Há
doze anos tomavam café juntos e ela o acompanhava até a porta.
“Você está com um fio de cabelo branco. Tinge ou tira.” Ele
sorriu, apanhou a maleta e saiu para tomar o ônibus. Faltavam doze
para as oito, em três minutos estaria no ponto. O barbeiro estava
abrindo, a vizinha lavava a calçada, o médico tirava o carro da
garagem, o caminhão descarregava cervejas e refrigerantes no bar.
Estava no horário, podia caminhar tranquilo. Coçou a mão,
descobriu uma leve mancha avermelhada de dois centímetros de
diâmetro. Quando o ônibus chegou, a mão coçou de novo. Agora
ardia e ele teve a impressão de que no lugar da mancha havia uma
leve depressão. Como se tivesse apertado uma bolinha muito tempo,
com a mão fechada.
Não
tinha lugar sentado, cruzou a borboleta, foi até a frente,
cumprimentando pessoas que não sabia o nome, mas que tomavam o
elétrico na mesma hora que ele. Segurava a maleta com a mão
direita, com a esquerda apoiava-se no varão do teto. Três pontos
antes do final, o ônibus superlotado, ele sentiu uma comichão
violenta. Não podia olhar, nem levantar a mão. Estava chegando,
dava para esperar. Foi empurrado para a saída, despediu-se das
pessoas, olhou a mão. No lugar da mancha tinha um buraco. De dois
centímetros de diâmetro. Um orifício perfeito. Como se tivesse
sempre estado ali. Nascido. Passou os dedos pelas bordas, por dentro,
sentindo cócegas. Assoprou por dentro. Olhou através dele,
acompanhando uma aleijada que caminhava na outra calçada. Afastava a
mão dos olhos, focalizava um objeto, aproximava a mão. Ficou algum
tempo distraído. Quando chegou no escritório, o chefe quis saber o
porquê do atraso.
– Foi
por causa do furo na mão.
– Ah,
é? Pois vai ter um furo de meio dia no salário! Está bem?
Não
fazia mal, havia quinze anos ele não tinha uma falta, um minuto
descontado. Foi para a mesa, perturbado com o furo. Não triste, só
querendo saber o que podia fazer com aquilo. Passou o dia disfarçando
a mão entre os papéis. Não queria que os colegas vissem. Eles não
tinham furo na mão. De vez em quando soprava através do buraco,
fazia barulhos estranhos com a boca. Na hora do lanche, focalizou um
colega, colocando a mão sobre o olho. Na hora de bater ponto de
saída, enfiou a alavanca no buraco e empurrou. Contente, sentia-se
mais que os outros. A sensação começara no meio da manhã, depois
que a primeira depressão desaparecera. Tinha pensado em ir ao
médico, explicar o caso. Desistiu. A mulher esperava na porta,
tomando a fresca da tarde. Entraram, ele tomou banho e descansou dez
minutos, como todos os dias. Foram até a sala, ele desligou a TV, a
mulher ficou olhando para a tela cinza, como se esperasse ainda ver a
novela interrompida. Então, ele mostrou a mão e a mulher começou a
chorar. Chorou e soluçou por dez minutos. Depois perguntou:
– Dói
muito?
– Não
dói nada.
– Foi
um acidente?
– Não,
apareceu no ônibus.
– Como
apareceu?
– Apareceu.
– E
se a gente reclamar da companhia de ônibus?
– Ela
não tem nada com isso.
A
mulher foi ao banheiro. Trouxe o estojo de emergência, apanhou gaze,
esparadrapo, mercuriocromo. Ele não deixou fazer a atadura.
– Não
precisa, está cicatrizado!
– Não
vai me andar com esse buraco por aí. O que as vizinhas vão dizer?
Que não cuido de você?
– Mas
eu quero que vejam. Só eu tenho esse buraco.
– É
tão feio.
À
noite, ele se levantou para observar o furo na mão. Deixou embaixo
da torneira, a água correndo pelo meio. No dia seguinte, a mulher
tentou de novo enfaixar a mão, ele não deixou. Estava orgulhoso do
furo. Foi trabalhar e no fim da tarde estava decepcionado. Ninguém
no escritório tinha ligado para a mão dele. Fizera de tudo em
frente aos colegas. Assoara o nariz, passara o dia com a mão na
testa. Ao voltar para casa, não encontrou a mulher na porta. Na mesa
havia um bilhete: “Não posso viver com você enquanto esse buraco
existir.” A casa vazia, ele abriu a geladeira, só encontrou
manteiga, comeu com pão. Foi comprar revistas, jornais, ficou lendo,
com o rádio ligado. Não ouvia o rádio, só gostava do barulho.
Todas as manhãs, quando acordava, deixava o rádio ligado, ouvindo
ruídos, sem estar em estação alguma. Depois, viu televisão até
cair de cansaço. Dormiu na poltrona.
Do
escritório telefonou para o emprego do sogro. A mulher não tinha
aparecido na casa dos pais. Na hora do almoço saiu de táxi, rodando
pela casa de amigos e amigas. E parentes. Nada. À noite, foi à
igreja. Ela costumava ir. Passou na polícia e deu queixa. Comeu
sanduíche num bar, ficou vendo televisão até cair de cansaço. Foi
acordado pela empregada que vinha às quintas-feiras.
– O
senhor está com um buraco na mão! Vou colocar band-aid.
– Não
precisa, não. Pode deixar.
– Como
pode? O senhor não vai sair assim.
– Vou,
não quero band-aid.
Cinco
minutos depois a empregada saiu, com a bolsa, dizendo até logo, não
volto mais. Ele dormiu mais um pouco. Acordou com o silêncio da
casa, os cômodos na penumbra, tudo desarrumado. Gostou da
desarrumação. Fez café, jogou pó no chão, molhou tudo que pôde,
derrubou lixo. Tomou banho, jogou as toalhas, molhou o chão, largou
o sabonete dentro da privada. Saiu. Pela segunda vez em doze anos
saía sozinho sem ninguém para acompanhá-lo até a porta, sem a
sensação de estar vigiado, de ter de ir e voltar ao mesmo lugar,
ter de justificar as coisas, o dia, os movimentos.
Chegou
atrasado ao ponto. Quando subiu no ônibus, não conhecia ninguém. O
cobrador se levantou.
– O
senhor pode tomar outro carro, por favor?
– Outro
carro, por quê?
– Ordem
da Companhia, não sei de nada.
– Que
coisa ridícula. Ordem da Companhia. Não vou tomar outro. Vou nesse
mesmo.
– Por
favor! Não arrume complicação. Desça. Os passageiros estão
esperando.
Todos
olhavam para ele. Sentou-se, segurando firme a maleta. Os outros
passageiros começaram a descer. O cobrador foi buscar um policial. O
motorista chegou, olhando o furo na mão, bem visível, por cima da
maleta.
– Por
que o senhor não vai por bem?
– Pago
minha passagem, tenho direito de andar no carro que quiser.
– Não
tem nada. O senhor é que pensa.
O
policial entrou, apanhou o homem com furo na mão pela gola, jogou-o
fora, na calçada. A maleta abriu, os papéis espalharam. Ajoelhado,
ele começou a catá-los. O povo olhando. O policial disse:
– Quando
mandarem o senhor tomar outro carro, o senhor toma.
Ele
pensou: estão todos combinados, não é possível, é uma
brincadeira da turma, comigo. Depois, se lembrou que não tinha
turma, vivia só, ele e a mulher, às vezes ela até reclamava. Os
passageiros voltaram ao ônibus. Ele se levantou, ficou encostado no
ponto. Minutos depois chegou outro ônibus. Só abriu a porta da
frente, alguns passageiros desceram. Bateu na porta de entrada,
chutou, o cobrador colocou a cabeça para fora.
– Ei,
companheiro, o que é isso? Espere chegar o outro carro.
Decidiu
ir a pé. Tinha anotado os números dos ônibus, iria à companhia
fazer uma reclamação. O pior é que chegaria atrasado. Quando
entrou no escritório, passou rápido pelo chefe, este não se
incomodou. Foi direto para a mesa. Havia um paletó na cadeira. Ele
colocou a maleta na mesa, sentou-se. Abriu a gaveta, não a encontrou
arrumada, como deixava todos os dias, no fim da tarde, os lápis
selecionados por cores, os clips, borracha, papéis ordenados. Estava
tudo remexido. Ouviu um “com licença”, levantou os olhos,
encontrou um homem de trinta anos, gordo.
– O
que é?
– Desculpe!
Essa mesa é minha.
– Sua?
– Me
deram hoje de manhã.
– Que
coisa ridícula. Ordem da Companhia. Não vou tomar outro. Vou nesse
mesmo.
– Por
favor! Não arrume complicação. Desça. Os passageiros estão
esperando.
Todos
olhavam para ele. Sentou-se, segurando firme a maleta. Os outros
passageiros começaram a descer. O cobrador foi buscar um policial. O
motorista chegou, olhando o furo na mão, bem visível, por cima da
maleta.
– Por
que o senhor não vai por bem?
– Pago
minha passagem, tenho direito de andar no carro que quiser.
– Não
tem nada. O senhor é que pensa.
O
policial entrou, apanhou o homem com furo na mão pela gola, jogou-o
fora, na calçada. A maleta abriu, os papéis espalharam. Ajoelhado,
ele começou a catá-los. O povo olhando. O policial disse:
– Quando
mandarem o senhor tomar outro carro, o senhor toma.
Ele
pensou: estão todos combinados, não é possível, é uma
brincadeira da turma, comigo. Depois, se lembrou que não tinha
turma, vivia só, ele e a mulher, às vezes ela até reclamava. Os
passageiros voltaram ao ônibus. Ele se levantou, ficou encostado no
ponto. Minutos depois chegou outro ônibus. Só abriu a porta da
frente, alguns passageiros desceram. Bateu na porta de entrada,
chutou, o cobrador colocou a cabeça para fora.
– Ei,
companheiro, o que é isso? Espere chegar o outro carro.
Decidiu
ir a pé. Tinha anotado os números dos ônibus, iria à companhia
fazer uma reclamação. O pior é que chegaria atrasado. Quando
entrou no escritório, passou rápido pelo chefe, este não se
incomodou. Foi direto para a mesa. Havia um paletó na cadeira. Ele
colocou a maleta na mesa, sentou-se. Abriu a gaveta, não a encontrou
arrumada, como deixava todos os dias, no fim da tarde, os lápis
selecionados por cores, os clips, borracha, papéis ordenados. Estava
tudo remexido. Ouviu um “com licença”, levantou os olhos,
encontrou um homem de trinta anos, gordo.
– O
que é?
– Desculpe!
Essa mesa é minha.
– Sua?
– Me
deram hoje de manhã.
– É
minha. Onde estão as minhas coisas?
– Num
pacote com o chefe.
Foi
até o chefe.
– O
que está acontecendo?
– Nada.
– Tem
outro na minha mesa.
– A
mesa é da Companhia.
– Bom,
eu ocupava aquela. E agora?
– Não
ocupa mais. Você não trabalha mais aqui.
– Por
quê?
– Sua
mão. Esse buraco é inconveniente.
A
mulher tinha razão. Seria preciso colocar um band-aid para esconder
o furo. Mas, se escondesse, ficaria sem ele. E gostava daquele buraco
perfeito, círculo exato. Talvez até inventasse um jogo qualquer,
com bolas de gude atravessando a palma da mão. Era uma boa ideia,
podia se apresentar na televisão.
– E
o meu dinheiro? A indenização?
– Indenização?
Você foi demitido por justa causa.
– Justa
causa?
– É
proibido ter buraco na mão. Não sabia?
– Nunca
existiu isso nos regulamentos.
– Existe.
Está no Decreto Inexistente.
– Quero
ver.
– É
inexistente. O senhor não pode ver.
Pensou
em procurar um advogado, correr à justiça trabalhista. Não podiam
fazer aquilo! Amanhã ou depois cuidaria disso. Tinha tempo. Resolveu
ir ao cinema. Há vinte e dois anos não ia ao cinema num dia de
semana, à tarde. Comprou o bilhete no primeiro que encontrou. Nem
olhou que filme era. Quando entregou ao porteiro, este perguntou:
– O
senhor tem certeza de que é este o filme que quer ver?
Como
ele não tinha, ficou indeciso. O porteiro aproveitou.
– Está
vendo? O senhor se enganou. Se quiser, a bilheteira devolve o
dinheiro.
Ele
se recuperou, protestou. Era esse filme mesmo, que negócio é esse,
também aqui essa brincadeira?
– Por
favor, meu senhor! Vá a outro cinema.
– E
se quero ir neste?
– Melhor
não entrar. Ou sou obrigado a chamar o gerente.
– Pode
chamar.
O
gerente veio, acompanhado de um segurança de cara amarrada.
– Por
que não posso entrar no cinema?
– O
senhor pode! Qual é o problema?
– O
porteiro disse que não posso.
– Eu
não disse. Só pedi ao senhor para ir a outro cinema.
– Quero
este.
(Deixa
ele entrar, murmurou o gerente ao porteiro.)
Ele
sentou-se numa fila do meio, vazia. Atrás dele, pessoas cochicharam,
se levantaram, saíram. De instante em instante, uma pessoa saía da
sala. Ele não prestava atenção, apenas achava muito barulho e
movimentação. Devia ser sempre assim nas sessões da tarde. Quando
a fita terminou só tinha ele na sala. Resolveu fumar um cigarro. Na
sala de espera, quatro seguranças se dirigiram a ele.
– Quer
nos acompanhar?
– Onde?
– Não
tem que perguntar!
Quando
chegaram na calçada, os brutamontes disseram:
– Agora,
vai andando quieto! Sempre em frente! Sem falar com ninguém! Sem
olhar para os lados. Vai.
Ficou
pela rua. Estranho, estar no meio daquela gente toda que se cruzava.
Será que não estavam fazendo nada? Olhava vitrinas, livrarias,
agências de viagens, via homens de maleta preta. A maleta? Tinha
deixado no escritório. Era disso que sentia falta. A maleta na mão.
Mesmo quando não precisava dela, carregava. Fazia parte dele. Agora,
os braços ficavam soltos, desamparados. Sentia uma tensão, ao se
ver na rua, àquela hora no meio da gente toda. Duas vezes se
surpreendeu caminhando em direção ao escritório. De repente,
entendeu de vez que não precisava voltar lá. O alívio foi tão
grande que começou a suar. E se assustou um pouco. Era como se
tivesse sarado de uma doença terrível, depois de ter estado à
beira da morte. Ou sair de dentro da água, quando estava se
afogando. Sentia-se amedrontado, uma sensação esquisita por dentro.
Culpado de estar sem o que fazer. Livre, caminhando para onde queria.
Tudo por causa do buraco. Olhou as pessoas através dele. O gesto de
levar a palma da mão à frente do olho estava se tornando um tique.
Andou,
descontraído. Sentindo-se mais leve a cada hora que passava. Muito
tarde da noite (não precisava voltar para casa; atravessara como que
flutuando as seis, sete, oito horas; quase pegou o ônibus,
lembrou-se a tempo, ficou vagando pela cidade, vendo a noite cair, o
movimento diminuir, as pessoas mudarem nas ruas). Sentou-se num banco
da praça, olhando a mão. Gostava ainda mais do furo.
– O
senhor quer sair desse banco?
Era
um homem de farda abóbora, distintivo no peito: Fiscalização de
Parques e Jardins.
– O
que tem esse banco?
– Não
pode sentar nele.
Ele
mudou para o banco ao lado, o homem seguiu atrás.
– Nem
nesse.
– Em
qual então?
– Em
nenhum.
– Olhe
quanta gente sentada.
– Eles
não têm buraco na mão.
O
homem enfiou a mão embaixo da túnica, tirou um cacetete, deu uma
pancada na cabeça dele. As pessoas se aproximaram, enquanto ele
cambaleava.
– Socorro,
disse, com a voz fraca, amparando-se num velhote. O velhote se
afastou, ele caiu no chão. A cabeça latejando terrivelmente.
– Por
que fez isso?
– Pedi
para não sentar, o senhor teimou. Agora, saia da praça.
– Saia,
saia, gritavam as pessoas em volta.
Andou,
sem se incomodar com o povo, o fiscal. Passou a mão na cabeça,
sangrava. Num bar, pediu um copo de água gelada, jogou na cabeça.
Decidiu que não iria para casa. Talvez passasse por uma delegacia
para dar queixa, abrir um processo contra o fiscal. Embaixo de um
viaduto, sentou-se. Vagabundos (seriam vagabundos?) tinham acendido
uma fogueira. Acordou, o sol nascendo, levantou-se rápido. De pé,
lembrou-se que não precisava ir ao emprego, ir a lugar nenhum.
Sentou-se de novo, vendo os vagabundos (seriam vagabundos?) tomarem o
que parecia café. Aproximou-se. Um deles estendeu uma lata. Quando
olhou a mão do homem, viu nela um orifício de uns dois centímetros
de diâmetro que atravessava da palma às costas. Então, ele também
mostrou a mão. O homem não disse nada. Ele tomou o café. Ralo, de
pó catado nos lixos dos bares, já tinha passado uma ou duas vezes
pelo coador. Serviu para assentar o estômago.
Ignácio
de Loyola Brandão, in Cadeiras Proibidas
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