sábado, 15 de fevereiro de 2020

Uma festa com árvore de natal e um casamento

Há dias assisti a um casamento... mas não! É melhor que vos conte sobre uma festa com árvore de Natal que eu vi. O casamento foi bom, gostei muito, mas a outra festa foi melhor. Não sei porquê, mas, ao assistir ao casamento, lembrei-me da festa da árvore. Aconteceu assim: cinco anos atrás, na véspera do ano novo, fui convidado para um baile infantil. O anfitrião era um homem de negócios muito conhecido, com boas relações na sociedade, batido em intrigas, pelo que era possível supor-se que este baile de crianças fosse um pretexto para os pais se reunirem e falarem de assuntos importantes de maneira desprendida, ocasional, espontânea. Eu era um homem alheio a isso tudo e, não tendo portanto quaisquer assuntos a tratar com ninguém, passei um fim de tarde de forma bastante independente. Havia lá mais um senhor, de condição modesta e sem linhagem nobre, a quem também aconteceu, tal como a mim, assistir à festa da feliz família... A primeira pessoa em quem reparei foi esse homem. Era alto, magro, muito sério, vestido com bastante decoro. Mas era visível que não estava inclinado para as alegrias e para a felicidade da família; quando se afastava para qualquer canto, deixava imediatamente de sorrir e carregava o seu sobrolho espesso e negro. Além do anfitrião, não conhecia mais ninguém presente no baile. Via-se que se aborrecia muito mas que suportava fazer até ao fim, heroicamente, o papel do convidado feliz e cheio de animação. Eu viria a saber mais tarde que se tratava de um senhor da província que tinha um assunto muito sério e complicado para tratar na capital, e que trouxera para o dono da casa uma carta de recomendação, pelo que este se via obrigado a dar-lhe proteção, mas não con amore, tendo-o convidado para o seu baile infantil apenas por delicadeza. Não se jogava às cartas, não lhe ofereceram um charuto, ninguém conversava com ele, tendo os outros convidados reconhecido nele, talvez, o pássaro pela penugem. Por isso o sobredito senhor andava por ali sem saber onde meter as mãos, cofiando por isso as suas suíças durante todo o serão. Umas suíças, aliás, de excelente qualidade. Porém, alisava-as com tanta aplicação que, olhando para ele, nos passava realmente pela cabeça que, nele, no princípio tinham sido criadas as suíças e só depois o homem, para as alisar.
Além desta figura, participando deste modo na felicidade da família do anfitrião, pai de cinco filhos varões bem tratados, gostei de mais um senhor. Mas este era de um gênero absolutamente diferente. Chamava-se Iulian Mastákovitch. Logo ao primeiro olhar, ficava claro que era o convidado de honra e que as relações dele com o anfitrião eram semelhantes às relações do anfitrião com o senhor que cofiava as suíças. Os donos da casa diziam à personalidade um mar de amabilidades, cuidavam dele, serviam-lhe o vinho, mimavam-no e levavam junto dele os convidados para lhe serem apresentados e nunca o contrário. Reparei que nos olhos do anfitrião cintilaram lágrimas quando Iulian Mastákovitch observou que raramente passara momentos tão agradáveis como naquele serão. Senti uma espécie de medo na presença dessa personalidade, por isso, depois de contemplar com prazer as crianças, saí para uma saleta pequena que estava absolutamente vazia e sentei-me lá, do lado do pavilhão das flores da dona de casa, que ocupava quase metade da sala.
Todas as crianças eram incrivelmente queridas e não queriam, em definitivo, imitar os grandes, apesar de toda a persuasão das preceptoras e das mãezinhas. Desnudaram toda a árvore num instante, até ao último rebuçado, e já tinham tido tempo de estragar metade dos brinquedos antes de saberem qual era para quem. Era sobremaneira engraçado um rapazinho de olhos negros e cabelo encaracolado que insistia em matar-me com a sua espingarda de pau. Mas quem atraía as atenções gerais era a irmã dele, menina dos seus onze anos, encantadora como um Amor, quietinha, pensativa, pálida, com grandes olhos proeminentes. Como as crianças lhe tinham feito uma qualquer ofensa, ela refugiou-se também na saleta onde eu estava sentado e, num cantinho, começou a brincar com a sua boneca. Os convidados apontavam com respeito para um rico concessionário do Estado, pai dela, e havia quem observasse em sussurro que já lhe tinham sido destacados, como dote, trezentos mil rublos. Voltei-me para ver quem estava com tanta curiosidade por este facto, e os meus olhos logo recaíram sobre Iulian Mastákovitch que, de mãos atrás das costas e com a cabeça um pouco de viés, escutava com extraordinária atenção a vaniloquência desses senhores. Depois, não deixei de admirar a sabedoria dos anfitriões no tocante à distribuição das prendas entre as crianças. A menina que já tinha trezentos mil rublos de dote recebeu uma riquíssima boneca. Seguiram-se as outras prendas, inferiores, baixando de nível consoante as categorias de todas essas felizes crianças. Finalmente, a última criança, um rapazinho de dez anos, magrinho, pequeno, sardento e de cabelo ruivo, recebeu apenas um livro de novelas que falavam da grandeza da natureza, das lágrimas de ternura, etc., sem ilustrações e sem sequer monograma. Era o filho da preceptora dos filhos dos anfitriões, uma viúva pobre; o rapaz parecia extremamente intimidado. Vestia um casaquinho de nanquim barato. Depois de ter recebido o seu livro, andou durante muito tempo ao lado dos brinquedos; apetecia-lhe muito brincar com as outras crianças mas não se atrevia; tinha todo o ar de quem já sentia e compreendia a sua situação. Gosto muito de observar as crianças. É curiosíssima a sua primeira manifestação independente do caráter. Reparei que o garoto ruivo ficou de tal maneira fascinado pelos brinquedos ricos das outras crianças e pelas suas brincadeiras, sobretudo pelo teatro, em que lhe apetecia muito ter um papel, que resolveu bajular os outros. Sorria muito para as outras crianças, lisonjeava-as, chegando ao ponto de oferecer a sua maçã a um miúdo balofo que já tinha um lenço cheio de guloseimas e de carregar com outro às cavalitas, apenas para que não o pusessem de parte. Não obstante, não tardou que um traquinas qualquer lhe administrasse uma sova. O ruivo não se atreveu a chorar. Nisto chegou a preceptora, mãezinha do rapaz, e ordenou-lhe que não estorvasse as brincadeiras das outras crianças. O garoto refugiou-se também na saleta onde já estava a menina. Esta deixou-o brincar com ela, e puseram-se ambos, com entusiasmo, a ataviar a rica boneca.
Eu já estava havia meia hora no pavilhão circundado de heras e quase adormecera, escutando o tagarelar do ruivinho com a beldade dos trezentos mil rublos de dote, todos atarefados com a boneca, quando entrou de repente na sala Iulian Mastákovitch. Aproveitara-se de uma discussão escandalosa entre as crianças para se esgueirar, sorrateiro, da sala grande. Eu já tinha reparado que, uns momentos antes, ele mantivera uma conversa ardorosa com o paizinho da futura noiva rica, que acabara de conhecer, conversa que versava sobre as vantagens de determinado serviço sobre outro. Agora estava pensativo e parecia fazer contas de cabeça.
Trezentos... trezentos — sussurrava. — Onze... doze... treze, tal, tal. Dezesseis... cinco anos! Digamos, quatro por cento, faz doze... vezes cinco, faz sessenta... e estes sessenta... digamos que, dentro de cinco anos, fazem quatrocentos. Sim! Então... Mas também não pode ser que esse malandro faça só quatro por cento! Talvez oito ou dez por cento. Bom, digamos então quinhentos mil, pelo menos, isso de certeza; e o que sobrar é para os trapos, humm…
Terminando as suas cogitações, assoou o nariz e já ia sair da saleta quando viu de súbito a miúda. Parou. A mim não me via, porque eu estava atrás dos vasos das plantas. O senhor parecia-me emocionadíssimo. Fosse porque os cálculos que fizera tinham surtido os seus efeitos, fosse por qualquer outra coisa, o certo é que não parava quieto e não se cansava de esfregar as mãos. A sua emoção ia crescendo até nec plus ultra 2 , mas depois parou e lançou um olhar resoluto à futura noiva. Já ia a avançar para ela, mas primeiro olhou à volta. Depois, em bicos de pés, com um ar que parecia culpado, começou a aproximar-se da criança. Esboçou um sorrisinho, inclinou-se e beijou-a na cabeça. A miúda, que não esperava o ataque, soltou um grito assustado.
O que está a fazer aqui, minha linda menina? — perguntou ele num sussurro, olhando para trás de vez em quando e dando pancadinhas nas bochechas da garota.
Estamos a brincar...
Ai é? Com ele? — Iulian Mastákovitch olhou de soslaio para o rapazinho. — Tu, meu caro, vai para a sala — disse ao rapaz.
O rapaz calava-se e olhava para ele com os olhos muito abertos. Iulian Mastákovitch olhou de novo ao seu redor e inclinou-se para a miúda.
E isso o que é, minha linda menina, é uma bonequinha? — perguntou.
É uma boneca, pois — respondeu a miúda, de rosto franzido e um pouco tímida.
Uma boneca... Mas, linda menina, sabe de que é feita a sua boneca?
Não sei... — sussurrou a pequena, baixando muito a cabeça.
De trapinhos, alminha... Era melhor ires para a sala, para junto dos teus companheiros — disse Iulian Mastákovitch ao rapazinho, olhando-o com severidade. A miúda e o rapaz franziram as caras e agarraram-se um ao outro. Não queriam separar-se.
A menina sabe por que lhe ofereceram esta boneca? — perguntou Iulian Mastákovitch, baixando cada vez mais a voz.
Não sei.
Porque a menina foi querida e bem comportada toda a semana.
Então, muito emocionado, Iulian Mastákovitch olhou à volta e, baixando a voz cada vez mais, perguntou-lhe numa voz quase a apagar-se de emoção e impaciência:
Diga-me: vai gostar de mim quando eu visitar os seus pais?
Dizendo isto, Iulian Mastákovitch quis beijar mais uma vez a linda menina, mas o ruivinho, vendo que ela estava prestes a chorar, agarrou-lhe nas mãos e choramingou de compaixão. Iulian Mastákovitch enraiveceu-se.
Fora, fora daqui, embora! — disse ao garoto. — Vai para a sala, vai para lá, onde estão os da tua idade!
Não, não! O senhor é que deve sair daqui — disse a menina. — Deixe-o, deixe-o em paz! — dizia ela, quase a chorar.
Ouviu-se um barulho qualquer à porta. Iulian Mastákovitch endireitou de imediato o seu corpo majestoso e assustou-se. Mas o ruivinho assustou-se ainda mais do que Iulian Mastákovitch, abandonou a menina e, devagarinho, cosendo-se contra a parede, saiu da sala e foi para a de jantar. Para evitar suspeitas, Iulian Mastákovitch também foi para a sala de jantar. Estava vermelho como um lagostim e, olhando-se no espelho, como se envergonhou de si mesmo. Talvez o desgostasse a sua impaciência e pressa. Ou talvez o tivessem impressionado tanto as suas contas de cabeça, o tivesse aliciado e inspirado tanto que, apesar de ser um homem importante e sério, cedeu à tentação de se comportar como um rapaz leviano e abordar o seu objeto diretamente, apesar de esse objeto apenas dentro de cinco anos, pelo menos, poder ser o seu objeto. Segui o respeitável senhor para a sala de jantar e assisti a um espetáculo estranhíssimo. Iulian Mastákovitch, todo vermelho de desgosto e raiva, continuava a assustar o rapazinho ruivo que, morto de medo, já não sabia onde se havia de meter.
Lá para fora, sai daqui, o que estás aqui a fazer, seu malandro? Andas a roubar a fruta? Tu roubas a fruta? Sai daqui malandro, fora, moncoso, vai ter com os da tua idade!
O rapaz, assustado, decidiu recorrer a um meio desesperado, isto é, tentou meter-se debaixo da mesa. Então, o seu perseguidor, exaltado até ao último grau, tirou o seu lenço comprido de cambraia e, com ele, pôs-se a enxotar a intimidada criança de debaixo da mesa. É de notar que Iulian Mastákovitch era um pouquinho gorducho. Era um homem cheiinho, de bochechas vermelhas, rechonchudo, barrigudinho, com coxas gordas, enfim, era bem guarnecido, como se costuma dizer, redondinho como uma noz. Suava, resfolegava e enrubescia terrivelmente. Por fim, tão grande era a sua indignação (ou os seus ciúmes, talvez?) que se encarniçou. Eu ri-me às gargalhadas. Iulian Mastákovitch virou-se e, apesar de toda a sua importância, ficou muito confuso. Então, pela porta oposta, entrou o dono da casa. O garoto saiu de debaixo da mesa e pôs-se a limpar os joelhos e os cotovelos. Iulian Mastákovitch apressou-se a levar ao nariz o lenço que segurava por uma ponta.
O anfitrião olhou com certa perplexidade para nós os três, mas, como homem prático e que encarava a vida do ponto de vista sério, aproveitou a ocasião para ficar a sós com o seu convidado.
É este rapaz — disse ele, apontando para o ruivinho — por quem eu tive a honra de fazer-lhe o pedido...
O quê? — disse Iulian Mastákovitch, que ainda não se recompusera por completo.
É o filho da preceptora dos meus filhos — continuou o anfitrião em tom de súplica. — Ela é uma senhora pobre, viúva de um funcionário honesto; por isso... Iulian Mastákovitch, se possível...
Ah, não, não — disse apressadamente Iulian Mastákovitch em voz gritada —, não, desculpe, Filipp Alekséevitch, é impossível. Já me informei, não há vagas, e mesmo que houvesse já há dez candidatos para cada vaga que têm muito mais direito do que ele... Lamento, lamento...
Que pena — disse o anfitrião —, o garoto é modesto, sossegado...
Eu acho que ele é um grande traquinas — respondeu Iulian Mastákovitch, entortando histericamente a boca. — Vai, rapaz, vai, o que estás aqui a fazer? Vai ter com os da tua idade! — disse, dirigindo-se ao garoto.
Neste ponto, pelos vistos não aguentou e olhou para mim pelo rabo do olho. Eu também não aguentei e ri-me na cara dele. Iulian Mastákovitch virou-me a cara e perguntou de forma bastante audível quem era “este jovem estranho”. Começaram os dois a cochichar e saíram da sala. Vi depois que Iulian Mastákovitch, depois de ter ouvido o anfitrião, abanou a cabeça com desconfiança.
Eu, depois de me ter fartado de rir, voltei para a sala grande. Ali, o grande homem, rodeado de pais e mães de família, e também dos anfitriões, estava a explicar qualquer coisa com ardor a uma senhora junto da qual acabara de ser levado. A senhora segurava pela mão a menina da boneca com quem Iulian Mastákovitch tivera aquela cena na saleta. Agora, Iulian Mastákovitch desfazia-se em louvores e admiração relativamente à beleza, aos talentos, à graça e à boa educação da adorável criancinha. Bajulava notoriamente a mãezinha. Esta ouvia-o quase com lágrimas de admiração. Os lábios do pai sorriam. O anfitrião estava contente com as manifestações de alegria geral, já que todos os convidados compartilhavam este espírito alegre, e até os jogos das crianças foram interrompidos para que a conversa não fosse estorvada. O ar estava impregnado de veneração. Ouvi depois a mãezinha da interessante menina, em expressões esmeradas, a pedir a Iulian Mastákovitch que lhe desse a grande honra de oferecer à sua família a preciosa amizade dele, Iulian Mastákovitch; ouvi depois com que sincero entusiasmo Iulian Mastákovitch aceitou o convite e como, depois, os convidados se dispersaram por delicadeza para todos os lados, desfazendo-se em louvores comovidos ao concessionário do Estado, à sua esposa, à menina e, sobretudo, a Iulian Mastákovitch.
Este senhor é casado? — perguntei quase em voz alta a um dos meus conhecidos que estava mais perto de Iulian Mastákovitch.
Iulian Mastákovitch lançou-me um olhar desconfiado e raivoso.
Não! — respondeu o meu conhecido, triste até ao fundo da alma por causa das minhas inconvenientes e intencionais palavras...

Ainda há pouco tempo, passava eu junto da igreja de *** , e a multidão ali reunida impressionou-me. Falava-se do casamento que ali decorria. O dia estava cinzento, começava a cair uma água-neve; seguindo a multidão, entrei na igreja e vi o noivo. Era um homenzinho pequeno, redondinho, cheiinho, barrigudinho, todo aperaltado. Corria, azafamava-se, dava ordens. Por fim correu pela multidão o rumor de que já traziam a noiva. Furei através da multidão e vi uma beldade divina em que ainda mal despontava a primeira primavera. Mas a beldade estava triste e pálida, e trazia um olhar distraído; pareceu-me, até, que os olhos dela estavam vermelhos de lágrimas recentes. O rigor clássico de cada traço do seu rosto dava à beleza dela imponência e solenidade, o que não impedia que, através deste rigor e solenidade, através da tristeza, transparecesse a sua primeira imagem de marca, a imagem infantil e inocente; revelava-se nela qualquer coisa de muito ingênuo, ainda imaturo, verde e que parecia suplicar piedade.
Diziam que ainda mal acabara de fazer dezasseis anos. Olhando com atenção para o noivo, reconheci Iulian Mastákovitch, que vira pela última vez havia cinco anos certos... Meu Deus! Furei de volta por entre a multidão, até à saída da igreja. Entre o povo ali reunido dizia-se que a noiva era rica, que tinha quinhentos mil rublos de dote... Mais tanto, tanto e tanto de enxoval...
O cálculo dele estava correto!”, pensei eu, saindo finalmente para a rua.
Fiódor Dostoiévski, in O Ladrão Honesto e outras Histórias

Nenhum comentário:

Postar um comentário