sábado, 22 de fevereiro de 2020

Quincas Berro-D’água - IX

Quando surgiram na porta do quarto, Pé-de-Vento adiantou a mão em cuja palma estendida estava pousada a jia de olhos saltados. Ficaram parados na porta, uns por detrás dos outros, Negro Pastinha avançava a cabeçorra para ver. Pé-de-Vento, envergonhado, guardou o animal no bolso.
A família suspendeu a animada conversa, quatro pares de olhos hostis fitaram o grupo escabroso. Só faltava aquilo, pensou Vanda. Cabo Martim, que em matéria de educação só perdia para o próprio Quincas, retirou da cabeça o surrado chapéu, cumprimentou os presentes:
Boa tarde, damas e cavalheiros. A gente queria ver ele...
Deu um passo para dentro, os outros o acompanharam. A família afastou-se, eles rodearam o caixão. Curió chegou a pensar num engano, aquele morto não era Quincas Berro Dágua. Só o reconheceu pelo sorriso. Estavam surpreendidos os quatro, nunca poderiam imaginar Quincas tão limpo e elegante, tão bem vestido. Perderam num instante a segurança, diluiu-se como por encanto a bebedeira. A presença da família – sobretudo das mulheres – deixava-os amedrontados e tímidos, sem saber como agir, onde pousar as mãos, como comportar-se ante o morto.
Curió fitou os outros três, ridículo com seu rosto pintado de vermelhão e seu fraque roçado, a pedir que se fossem dali o mais depressa possível. Cabo Martim vacilava, como um general em véspera de batalha, enxergando o poderio inimigo. Pé-de-Vento chegou a dar um passo em direção à porta. Só Negro Pastinha, sempre por detrás dos outros, a cabeçona estirada para ver, não vacilou sequer um segundo. Quincas estava sorrindo para ele, o negro sorriu também. Não haveria força humana capaz de arrancá-lo dali, de perto do paizinho Quincas. Segurou Pé-de-Vento pelo braço, respondia com os olhos ao pedido de Curió. Cabo Martim compreendeu, um militar não foge do campo de luta. Afastaram-se os quatro de perto do caixão, para o fundo do quarto.
Agora estavam ali em silêncio, de um lado a família de Joaquim Soares da Cunha, filha, genro e irmãos, de outro lado os amigos de Quincas Berro Dágua. Pé-de-Vento metia a mão no bolso, tocava na jia amedrontada, como gostaria de mostrá-la a Quincas! Como se executassem um movimento de balé, ao afastarem-se do caixão os amigos, aproximaram-se os parentes. Vanda lançava um olhar de desprezo e reproche ao pai. Mesmo depois de morto, ele preferia a sociedade daqueles maltrapilhos.
Por eles estivera Quincas esperando, sua inquietação no fim da tarde devia-se apenas à demora, ao atraso da chegada dos vagabundos. Quando Vanda começava a acreditar o pai vencido, disposto finalmente a entregar-se, a silenciar os lábios de sujas palavras, derrotado pela resistência silenciosa e cheia de dignidade por ela oposta a todas as suas provocações, de novo resplandecia o sorriso na face morta, mais do que nunca era de Quincas Berro Dágua o cadáver em sua frente. Não fosse a lembrança ultrajada de Otacília e ela abandonaria a luta, largaria no Tabuão o corpo indigno, restituiria o esquife de tão pouco uso à empresa funerária, venderia as roupas novas por metade do preço a um mascate qualquer. O silêncio fazia-se insuportável.
Leonardo voltou-se para a esposa e a tia:
Acho que é hora de vocês irem indo. Daqui a pouco fica tarde. Minutos antes, tudo quanto Vanda desejava era ir para casa, descansar. Apertou os dentes, não era mulher para deixar-se vencer, respondeu:
Daqui a pouco.
Negro Pastinha sentou-se no chão, encostou a cabeça na parede. Pé-de-Vento cutucava-o com o pé, não ficava bem acomodar-se assim diante da família do morto. Curió queria retirar-se, cabo Martim fitava, repreensivo, o negro. Pastinha empurrou com a mão o pé incômodo do amigo, sua voz soluçou:
Ele era o pai da gente! Paizinho Quincas...
Foi como um soco no peito de Vanda, uma bofetada em Leonardo, uma cusparada em Eduardo. Só tia Marocas riu, sacudindo as banhas, sentada na cadeira única e disputada.
Que engraçado!
Negro Pastinha passou do choro ao riso, encantado com Marocas. Mais assustadora ainda que os seus soluços era a gargalhada do negro. Foi uma trovoada no quarto e Vanda ouvia um outro riso por detrás do riso de Pastinha: Quincas divertia-se uma enormidade.
Que falta de respeito é essa? – sua voz seca desfez aquele princípio de cordialidade. Ante a reprimenda, tia Marocas levantou-se, deu uns passos pelo quarto, sempre acompanhada pela simpatia do Negro Pastinha, a examiná-la dos pés à cabeça, achando-a uma mulher a seu gosto, um tanto envelhecida, sem dúvida, porém grande e gorda como ele apreciava. Não gostava dessas magricelas, cuja cintura a gente nem podia apertar. Se Negro Pastinha encontrasse essa madama na praia, fariam misérias os dois, bastava olhar para ela e logo se via sua qualidade. Tia Marocas começou a dizer de seu desejo de retirar-se, sentia-se cansada e nervosa. Vanda, tendo ocupado seu lugar na cadeira ante o caixão, não respondia, parecia um guarda cuidando de um tesouro.
Cansados estamos todos – falou Eduardo.
Era melhor mesmo elas irem embora... – Leonardo temia a ladeira do Tabuão mais tarde, quando houvesse cessado completamente o movimento do comércio e as prostitutas e os malandros a ocupassem.
Educado como era, e querendo colaborar, cabo Martim propôs:
Se os distintos querem ir descansar, tirar uma pestana, a gente fica tomando conta dele.
Eduardo sabia não estar direito: não podiam deixar o corpo sozinho com aquela gente, sem nenhum membro da família. Mas que gostaria de aceitar a proposta, ah! como gostaria! O dia inteiro no armazém, andando de um lado para outro, atendendo os fregueses, dando ordem aos empregados, arrasava um homem. Eduardo dormia cedo e acordava com a madrugada, horários rígidos. Ao voltar do armazém, após o banho e o jantar, sentava-se numa espreguiçadeira, estirava as pernas, dormia em seguida. Esse seu irmão Quincas só sabia lhe dar aborrecimentos. Há dez anos não fazia outra coisa. Obrigava-o naquela noite a estar ainda de pé, tendo comido apenas uns sanduíches. Por que não deixá-lo com seus amigos, aquela caterva de vagabundos, a gente com quem privara durante um decênio?... Que faziam ali, naquela pocilga imunda, naquele ninho de ratos, ele e Marocas, Vanda e Leonardo? Não tinha coragem de externar seus pensamentos: Vanda era malcriada, bem capaz de recordar-lhe as várias ocasiões em que ele, Eduardo, começando a vida, recorrera à bolsa de Quincas. Olhou o cabo Martim com certa benevolência.
Pé-de-Vento, derrotado em suas tentativas de fazer Negro Pastinha levantar-se, sentou-se também. Tinha vontade de colocar a jia na palma da mão e brincar com ela. Nunca tinha visto uma tão bonita. Curió, cuja infância em parte decorrera num asilo de menores dirigido por padres, buscava na embotada memória uma oração completa. Sempre ouvira dizer que os mortos necessitam de orações. E de padres... Já teria vindo o sacerdote ou viria apenas no dia seguinte? A pergunta coçava-lhe a garganta, não resistiu:
O padre já veio?
Amanhã de manhã... – respondeu Marocas.
Vanda repreendeu-a com os olhos: por que conversava com aquele canalha? Mas, tendo restabelecido o respeito, Vanda sentia-se melhor. Expulsara para um canto do quarto os vagabundos, impusera-lhes silêncio. Afinal não lhe seria possível passar a noite ali. Nem ela nem tia Marocas. Tivera uma vaga esperança, a começo: de que os indecentes amigos de Quincas não demorassem, no velório não havia nem bebida nem comida. Não sabia por que ainda estavam no quarto, não havia de ser por amizade ao morto, essa gente não tem amizade a ninguém. De qualquer maneira, mesmo a incômoda presença de tais amigos não tinha importância. Desde que eles não acompanhassem o enterro, no dia seguinte. Pela manhã, ao voltar para os funerais, ela, Vanda, recuperaria a direção dos acontecimentos, a família estaria outra vez a sós com o cadáver, enterrariam Joaquim Soares da Cunha com modéstia e dignidade. Levantou-se da cadeira, chamou Marocas:
Vamos.
E para Leonardo:
Não fique até muito tarde, você não pode perder noite. Tio Eduardo já disse que ficaria a noite toda.
Eduardo, apossando-se da cadeira, concordou. Leonardo foi acompanhá-las até o bonde. Cabo Martim arriscou um boa noite, madamas, não obteve resposta. Só a luz das velas iluminava o quarto. Negro Pastinha dormia, um ronco medonho.
Jorge Amado, in Quincas Berro-D’água

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