, que tentou explicar-me as chaminés dos banguês, os campos de lavoura, árvores robustas, associadas, atravancando a paisagem. Tinham-se sumido os grandes espaços alvacentos, de areia e cascalho, despovoados, o mato franzino, bancos de macambira, cercas de pedra, chiqueiros e currais, dias luminosos riscados pelo voo das arribações. Veredas subiam, desciam, torciam-se, e à beira delas arrumavam-se casas, jardins, hortas. Os transeuntes não se vestiam de couro. Em qualquer ponto, achava-me num buraco, entre morros. Água abundante e ruidosa, capinzais imensos, manhãs nevoentas.
Chegamos ao município de Viçosa, em Alagoas. Antes de estabelecer-se na cidade, meu pai se hospedou num engenho de fogo morto. E durante meses, em longas ausências, trabalhou com Seu Manuel Costa, assentando as bases de uma sociedade comercial, gora em pouco tempo. Constrangi-me no ambiente novo, perdi hábitos e adquiri hábitos.
Numerosos acidentes perturbavam-me: atoleiros, cancelas, arame farpado, canaviais de folhas cortantes, valas. Impossível correr por causa das ladeiras.
Objetos e palavras inexistentes no sertão originavam incerteza, e a maneira de falar me chocava os ouvidos. As pessoas e as relações me desnorteavam: não podia saber se me comportava direito com a parentela confusa e respeitável.
Os irmãos de minha mãe eram pequenos, alguns menores que eu, e brincávamos juntos no bosque de catingueiras que rodeava a lagoa. Jacinta me dissera uma vez, zangada e vermelha, encompridando o vestido de chita:
Me respeite.
Eu sou sua tia. E eu respondera, naturalmente:
Você é besta.
Agora me apresentavam mulheres ásperas e de cachimbo, homens importantes e enrugados: tia Jovina e tia Josefa, tio Pedro e tio Inácio.
Conselhos, dureza, carranca. Obtive uma irmã natural, morena, grossa, feia. E duas primas bonitas, que findaram tuberculosas. No fim do pátio a bagaceira fermentava Roseiras floresciam no jardim, cipós emaranhavam-se na latada. Um riacho se escondia entre verduras comia a terra negra e pedras limosas. Vivíamos ali em promiscuidade, bichos e cristãos miúdos.
Graciliano Ramos, in Infância

Nenhum comentário:

Postar um comentário