quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020

O grito da fome



O dia começou auspiciosamente. Eles não tinham perdido nenhum cachorro durante a noite, e lançaram-se sobre a trilha no meio do silêncio, escuridão e frio com um ânimo bastante leve. Bill parecia ter esquecido os seus presságios da noite anterior, e até se mostrou brincalhão com os cachor ros quando, ao meio-dia, eles viraram o trenó num trecho ruim da trilha.
Foi uma confusão danada. O trenó estava de cabeça para baixo e espremido entre o tronco de uma árvore e uma imensa rocha, e eles foram obrigados a tirar os arreios dos cachorros para desenredar os tirantes. Os dois homens estavam inclinados sobre o trenó tentando endireitá-lo, quando Henry observou Uma Orelha afastando-se furtivamente.
Ei, aqui, Uma Orelha! – gritou endireitando-se e virando-se para o cachorro.
Mas Uma Orelha saiu correndo pela neve, os tirantes arrastando-se atrás de si. E ali, no meio da neve da trilha já percorrida, estava a loba esperando por ele. Quando dela se aproximou, Uma Orelha de repente se tornou cauteloso. Diminuiu a corrida para um andar alerta e afetado, depois parou. Considerou-a com cuidado e dúvidas, mas com desejo. Ela pareceu lhe sorrir, mostrando-lhe os dentes de um modo mais insinuante que ameaçador. Deu alguns passos na sua direção, de um jeito meio travesso, e depois parou. Uma Orelha chegou mais perto, ainda alerta e cauteloso, o rabo e as orelhas em pé, a cabeça bem erguida.
Tentou farejá-la roçando o focinho no dela, mas a loba recuou travessa e arisca. Todo avanço da sua parte era acompanhado por um recuo correspondente da parte do estranho animal. Passo a passo, ela o estava atraindo para longe da segurança de seus companheiros humanos. Em certo momento, como se um aviso tivesse passado vagamente pela sua mente, ele virou a cabeça para trás e olhou o trenó derrubado, seus companheiros da matilha e os dois homens que o estavam chamando.
Mas qualquer que fosse a ideia que começava a se formar na sua mente, ela foi logo dissipada pela loba, que avançou sobre Uma Orelha, roçou o focinho no dele por um breve instante, e depois recomeçou o seu recuo arisco diante de seus renovados avanços.
Enquanto isso, Bill tinha pensado no rifle. Mas ele estava socado embaixo do trenó emborcado e, quando Henry o ajudou a endireitar a carga, Uma Orelha e a loba estavam demasiado juntos e a distância era muito grande para arriscar um tiro.
Tarde demais, Uma Orelha aprendeu o seu erro. Antes que percebessem a causa, os dois homens o viram virar-se e começar a correr de volta na direção do trenó. Então, aproximando-se da trilha em ângulos retos e cortando a sua retirada, viram uma dúzia de lobos, magros e cinzentos, pulando pela neve. No mesmo instante, o jeito arisco e travesso da loba desapareceu. Com um rosnado, ela pulou em cima de Uma Orelha. Ele a jogou para longe com o ombro e, com a retirada cortada e ainda decidido a voltar para perto do trenó, alterou o seu curso numa tentativa de circular em torno para chegar a seu destino. Mais lobos estavam aparecendo a todo momento e juntando-se à caçada. A loba estava um pulo atrás de Uma Orelha e mantinha-se firme.
Ei, aonde você vai? – perguntou Henry de repente, pondo a mão no braço do companheiro.
Bill afastou-a com um safanão.
Não vou aguentar uma coisa dessas – disse. – Eles não vão pegar mais nenhum de nossos cachorros, se eu puder impedir.
Rifle na mão, mergulhou na vegetação rasteira que orlava a beira da trilha. A sua intenção era bastante clara. Tomando o trenó como o centro do círculo que Uma Orelha estava percorrendo, Bill planejou penetrar nesse círculo num ponto adiante da perseguição. Com seu rifle, em plena luz do dia, talvez fosse assustar os lobos e salvar o cachorro.
Ei, Bill! – Henry gritou para ele. – Tome cuidado! Não se arrisque!
Henry sentou-se no trenó e ficou observando. Não havia nada mais para fazer. Bill já tinha desaparecido da vista. Mas de vez em quando, aparecendo e desaparecendo entre a vegetação rasteira e os grupos espalhados de abetos, podia-se ver Uma Orelha. Henry julgou o seu caso perdido. O cachorro tinha plena consciência do perigo, mas Bill estava correndo no círculo mais externo, enquanto o bando de lo bos corria no círculo mais interno e mais curto. Era inútil pensar que Uma Orelha conseguiria se distanciar de seus perseguidores a ponto de ser capaz de cortar através do cír culo à frente deles e voltar para perto do trenó.
As linhas diferentes estavam rapidamente chegando a um ponto comum. Em algum lugar na neve, oculto à sua vista pelas árvores e moitas, Henry sabia que o bando de lobos, Uma Orelha e Bill estavam se reunindo. Bem rápido, muito mais rápido do que tinha esperado, tudo aconteceu. Ele escutou um tiro, depois dois tiros em rápida sucessão, e ficou sabendo que a munição de Bill se fora. Depois ouviu um grande alarido de rosnados e ganidos. Reconheceu o grito de dor e terror de Uma Orelha, e escutou um uivo que indicava um lobo atingido. E foi só. Os rosnados cessaram. Os ganidos esmoreceram. Fez-se novamente silêncio sobre a terra solitária.
Ele ficou um bom tempo sentado no trenó. Não havia necessidade de ir ver o que tinha acontecido. Ele sabia de tudo como se tivesse ocorrido diante de seus olhos. Em certo momento, levantou-se sobressaltado e pegou apressado o machado que estava embaixo das amarras. Mas por um tempo mais longo ficou sentado meditando, os dois cachorros restantes agachados e tremendo a seus pés.
Por fim levantou-se cansado, como se toda a elasticidade tivesse abandonado o seu corpo, e começou a amarrar os cachorros ao trenó. Passou uma corda pelo ombro, um tirante humano, e puxou o trenó com os cachorros. Não foi muito longe. Aos primeiros indícios de escuridão, apressou-se a acampar, e cuidou para ter um suprimento generoso de lenha. Alimentou os cachorros, cozinhou, comeu a sua ceia e arrumou a cama perto do fogo.
Mas ele não estava destinado a usufruir dessa cama. Antes que seus olhos se fechassem, os lobos tinham se aproximado além dos limites de segurança. Já não era necessário um esforço da visão para vê-los. Estavam todos em torno dele e do fogo, num círculo estreito, e ele podia vê-los claramente à luz do fogo, deitados, sentados, arrastando-se para a frente sobre as barrigas, ou andando furtivamente de um lado para o outro. Até dormiam. Aqui e ali ele podia ver um deles enroscado sobre a neve como um cachorro, tirando a soneca que a ele era negada.
Conservou o fogo ardendo forte, pois sabia que apenas as chamas se interpunham entre a carne de seu corpo e as presas famintas. Os dois cachorros ficaram perto dele, um de cada lado, encostando-se ao seu corpo em busca de proteção, choramingando e às vezes rosnando desesperados quando um lobo se aproximava mais do que o habitual. Nesses momentos, quando os cachorros rosnavam, todo o círculo se agitava, os lobos erguendo-se e tentando pressionar um avanço, um coro de rosnados e ganidos ansiosos elevando-se ao seu redor. Depois o círculo voltava a se deitar, e aqui e ali um lobo reiniciava a sua soneca interrompida.
Mas esse círculo tinha uma tendência contínua a se fechar sobre ele. Pouco a pouco, alguns centímetros de cada vez, um lobo avançando de barriga aqui, outro lobo avançando de barriga ali, o círculo se estreitava até os brutos estarem quase à distância de um pulo. Então ele agarrava tições do fogo e lançava-os no bando. O resultado era sempre um recuo apressado, acompanhado por ganidos zangados e rosnados assustados, quando um tição bem mirado atingia e chamuscava um animal demasiado ousado.
A manhã encontrou o homem abatido e cansado, os olhos arregalados pela falta de sono. Cozinhou o café da manhã na escuridão, e às nove horas, quando, com a chegada da luz do dia, o bando de lobos se afastou, começou a tarefa que tinha planejado durante as longas horas da noite. Cortou algumas árvores novas e transformou-as nas barras transversais de uma plataforma, amarrando-as bem alto nos troncos de árvores bastante firmes. Usando a amarra do trenó como uma corda de içar e com a ajuda dos cachorros, suspendeu o caixão até o topo da plataforma.
Eles pegaram Bill, e eles podem me pegar, mas eles certamente nunca vão pegar você, meu jovem – disse, dirigindo-se ao cadáver no seu sepulcro entre as árvores.
Depois tomou a trilha, o trenó mais leve saltando ao longo do caminho atrás dos cachorros dispostos a seguir adiante, pois eles também sabiam que só haveria segurança na chegada ao Forte McGurry. Os lobos estavam agora mais afoitos na sua perseguição, andando sossegados atrás e vagueando ao longo de cada lado, as línguas vermelhas de fora, os lados magros mostrando as costelas ondulantes a cada movimento. Estavam muito magros, meros sacos de pele esticados sobre a estrutura óssea, com uns cordões no lugar de músculos – tão magros que Henry chegou a se maravilhar que ainda se mantivessem sobre as patas e não caíssem logo na neve.
Ele não se atreveu a viajar até o escurecer. Ao meio-dia, não só o sol aqueceu o horizonte sul, mas até introduziu a sua borda, pálida e dourada, acima da linha do horizonte. Ele o recebeu como um sinal. Os dias estavam se tornando mais longos. O sol retornava à terra. Mas, assim que a alegria da sua luz desapareceu, ele acampou. Ainda havia várias horas de luz cinzenta e crepúsculo sombrio, e ele as utilizou cortando um enorme estoque de lenha.
Com a noite veio o horror. Não só os lobos famintos estavam se tornando mais ousados, como a falta de sono estava se fazendo sentir em Henry. Ele cochilou a despeito de si mesmo, agachado perto do fogo, os cobertores ao redor dos ombros, o machado entre os joelhos, e de cada lado um cachorro pressionando contra o seu corpo. Despertou certo momento e viu diante dele, a não menos de quatro metros, um grande lobo cinzento, um dos maiores do bando. E mesmo quando olhou, o animal deliberadamente se espichou como um cachorro preguiçoso, bocejando bem na sua face e fitando-o com um olhar possessivo, como se, na verdade, ele fosse apenas uma refeição adiada que logo seria devorada.
Essa certeza era demonstrada por todo o bando. Conseguiu contar bem uns vinte, fitando-o famintos ou dormindo calmamente na neve. Eles lhe lembravam crianças reunidas em torno de uma mesa posta, esperando a permissão para começar a comer. E ele era a comida que seria degustada! Ele se perguntava como e quando a refeição começaria.
Enquanto empilhava a lenha no fogo, descobriu-se apreciando o seu próprio corpo, algo que nunca sentira antes. Observou os músculos em movimento e interessou-se pelo mecanismo engenhoso dos dedos. À luz do fogo, dobrou os dedos lenta e repetidamente, ora um de cada vez, ora todos juntos, abrindo-os bem ou fazendo rápidos movimentos de agarrar alguma coisa. Estudou a formação das unhas e cutucou as pontas dos dedos, ora com força, ora suavemente, avaliando nesse meio tempo as sensações nervosas produzidas. O corpo o fascinava, e de repente ele apreciou muito essa sua carne sutil que funcionava de maneira tão bela, regular e delicada. Depois lançou um olhar de medo para o círculo de lobos à espera ao seu redor, e com um golpe deu-se conta de que esse seu corpo maravilhoso, essa carne viva, não era mais do que um pouco de alimento, uma caça dos animais vorazes, a ser despedaçado e retalhado pelas suas presas famintas, a lhes servir de sustento assim como o alce e o coelho tinham tantas vezes lhe servido de sustento.
Saiu de um cochilo que era meio pesadelo para ver a loba avermelhada à sua frente. Ela não estava a mais de dois metros de distância, sentada na neve e olhando-o com desejo. Os dois cachorros choramingavam e rosnavam ao redor de seus pés, mas ela não fazia caso deles. Estava olhando para o homem, e por algum tempo ele lhe devolveu o olhar. Não havia nada de ameaçador na loba. Ela o olhava apenas com um grande desejo, mas ele sabia ser o desejo de uma fome igualmente grande. Ele era a comida, e a visão do homem excitava nela as sensações gustativas. A boca aberta, babando saliva, ela lambia os beiços com o prazer da antecipação.
Um espasmo de medo lhe percorreu o corpo. Estendeu o braço depressa para pegar um tição e atirá-lo no animal. Mas ainda quando estendia a mão e antes que seus dedos se fechassem sobre o projétil, ela deu um pulo para trás em busca de segurança, e ele viu que ela estava acostumada a que lhe atirassem coisas. Ela rosnara ao pular, descobrindo até a raiz os caninos brancos, todo o desejo ansioso dissipado e substituído por uma malignidade carnívora que o fez estremecer. Lançou um olhar para a mão que segurava o tição, observando a delicadeza engenhosa dos dedos que o agarravam, como eles se ajustavam a todas as irregularidades da superfície, enroscados por cima, por baixo e ao redor da madeira áspera, e um dedo mínimo, demasiado perto da porção em brasa do tição, contorcendo-se sensível e automaticamente para se afastar do calor doloroso e agarrar a madeira num ponto mais frio; e, ao mesmo tempo, parecia ter diante de si a visão desses mesmos dedos sensíveis e delicados sendo esmagados e rasgados pelas presas brancas da loba. Nunca ele gostara tanto desse seu corpo como agora, quando a sua posse era tão precária.
Durante toda a noite, com tições em brasa, ele lutou para manter o bando faminto a distância. Quando cochilava involuntariamente, o choro e os rosnados dos cachorros o despertavam. Chegou a manhã, mas pela primeira vez a luz do dia não dispersou os lobos. O homem esperou em vão que fossem embora. Eles permaneciam em círculo ao redor dele e do seu fogo, demonstrando uma arrogância de domínio que abalou a sua coragem nascida com a luz da manhã.
Fez uma tentativa desesperada de avançar na trilha. Mas, no momento em que deixou a proteção do fogo, o lobo mais ousado saltou para cima dele, só que seu pulo foi curto. Ele se salvou saltando para trás, as mandíbulas do animal fechando-se a uns escassos quinze centímetros da sua coxa. O resto do bando estava agora de pé e avolumando-se ao seu redor, sendo necessário atirar tições à direita e à esquerda para obrigá-los a observar uma distância respeitosa.
Mesmo à luz do dia não se atreveu a abandonar o fogo para cortar madeira nova. A seis metros de distância erguia-se um imenso abeto morto. Ele passou a metade do dia estendendo o fogo do acampamento para perto da árvore, tendo sempre à mão uma meia dúzia de varas em brasa para atirar nos inimigos. Uma vez junto à árvore, estudou a floresta ao redor para derrubar a árvore na direção de mais lenha.
A noite foi uma repetição da noite anterior, exceto que a necessidade de sono estava se tornando esmagadora. O rosnado dos cães perdia a sua eficácia. Além disso, eles rosnavam o tempo todo, e seus sentidos entorpecidos e letárgicos já não notavam a mudança de altura e intensidade. Despertou com um sobressalto. A loba estava a menos de um metro do lugar onde ele se encontrava. Mecanicamente, a uma distância curta, e sem soltá-lo, Henry enfiou um tição bem dentro da boca aberta e rosnadora do animal. A loba afastou-se com um pulo, gritando de dor, e, deliciando-se com o cheiro de carne e pelos queimados, ele a observou sacudir a cabeça e rosnar com raiva a uns seis metros de distância.
Mas desta vez, antes que voltasse a cochilar, ele amarrou um nó de pinho em chamas na mão direita. Se os olhos se fechavam apenas por alguns minutos, a flama queimando a sua mão o acordava. Cumpriu esse programa por várias horas. Toda vez que era assim despertado, afastava os lobos com tições voadores, reabastecia o fogo e rearranjava o nó de pinho na mão. Tudo funcionou bem, mas numa das vezes não amarrou bem o nó de pinho. Quando os olhos se fecharam, ele caiu da sua mão. Sonhou. Tinha a impressão de estar no Forte McGurry. Estava quente e confortável, e ele jogava cartas com o Feitor. Além disso, parecia-lhe que o forte estava sitiado por lobos. Estavam uivando nos portões, e às vezes ele e o Feitor paravam o jogo para escutar e rir dos esforços vãos dos lobos para entrar. E nesse momento, tão estranho era o sonho, houve um estrondo. A porta se abriu com estrépito. Ele podia ver os lobos invadindo a grande sala do forte. Pulavam bem na sua direção e do Feitor. Com a abertura estrepitosa da porta, o barulho de seus uivos aumentara tremendamente. Esses uivos agora o incomodavam. O sonho estava se mesclando em alguma outra coisa... ele não sabia bem o que, mas no meio de tudo, perseguindo-o, persistiam os uivos.
E então ele despertou para descobrir que os uivos eram reais. Havia um grande alarido de rosnados e gritos. Os lobos o atacavam. Estavam todos ao redor e em cima dele. Os dentes de um lobo tinham se fechado sobre seu braço. Instintivamente ele pulou para dentro do fogo e, enquanto pulava, sentiu o golpe agudo de uns dentes que rasgavam a carne da sua perna. Começou então uma luta do fogo. As luvas fortes lhe protegiam temporariamente as mãos, e ele arremessava carvões em brasa em todas as direções, até o fogo do acampamento adquirir a aparência de um vulcão.
Mas aquilo não podia durar muito tempo. Seu rosto estava se empolando com o calor, as sobrancelhas e os cílios chamuscados, e o calor tornava-se insuportável para seus pés. Com um tição flamejante em cada mão, pulou para a beira do fogo. Os lobos tinham sido forçados a recuar. Por todo lado, nos lugares onde os pedaços de carvão em brasa tinham caído, a neve chiava, e a todo momento um lobo que recuava, com um pulo, um bufo e um rosnado selvagem, anunciava que pisara num desses carvões em brasa.
Arremessando os seus tições nos inimigos mais próximos, o homem enfiou as luvas ardentes na neve e bateu os pés no chão para resfriá-los. Os dois cachorros tinham desaparecido, e ele sabia muito bem que tinham servido como um dos pratos na refeição prolongada que havia começado dias antes com Gordo, sendo muito provável que ele próprio fosse o último prato nos próximos dias.
Vocês ainda não me pegaram! – gritou sacudindo selvagemente o punho para os animais famintos. E ao som da sua voz todo o círculo se agitou, houve um rosnado geral, e a loba passou perto dele pela neve e observou-o com uma atenção faminta.
Ele se pôs a trabalhar para realizar uma nova ideia que lhe ocorrera. Estendeu o fogo até formar um grande círculo. Dentro desse círculo ele se agachou, o seu equipamento de dormir embaixo do corpo para protegê-lo da neve derretida. Quando desapareceu dentro de seu abrigo de chamas, todo o bando veio curioso para a beira do fogo procurando ver o que tinha lhe acontecido. Até então fora-lhes negado o acesso ao fogo, e eles agora se acomodavam num círculo mais próximo, como tantos cachorros, piscando, bocejando e espichando os corpos magros no calor a que não estavam acostumados. Então a loba se sentou, apontou o focinho para uma estrela e começou a uivar. Um a um, os lobos a imitaram, até que todo o bando, apoiado nos quadris, com os focinhos apontados para o céu, emitiu o seu uivo de fome.
Veio a aurora com a luz do dia. O fogo estava fraco. O combustível acabara, e havia necessidade de pegar mais lenha. O homem tentou sair do seu círculo de chamas, mas os lobos saltaram ao seu encontro. Tições flamejantes os forçaram a pular para o lado, mas eles já não pulavam para trás. Em vão lutou para forçá-los a recuar. Quando desistiu e voltou tropeçando para dentro do seu círculo, um lobo saltou sobre ele, errou o pulo e aterrissou com todas as quatro patas nos carvões. Gritou de terror, rosnando ao mesmo tempo, e afastou-se com dificuldade para resfriar as patas na neve.
O homem agachou-se sobre os cobertores. O corpo inclinado para a frente a partir dos quadris. Os ombros, relaxa dos e curvados, e a cabeça sobre os joelhos anunciavam que desistira da luta. De vez em quando levantava a cabeça para observar o fogo apagando-se. O círculo de flamas e carvões em brasa estava se dividindo em segmentos com aberturas no meio. Essas aberturas aumentavam de tamanho, os segmentos de fogo diminuíam.
Acho que vocês podem vir me pegar a qualquer hora – resmungou. – De qualquer modo, eu vou dormir.
Em certo momento acordou, e numa abertura no círculo, bem à sua frente, viu a loba fitando-o.
Mais uma vez acordou, um pouco mais tarde, embora lhe parecessem horas. Ocorrera uma mudança misteriosa – uma mudança tão misteriosa que ele despertou mais um pouco com o choque. Algo tinha acontecido. A princípio não conseguiu entender. Depois descobriu. Os lobos tinham ido embora. Restava apenas a neve pisoteada para mostrar como tinham chegado perto. O sono aumentava e voltava a dominá-lo, a cabeça afundando sobre os joelhos, quando ele despertou de repente com um sobressalto.
Ouviam-se gritos de homens, a agitação de trenós, o ranger de arreios, e o choro ansioso de cachorros fatigados. Quatro trenós avançaram do leito do rio para o acampamento no centro do fogo quase extinto. Os homens o sacudiam e cutucavam para que despertasse. Ele os fitou como um bêbado e engrolou uma fala estranha e sonolenta:
Loba vermelha... Metia-se no meio dos cachorros na hora da ração... Primeiro ela comeu a ração dos cachorros... Depois ela comeu os cachorros... E depois disso ela comeu Bill...
Onde está Lorde Alfred? – um dos homens gritou no seu ouvido, sacudindo-o com força.
Ele sacudiu a cabeça lentamente.
Não, ela não o comeu... Está empoleirado numa árvore no último acampamento.
Morto? – gritou o homem.
E numa caixa – respondeu Henry. Com um safanão petulante, ele afastou o ombro das garras do seu inquiridor. – Ei, deixem-me em paz... Estou morto de cansaço... Boa noite, todo mundo.
Os olhos tremeram e se fecharam. O queixo caiu sobre o peito. E, ainda quando o deitavam sobre os cobertores, os seus roncos já subiam no ar gelado.
Mas havia outro som. Longe e fraco, na distância remota, soava o grito do bando de lobos famintos, tomando a trilha de outra presa diferente do homem que tinham acabado de perder.
Jack London, in Caninos Brancos

Nenhum comentário:

Postar um comentário