sábado, 8 de fevereiro de 2020

O homem do furo na mão

Há doze anos tomavam café juntos e ela o acompanhava até a porta. “Você está com um fio de cabelo branco. Tinge ou tira.” Ele sorriu, apanhou a maleta e saiu para tomar o ônibus. Faltavam doze para as oito, em três minutos estaria no ponto. O barbeiro estava abrindo, a vizinha lavava a calçada, o médico tirava o carro da garagem, o caminhão descarregava cervejas e refrigerantes no bar. Estava no horário, podia caminhar tranquilo. Coçou a mão, descobriu uma leve mancha avermelhada de dois centímetros de diâmetro. Quando o ônibus chegou, a mão coçou de novo. Agora ardia e ele teve a impressão de que no lugar da mancha havia uma leve depressão. Como se tivesse apertado uma bolinha muito tempo, com a mão fechada.
Não tinha lugar sentado, cruzou a borboleta, foi até a frente, cumprimentando pessoas que não sabia o nome, mas que tomavam o elétrico na mesma hora que ele. Segurava a maleta com a mão direita, com a esquerda apoiava-se no varão do teto. Três pontos antes do final, o ônibus superlotado, ele sentiu uma comichão violenta. Não podia olhar, nem levantar a mão. Estava chegando, dava para esperar. Foi empurrado para a saída, despediu-se das pessoas, olhou a mão. No lugar da mancha tinha um buraco. De dois centímetros de diâmetro. Um orifício perfeito. Como se tivesse sempre estado ali. Nascido. Passou os dedos pelas bordas, por dentro, sentindo cócegas. Assoprou por dentro. Olhou através dele, acompanhando uma aleijada que caminhava na outra calçada. Afastava a mão dos olhos, focalizava um objeto, aproximava a mão. Ficou algum tempo distraído. Quando chegou no escritório, o chefe quis saber o porquê do atraso.
Foi por causa do furo na mão.
Ah, é? Pois vai ter um furo de meio dia no salário! Está bem?
Não fazia mal, havia quinze anos ele não tinha uma falta, um minuto descontado. Foi para a mesa, perturbado com o furo. Não triste, só querendo saber o que podia fazer com aquilo. Passou o dia disfarçando a mão entre os papéis. Não queria que os colegas vissem. Eles não tinham furo na mão. De vez em quando soprava através do buraco, fazia barulhos estranhos com a boca. Na hora do lanche, focalizou um colega, colocando a mão sobre o olho. Na hora de bater ponto de saída, enfiou a alavanca no buraco e empurrou. Contente, sentia-se mais que os outros. A sensação começara no meio da manhã, depois que a primeira depressão desaparecera. Tinha pensado em ir ao médico, explicar o caso. Desistiu. A mulher esperava na porta, tomando a fresca da tarde. Entraram, ele tomou banho e descansou dez minutos, como todos os dias. Foram até a sala, ele desligou a TV, a mulher ficou olhando para a tela cinza, como se esperasse ainda ver a novela interrompida. Então, ele mostrou a mão e a mulher começou a chorar. Chorou e soluçou por dez minutos. Depois perguntou:
Dói muito?
Não dói nada.
Foi um acidente?
Não, apareceu no ônibus.
Como apareceu?
Apareceu.
E se a gente reclamar da companhia de ônibus?
Ela não tem nada com isso.
A mulher foi ao banheiro. Trouxe o estojo de emergência, apanhou gaze, esparadrapo, mercuriocromo. Ele não deixou fazer a atadura.
Não precisa, está cicatrizado!
Não vai me andar com esse buraco por aí. O que as vizinhas vão dizer? Que não cuido de você?
Mas eu quero que vejam. Só eu tenho esse buraco.
É tão feio.
À noite, ele se levantou para observar o furo na mão. Deixou embaixo da torneira, a água correndo pelo meio. No dia seguinte, a mulher tentou de novo enfaixar a mão, ele não deixou. Estava orgulhoso do furo. Foi trabalhar e no fim da tarde estava decepcionado. Ninguém no escritório tinha ligado para a mão dele. Fizera de tudo em frente aos colegas. Assoara o nariz, passara o dia com a mão na testa. Ao voltar para casa, não encontrou a mulher na porta. Na mesa havia um bilhete: “Não posso viver com você enquanto esse buraco existir.” A casa vazia, ele abriu a geladeira, só encontrou manteiga, comeu com pão. Foi comprar revistas, jornais, ficou lendo, com o rádio ligado. Não ouvia o rádio, só gostava do barulho. Todas as manhãs, quando acordava, deixava o rádio ligado, ouvindo ruídos, sem estar em estação alguma. Depois, viu televisão até cair de cansaço. Dormiu na poltrona.
Do escritório telefonou para o emprego do sogro. A mulher não tinha aparecido na casa dos pais. Na hora do almoço saiu de táxi, rodando pela casa de amigos e amigas. E parentes. Nada. À noite, foi à igreja. Ela costumava ir. Passou na polícia e deu queixa. Comeu sanduíche num bar, ficou vendo televisão até cair de cansaço. Foi acordado pela empregada que vinha às quintas-feiras.
O senhor está com um buraco na mão! Vou colocar band-aid.
Não precisa, não. Pode deixar.
Como pode? O senhor não vai sair assim.
Vou, não quero band-aid.
Cinco minutos depois a empregada saiu, com a bolsa, dizendo até logo, não volto mais. Ele dormiu mais um pouco. Acordou com o silêncio da casa, os cômodos na penumbra, tudo desarrumado. Gostou da desarrumação. Fez café, jogou pó no chão, molhou tudo que pôde, derrubou lixo. Tomou banho, jogou as toalhas, molhou o chão, largou o sabonete dentro da privada. Saiu. Pela segunda vez em doze anos saía sozinho sem ninguém para acompanhá-lo até a porta, sem a sensação de estar vigiado, de ter de ir e voltar ao mesmo lugar, ter de justificar as coisas, o dia, os movimentos.
Chegou atrasado ao ponto. Quando subiu no ônibus, não conhecia ninguém. O cobrador se levantou.
O senhor pode tomar outro carro, por favor?
Outro carro, por quê?
Ordem da Companhia, não sei de nada.
Que coisa ridícula. Ordem da Companhia. Não vou tomar outro. Vou nesse mesmo.
Por favor! Não arrume complicação. Desça. Os passageiros estão esperando.
Todos olhavam para ele. Sentou-se, segurando firme a maleta. Os outros passageiros começaram a descer. O cobrador foi buscar um policial. O motorista chegou, olhando o furo na mão, bem visível, por cima da maleta.
Por que o senhor não vai por bem?
Pago minha passagem, tenho direito de andar no carro que quiser.
Não tem nada. O senhor é que pensa.
O policial entrou, apanhou o homem com furo na mão pela gola, jogou-o fora, na calçada. A maleta abriu, os papéis espalharam. Ajoelhado, ele começou a catá-los. O povo olhando. O policial disse:
Quando mandarem o senhor tomar outro carro, o senhor toma.
Ele pensou: estão todos combinados, não é possível, é uma brincadeira da turma, comigo. Depois, se lembrou que não tinha turma, vivia só, ele e a mulher, às vezes ela até reclamava. Os passageiros voltaram ao ônibus. Ele se levantou, ficou encostado no ponto. Minutos depois chegou outro ônibus. Só abriu a porta da frente, alguns passageiros desceram. Bateu na porta de entrada, chutou, o cobrador colocou a cabeça para fora.
Ei, companheiro, o que é isso? Espere chegar o outro carro.
Decidiu ir a pé. Tinha anotado os números dos ônibus, iria à companhia fazer uma reclamação. O pior é que chegaria atrasado. Quando entrou no escritório, passou rápido pelo chefe, este não se incomodou. Foi direto para a mesa. Havia um paletó na cadeira. Ele colocou a maleta na mesa, sentou-se. Abriu a gaveta, não a encontrou arrumada, como deixava todos os dias, no fim da tarde, os lápis selecionados por cores, os clips, borracha, papéis ordenados. Estava tudo remexido. Ouviu um “com licença”, levantou os olhos, encontrou um homem de trinta anos, gordo.
O que é?
Desculpe! Essa mesa é minha.
Sua?
Me deram hoje de manhã.
Que coisa ridícula. Ordem da Companhia. Não vou tomar outro. Vou nesse mesmo.
Por favor! Não arrume complicação. Desça. Os passageiros estão esperando.
Todos olhavam para ele. Sentou-se, segurando firme a maleta. Os outros passageiros começaram a descer. O cobrador foi buscar um policial. O motorista chegou, olhando o furo na mão, bem visível, por cima da maleta.
Por que o senhor não vai por bem?
Pago minha passagem, tenho direito de andar no carro que quiser.
Não tem nada. O senhor é que pensa.
O policial entrou, apanhou o homem com furo na mão pela gola, jogou-o fora, na calçada. A maleta abriu, os papéis espalharam. Ajoelhado, ele começou a catá-los. O povo olhando. O policial disse:
Quando mandarem o senhor tomar outro carro, o senhor toma.
Ele pensou: estão todos combinados, não é possível, é uma brincadeira da turma, comigo. Depois, se lembrou que não tinha turma, vivia só, ele e a mulher, às vezes ela até reclamava. Os passageiros voltaram ao ônibus. Ele se levantou, ficou encostado no ponto. Minutos depois chegou outro ônibus. Só abriu a porta da frente, alguns passageiros desceram. Bateu na porta de entrada, chutou, o cobrador colocou a cabeça para fora.
Ei, companheiro, o que é isso? Espere chegar o outro carro.
Decidiu ir a pé. Tinha anotado os números dos ônibus, iria à companhia fazer uma reclamação. O pior é que chegaria atrasado. Quando entrou no escritório, passou rápido pelo chefe, este não se incomodou. Foi direto para a mesa. Havia um paletó na cadeira. Ele colocou a maleta na mesa, sentou-se. Abriu a gaveta, não a encontrou arrumada, como deixava todos os dias, no fim da tarde, os lápis selecionados por cores, os clips, borracha, papéis ordenados. Estava tudo remexido. Ouviu um “com licença”, levantou os olhos, encontrou um homem de trinta anos, gordo.
O que é?
Desculpe! Essa mesa é minha.
Sua?
Me deram hoje de manhã.
É minha. Onde estão as minhas coisas?
Num pacote com o chefe.
Foi até o chefe.
O que está acontecendo?
Nada.
Tem outro na minha mesa.
A mesa é da Companhia.
Bom, eu ocupava aquela. E agora?
Não ocupa mais. Você não trabalha mais aqui.
Por quê?
Sua mão. Esse buraco é inconveniente.
A mulher tinha razão. Seria preciso colocar um band-aid para esconder o furo. Mas, se escondesse, ficaria sem ele. E gostava daquele buraco perfeito, círculo exato. Talvez até inventasse um jogo qualquer, com bolas de gude atravessando a palma da mão. Era uma boa ideia, podia se apresentar na televisão.
E o meu dinheiro? A indenização?
Indenização? Você foi demitido por justa causa.
Justa causa?
É proibido ter buraco na mão. Não sabia?
Nunca existiu isso nos regulamentos.
Existe. Está no Decreto Inexistente.
Quero ver.
É inexistente. O senhor não pode ver.
Pensou em procurar um advogado, correr à justiça trabalhista. Não podiam fazer aquilo! Amanhã ou depois cuidaria disso. Tinha tempo. Resolveu ir ao cinema. Há vinte e dois anos não ia ao cinema num dia de semana, à tarde. Comprou o bilhete no primeiro que encontrou. Nem olhou que filme era. Quando entregou ao porteiro, este perguntou:
O senhor tem certeza de que é este o filme que quer ver?
Como ele não tinha, ficou indeciso. O porteiro aproveitou.
Está vendo? O senhor se enganou. Se quiser, a bilheteira devolve o dinheiro.
Ele se recuperou, protestou. Era esse filme mesmo, que negócio é esse, também aqui essa brincadeira?
Por favor, meu senhor! Vá a outro cinema.
E se quero ir neste?
Melhor não entrar. Ou sou obrigado a chamar o gerente.
Pode chamar.
O gerente veio, acompanhado de um segurança de cara amarrada.
Por que não posso entrar no cinema?
O senhor pode! Qual é o problema?
O porteiro disse que não posso.
Eu não disse. Só pedi ao senhor para ir a outro cinema.
Quero este.
(Deixa ele entrar, murmurou o gerente ao porteiro.)
Ele sentou-se numa fila do meio, vazia. Atrás dele, pessoas cochicharam, se levantaram, saíram. De instante em instante, uma pessoa saía da sala. Ele não prestava atenção, apenas achava muito barulho e movimentação. Devia ser sempre assim nas sessões da tarde. Quando a fita terminou só tinha ele na sala. Resolveu fumar um cigarro. Na sala de espera, quatro seguranças se dirigiram a ele.
Quer nos acompanhar?
Onde?
Não tem que perguntar!
Quando chegaram na calçada, os brutamontes disseram:
Agora, vai andando quieto! Sempre em frente! Sem falar com ninguém! Sem olhar para os lados. Vai.
Ficou pela rua. Estranho, estar no meio daquela gente toda que se cruzava. Será que não estavam fazendo nada? Olhava vitrinas, livrarias, agências de viagens, via homens de maleta preta. A maleta? Tinha deixado no escritório. Era disso que sentia falta. A maleta na mão. Mesmo quando não precisava dela, carregava. Fazia parte dele. Agora, os braços ficavam soltos, desamparados. Sentia uma tensão, ao se ver na rua, àquela hora no meio da gente toda. Duas vezes se surpreendeu caminhando em direção ao escritório. De repente, entendeu de vez que não precisava voltar lá. O alívio foi tão grande que começou a suar. E se assustou um pouco. Era como se tivesse sarado de uma doença terrível, depois de ter estado à beira da morte. Ou sair de dentro da água, quando estava se afogando. Sentia-se amedrontado, uma sensação esquisita por dentro. Culpado de estar sem o que fazer. Livre, caminhando para onde queria. Tudo por causa do buraco. Olhou as pessoas através dele. O gesto de levar a palma da mão à frente do olho estava se tornando um tique.
Andou, descontraído. Sentindo-se mais leve a cada hora que passava. Muito tarde da noite (não precisava voltar para casa; atravessara como que flutuando as seis, sete, oito horas; quase pegou o ônibus, lembrou-se a tempo, ficou vagando pela cidade, vendo a noite cair, o movimento diminuir, as pessoas mudarem nas ruas). Sentou-se num banco da praça, olhando a mão. Gostava ainda mais do furo.
O senhor quer sair desse banco?
Era um homem de farda abóbora, distintivo no peito: Fiscalização de Parques e Jardins.
O que tem esse banco?
Não pode sentar nele.
Ele mudou para o banco ao lado, o homem seguiu atrás.
Nem nesse.
Em qual então?
Em nenhum.
Olhe quanta gente sentada.
Eles não têm buraco na mão.
O homem enfiou a mão embaixo da túnica, tirou um cacetete, deu uma pancada na cabeça dele. As pessoas se aproximaram, enquanto ele cambaleava.
Socorro, disse, com a voz fraca, amparando-se num velhote. O velhote se afastou, ele caiu no chão. A cabeça latejando terrivelmente.
Por que fez isso?
Pedi para não sentar, o senhor teimou. Agora, saia da praça.
Saia, saia, gritavam as pessoas em volta.
Andou, sem se incomodar com o povo, o fiscal. Passou a mão na cabeça, sangrava. Num bar, pediu um copo de água gelada, jogou na cabeça. Decidiu que não iria para casa. Talvez passasse por uma delegacia para dar queixa, abrir um processo contra o fiscal. Embaixo de um viaduto, sentou-se. Vagabundos (seriam vagabundos?) tinham acendido uma fogueira. Acordou, o sol nascendo, levantou-se rápido. De pé, lembrou-se que não precisava ir ao emprego, ir a lugar nenhum. Sentou-se de novo, vendo os vagabundos (seriam vagabundos?) tomarem o que parecia café. Aproximou-se. Um deles estendeu uma lata. Quando olhou a mão do homem, viu nela um orifício de uns dois centímetros de diâmetro que atravessava da palma às costas. Então, ele também mostrou a mão. O homem não disse nada. Ele tomou o café. Ralo, de pó catado nos lixos dos bares, já tinha passado uma ou duas vezes pelo coador. Serviu para assentar o estômago.
Ignácio de Loyola Brandão, in Cadeiras Proibidas

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