segunda-feira, 16 de março de 2020

Mas funciona!

Ficções permitem que cooperemos melhor. O preço que pagamos é que essa mesma ficção também determina os objetivos de nossa cooperação. Assim, sistemas muito elaborados de cooperação podem estar sendo aproveitados para servir a interesses e objetivos ficcionais. Consequentemente, pode parecer que o sistema está funcionando bem, mas só se adotarmos seus próprios critérios. Por exemplo, um mulá muçulmano diria: “Nosso sistema funciona. Hoje há 1,5 bilhão de muçulmanos em todo o mundo, e mais pessoas estão estudando o Corão e se submetendo à vontade de Alá do que jamais houve”. A questão-chave, no entanto, é se esse é o parâmetro correto para medir o sucesso. Um diretor de escola diria: “Nosso sistema funciona. Durante os últimos cinco anos, as notas dos exames foram 7,3% mais altas”. Mas esse seria o melhor modo de avaliar uma escola? O funcionário no Egito antigo diria: “Nosso sistema funciona. Coletamos mais impostos, cavamos mais canais e construímos pirâmides maiores do que qualquer outro sistema no mundo”. É bem verdade, o Egito faraônico era líder mundial em cobrança de impostos, irrigação e construção de pirâmides. Mas é isso que realmente importa?
Pessoas têm muitas necessidades materiais, sociais e psicológicas. Não há a menor certeza de que os camponeses no Egito antigo desfrutavam de mais amor ou de relações sociais melhores de que seus ancestrais caçadores-coletores; em termos de nutrição, saúde e mortalidade infantil, parece que sua vida na realidade era pior. Um documento datado aproximadamente de 1850 a.C., do reinado de Amenemés III — o faraó que criou o lago Fayum —, menciona um homem bem-nascido chamado Dua-Khety, que levou seu filho Pety para a escola a fim de aprender a ser um escriba. No caminho para a escola, Dua-Khety descreveu a vida miserável de camponeses, trabalhadores, soldados e artesãos, como que a encorajar Pety a dedicar toda a sua energia ao estudo, para com isso escapar ao destino infeliz da maioria dos humanos.
De acordo com Dua-Khety, a vida de um trabalhador rural sem-terra é cheia de dificuldades e de miséria. Vestido em farrapos, ele trabalha o dia inteiro até os dedos ficarem cobertos de bolhas. Depois, funcionários do faraó o designam para fazer trabalhos forçados. Em troca de todo o seu trabalho duro, o único pagamento que recebe é a doença. Mesmo que forneça a subsistência a sua casa, ficará completamente desgastado e destruído. A sina do camponês que possui alguma terra não é muito melhor. Ele passa os dias carregando água em baldes do rio até o campo. Essa carga pesada encurva seus ombros e cobre seu pescoço de inchaços purulentos. Pela manhã, tem de irrigar seus canteiros de alho-poró, à tarde suas tamareiras e, ao anoitecer, sua plantação de coentro. Finalmente, ele desfalece e morre. 8 O texto pode ser propositalmente exagerado, mas não muito. O Egito era o reino mais poderoso da época, porém, para um simples camponês, todo esse poderio significava impostos e trabalho forçado, e não serviços médicos e de seguridade social.
Não era um defeito exclusivo do Egito. Descontadas todas as imensas conquistas das dinastias chinesas, dos impérios muçulmanos e dos reinos europeus, em 1850 d.C. a vida de um cidadão médio não era melhor — e poderia efetivamente ter sido pior — do que a vida dos antigos caçadores-coletores. Em 1850, um camponês chinês ou um operário em Manchester trabalhavam braçalmente mais horas do que seus ancestrais caçadores-coletores; eram atividades fisicamente mais duras e mentalmente menos gratificantes; sua dieta era menos balanceada; as condições higiênicas eram incomparavelmente piores; e doenças infecciosas eram muito mais comuns.
Suponha que lhe oferecessem um dos dois pacotes de férias:
Pacote da Idade da Pedra: No primeiro dia, passeio de dez horas numa floresta imaculada, acampando para passar a noite numa clareira junto a um rio. No segundo dia, descida ao rio de canoa durante dez horas, acampando na margem de um pequeno lago. No terceiro dia, contato com o povo nativo para aprender como pescar no lago e como encontrar cogumelos no bosque próximo.
Pacote proletário moderno: No primeiro dia, trabalho durante dez horas numa poluída fábrica têxtil, passando a noite num prédio abarrotado de apartamentos. No segundo dia, trabalho durante dez horas como caixas na loja de departamentos local, dormindo no mesmo bloco de apartamentos. No terceiro dia, contato com o povo nativo para aprender como abrir uma conta no banco e preencher formulários de hipoteca.
Qual pacote você escolheria?
Quando vamos avaliar as redes de cooperação humanas, tudo depende do parâmetro e do ponto de vista que adotamos. Julgamos o Egito dos faraós em termos de produção, nutrição, ou talvez de harmonia social? Focalizamos a aristocracia, os camponeses simples ou os porcos e crocodilos? A história não é uma narrativa única, mas milhares de narrativas alternativas. Sempre que escolhemos contar uma delas, escolhemos também silenciar outras.
As redes de cooperação humanas comumente se avaliam com parâmetros inventados por elas mesmas, e não é de surpreender que não raro se atribuam notas altas. Em particular, redes humanas construídas em nome de entidades imaginárias como deuses, nações e corporações normalmente avaliam seus êxitos do ponto de vista da entidade imaginária. Uma religião é bem-sucedida se segue ao pé da letra os mandamentos divinos; uma nação é gloriosa se promove o interesse nacional; e uma corporação prospera se gera montes e montes de dinheiro.
Ao se examinar a história de qualquer rede humana, é recomendável parar de vez em quando e olhar as coisas da perspectiva de alguma entidade real. Como se sabe se uma entidade é real? Muito simples — apenas pergunte a si mesmo: “Ela é capaz de sofrer?”. Quando pessoas derrubam e incendeiam o templo de Zeus, Zeus não sofre. Quando o euro se desvaloriza, o euro não sofre. Quando um banco vai à bancarrota, o banco não sofre. Quando um país é derrotado na guerra, o país na verdade não sofre. É só uma metáfora. Em contraste, quando um soldado é ferido em combate, ele sofre. Quando um camponês faminto não tem o que comer, ele sofre. Quando uma vaca é separada de seu bezerro recém-nascido, ela sofre. Isso é realidade.
É claro que nossa crença em ficções pode muito bem vir a causar sofrimento. Por exemplo, a crença em mitos nacionais e religiosos pode provocar a eclosão de uma guerra na qual milhões de pessoas perderão suas casas, seus membros e até suas vidas. A causa da guerra é ficcional, mas o sofrimento é inteiramente real. É por isso que deveríamos nos empenhar em distinguir ficção de realidade.
Ficção não é algo ruim. Sem as histórias comumente aceitas sobre dinheiro, Estados ou corporações, nenhuma sociedade humana complexa poderia funcionar. Não se pode jogar futebol a menos que cada jogador acredite nas regras comuns inventadas, e não se pode usufruir dos benefícios de mercados e de tribunais sem histórias de um faz de conta semelhante. Mas as histórias são apenas ferramentas. Elas não deveriam se tornar nossos objetivos, ou nossos parâmetros. Quando esquecemos que são mera ficção, perdemos o contato com a realidade. Depois começamos a fazer guerras “para fazer muito dinheiro para a corporação” ou “para proteger o interesse nacional”. Corporações, dinheiro e nações existem apenas em nossa imaginação. Nós os inventamos para nos servirem; por que chegamos a sacrificar nossas vidas a seu serviço?
No século XXI vamos criar mais ficções poderosas e mais religiões totalitárias do que em qualquer era anterior. Com a ajuda da biotecnologia e de algoritmos computacionais, essas religiões não só controlarão nossa existência minuto a minuto, como serão capazes de configurar nossos corpos, cérebros e mentes, e de criar mundos inteiramente virtuais. Ser capaz de distinguir ficção de realidade e religião de ciência ficará, portanto, mais difícil, porém mais vital do que jamais foi antes.
Yuval Noah Harari, in Homo Deus: Uma breve história do amanhã

Nenhum comentário:

Postar um comentário