quinta-feira, 19 de março de 2020

A garrafa

Antes que o navio inglês desapareça de vista, seja dito que nos saudava de Londres e que fora batizado com o nome do finado Samuel Enderby, mercador daquela cidade, fundador da famosa casa baleeira Enderby & Sons; uma casa que, na minha simples opinião de baleeiro, não fica muito atrás das casas reais dos Tudors e dos Bourbons somadas, desde que vistas segundo um genuíno interesse histórico. Há quanto tempo, antes do ano de Nosso Senhor de 1775, existia essa grande casa baleeira, meus numerosos documentos peixeiros não esclarecem; mas naquele ano (1775) ela armou os primeiros navios Ingleses de caça regular ao Cachalote; embora houvesse vários anos (desde 1726) desde que nossos valentes Coffins e Maceys de Nantucket e de Vineyard iniciaram em grandes frotas a perseguição ao Leviatã, ainda que apenas no Atlântico Norte e Sul: não em outros lugares. Aqui se faz necessário o registro, que os nativos de Nantucket foram os primeiros dentre os homens a arpoar o grande Cachalote com aço civilizado; e que, durante meio século, foram as únicas pessoas do mundo que assim o fizeram.
Em 1788, um belo navio, o Amélia, armado unicamente para esse fim e a serviço exclusivo dos vigorosos Enderbys, dobrou intrépido o cabo Horn e foi o primeiro entre as nações a descer um bote baleeiro de qualquer espécie nos vastos Mares do Sul. Foi uma viagem hábil e bem-sucedida; e, regressando a seu porto com o porão repleto do precioso espermacete, o exemplo do Amélia foi logo seguido por outros navios, Ingleses e Norte-Americanos, e desse modo as imensas zonas de caça ao Cachalote abriram-se no Pacífico. Porém, não contente com esse grande feito, a infatigável casa lançou-se a uma nova empreitada: Samuel e seus Filhos todos – quantos, apenas a mãe o sabe – e sob sua pronta proteção, e em parte, julgo, às suas expensas, o governo Britânico foi persuadido a enviar a corveta Cascavel numa viagem de reconhecimento baleeiro aos Mares do Sul. Comandado por um Capitão da Marinha Real, o Cascavel fez uma viagem chocalhante e prestou alguns serviços; quantos, não se sabe. Mas isso não é tudo. Em 1819, a mesma empresa armou um de seus navios de reconhecimento para um cruzeiro exploratório nas águas remotas do Japão. O navio – que trazia o acertado nome de Sereia – fez um cruzeiro bem-sucedido; e foi assim que a imensa Zona de Caça Baleeira do Japão se tornou conhecida. O Sereia, nessa famosa viagem, foi comandado por um certo Capitão Coffin, nativo de Nantucket.
Todas as honrarias, portanto, aos Enderbys, cuja casa, julgo eu, existe ainda em nossos dias; embora sem dúvida seu fundador, Samuel, deva há muito tempo ter soltado seus cabos rumo aos grandes Mares do Sul do outro mundo.
O navio batizado com seu nome era digno da honra, tratando-se de um veleiro rápido e de uma nobre embarcação sob todos os aspectos. Subi certa vez em seu convés, à meia-noite, em algum lugar ao largo da costa da Patagônia, e bebi de um bom flip no castelo de proa. Tivemos um gam maravilhoso, todos eram ótimos sujeitos – todos a bordo. A eles, votos de uma vida breve e de uma boa morte. E aquele nosso maravilhoso gam – muito tempo depois de o velho Ahab pisar aquele convés com seu calcanhar de marfim – fez-me recordar a nobre e sólida hospitalidade Saxã daquele navio; e que meu pastor se esqueça de mim, e o demônio se lembre, caso algum dia eu me esqueça disso. Flip? Eu disse que bebemos flip? Sim, à razão de dez galões por hora; e, quando chegou a tempestade (pois é tempestuosa a costa da Patagônia) e todos os marinheiros – os visitantes e os demais – foram convocados para rizar as velas da gávea, estávamos tão estufados que tivemos de ajudar-nos uns aos outros nas bolinas; e, sem nos darmos conta, prendíamos a fralda de nossas jaquetas nas velas, de modo que ficávamos suspensos, atados à tormenta ululante, uma advertência exemplar para todos os marinheiros embriagados. Seja como for, os mastros não foram jogados ao mar; e pouco a pouco descemos com dificuldade, tão sóbrios que tivemos de voltar ao flip, embora a incontrolável espuma salgada que arrebentava na escotilha do castelo de proa o tivesse diluído e salgado demais para meu gosto.
A carne era excelente – dura, mas altriz. Uns disseram que era carne de vaca; outros, que era carne de camelo; não sei ao certo do que se tratava. Tinham também bolinhos; pequenos, mas sólidos, simetricamente boleados e indestrutíveis. Pareceu-me que os sentia dando voltas no estômago depois de engoli-los. Se nos curvássemos demais para a frente, corríamos o risco de vê-los saltar pela boca como bolas de bilhar. O pão! – desse, entretanto, não podíamos correr; ademais, era antiescorbútico; resumindo, o pão era o único alimento fresco a bordo. Mas o castelo de proa não era muito claro, e era muito fácil ir para um canto escuro quando se comia. Porém, no conjunto, considerando-o da borla ao leme, levando-se em conta as dimensões dos caldeirões do cozinheiro, incluindo as próprias caldeiras que ali estavam, em cor de pergaminho; da proa à popa, digo, o Samuel Enderby era um navio alegre; de boa e farta mesa; flip forte e de primeira linha; e sujeitos engraçados, todos eles fantásticos, dos pés à cabeça.
No entanto, dirá você, por que razão o Samuel Enderby e outros tantos baleeiros Ingleses de que tenho notícia – não todos, claro – eram tão famosos e hospitaleiros; por que dividiam a carne, o pão, a bebida e a piada; e nunca se cansavam de comer, beber e rir? Vou lhe contar. A comida abundante desses baleeiros Ingleses é assunto para investigação histórica. Jamais me furtei às pesquisas históricas referentes às baleias, quando me pareceram necessárias.
Os Ingleses foram precedidos na pesca de baleias pelos Holandeses, Neozelandeses e Dinamarqueses; de quem receberam vários termos ainda presentes na pesca; e, o mais interessante, seus antigos e gordos hábitos de comer e de beber em abundância. Pois, em geral, os navios mercantes Ingleses deixavam sua tripulação à míngua; mas os navios baleeiros, não. Portanto, entre os Ingleses, esse negócio de fartos comes e bebes entre baleeiros não é normal e natural, mas incidental e próprio; e, por conseguinte, deve ter uma origem especial, que aqui indiquei, e mais adiante elucidarei.
No decurso de minhas pesquisas sobre as histórias Leviatânicas, deparei por acaso com um antigo livro Holandês, que, pelo cheiro de mofo e baleia que tinha, supus tratar de caça baleeira. O título era Dan Coopman, donde concluí que deviam ser as inestimáveis memórias de um toneleiro de Amsterdã a bordo, já que todos os navios baleeiros sempre levam consigo um toneleiro. Minha impressão foi reforçada ao perceber que essas eram obra de um certo “Fitz Swackhammer”. Mas meu amigo Dr. Snodhead, homem muito erudito, professor de Baixo Holandês e Alto Alemão no colégio de Santa Claus e St. Pott’s, a quem entreguei a obra para que a traduzisse, dando-lhe uma caixa de velas de espermacete pelo incômodo – este mesmo Dr. Snodhead, tão logo viu o livro, assegurou-me de que Dan Coopman não significava “O Toneleiro”, mas “O Mercador”. Em suma, esse antigo e ilustre livro escrito em Baixo Holandês versava sobre o comércio na Holanda; e, entre outros assuntos, incluía um relato muito interessante sobre a pesca de baleias. E foi nesse capítulo, intitulado “Smeer”, ou “Gordura”, que encontrei uma longa e detalhada lista das provisões para as despensas e porões de 180 navios de baleeiros Holandeses; de cuja lista, traduzida pelo Dr. Snodhead, transcrevo o que se segue:

400.000 lbs. de carne.
60.000 lbs. de porco de Friesland.
150.000 lbs. de bacalhau.
550.000 lbs. de biscoito.
72.000 lbs. de pão.
2.800 barriletes de manteiga.
20.000 lbs. de queijo Texel & Leyden.
144.000 lbs. de queijo (provavelmente um produto inferior).
550 ankers de Genebra.
10.800 barris de cerveja.

A maioria das tabelas estatísticas é de leitura ressecadamente árida; não no caso presente, contudo, pois o leitor se sente inundado por pipas inteiras, barris, quartos de galão e quartos de pinta de bom gim e boa comida.
Na época dediquei três dias à estudiosa digestão de tanta cerveja, carne e pão, durante os quais várias reflexões profundas me ocorreram, dignas de uma aplicação transcendental e Platônica; além disso, compilei tabelas suplementares de próprio punho, referentes às prováveis quantidades de bacalhau, &c., que cada um dos arpoadores Holandeses naquela antiga pesca de baleias da Groenlândia e de Spitzbergen consumiu. Em primeiro lugar, as quantidades de manteiga e de queijo Texel & Leyden consumidas pareceram-me espantosas. Atribuo-as, no entanto, à natureza naturalmente gordurosa dos pescadores, que se tornava ainda mais gordurosa pela natureza de sua vocação e especialmente em virtude de sua perseguição à caça nos frígidos Mares Polares, na costa do país dos Esquimós, cujos nativos brindam uns aos outros com copos cheios de óleo de baleia.
A quantidade de cerveja também é muito grande, 10.800 barris. Ora, como as pescas polares só podiam ser levadas a cabo no curto verão desse clima, tanto que qualquer cruzeiro de um desses baleeiros Holandeses, incluindo a curta viagem de ida e volta ao mar de Spitzbergen, não excedia três meses, e calculando-se cerca de 30 homens para cada navio da frota de 180 baleeiros, teremos um total de 5.400 marinheiros holandeses; por conseguinte, isso representa exatos dois barris de cerveja por homem, num período de doze semanas, sem contar a parte de 550 ankers de genebra que lhes cabia. Ora, é pouco provável que esses arpoadores de genebra e cerveja, tão embriagados quanto se pode imaginar que estivessem, fossem os homens mais indicados para ficar na proa do bote e apontar com precisão para as baleias fugidias. No entanto, apontavam e também acertavam. Porém, isso ocorria no Extremo Norte, é bom que lembremos, onde a cerveja combina bem com o organismo; no Equador, para a nossa pesca meridional, a cerveja teria feito com que os arpoadores ficassem sonolentos no topo do mastro e embriagados no bote; e perdas dolorosas para Nantucket e para New Bedford se seguiriam.
Mas basta; já se disse o suficiente para mostrar como os velhos baleeiros Holandeses de dois ou três séculos atrás levavam uma boa vida; e como os baleeiros Ingleses não desperdiçaram tão bom exemplo. Pois, dizem eles, quando se viaja a bordo de uma embarcação vazia, se o mundo não puder lhe dar nada melhor, que sirva pelo menos uma bela refeição. E com isso se esvazia a garrafa.
Herman Melville, in Moby Dick

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