domingo, 9 de fevereiro de 2020

Meu avô



Minha mãe adoeceu. Engordou muito na barriga e nos pés, mas as outras partes do corpo ficaram magras. No pescoço o gogó crescia, as bossas da testa avultavam, o vestido subia na frente, cada vez mais se levantava, exibindo as pernas finas como cambitos.
Foi passar meses na fazenda do pai. Antes de curar-se, esteve uns dias de cama, alimentado-se com pirão escaldado e capões que vinham do galinheiro construído a um canto do jardim. E bebia cachimbo, mistura de aguardente e mel de abelha dos cortiços pendurados no beirai do alpendre. Em obediência à medicina bruta do sertão, adicionavam cebola à beberagem, o que a tornava repugnante. Afinal minha mãe largou o choco. Estava pálida, sem ventre, a saia arrastando, fraca e bamba. E amamentava uma criança chorona.
Tinham-me levado ao campo, na garupa do cavalo de meu tio Serapião. Os dentes de um cisca-dor me haviam furado o pé na véspera. O chouto do animal me sacudia, o rabicho e o arção da sela me incomodavam, a ferida se inflamava, doía. E Serapião me assustava narrando histórias de almas, de lugares mal-assombrados.
Sarapo, não conte isso. Cale a boca.
Serapião insistira, eu saltara nos seixos miúdos do caminho, magoara as estrepadas. Na fazenda, mal podia andar, capengava dos currais ao chiqueiro das cabras, aos juazeiros do fim do pátio, firmando-me no calcanhar.
Meus tios pequenos se distanciavam, corriam na catinga, abandonavam-me ao capricho de meu avô, que me jungiu à prosa do Barão de Macaúbas e ao catecismo, trazidos na carona de Sarapo. Mas o velho dava às letras nomes desconhecidos, lia de forma esquisita — e eu lamentava a ausência de D. Maria, a excelente mestra que me deixava errar, murmurava conselhos com doçura, como se pedisse desculpa. Meu avô era exigente. Detinha-se numa desgraçada sílaba, forçava-me a repeti-la, e isto me perturbava. As longas barbas brancas varriam-me a cara assustada; os olhos azuis, repletos de ameaças, feriam-me; a voz engrossava, rolava, entrava-me nos ouvidos como um trovão fanhoso e encatarroado. Os meus conhecimentos debandavam; as linhas misturavam-se, fugiam; no papel e dentro de mim grandes manchas alargavam-se. Nessa deplorável situação, eu embrulhava estupidamente a leitura, balbuciava respostas insensatas. O grito ribombava, enchia-me de pavor, transformava-se pouco a pouco numa gargalhada imensa que atraía gente e me encabulava. A alegria ruidosa parecia-me intempestiva; as minhas tolices não tinham graça.
De repente o medo findava, uma bondade singular me envolvia, áspera, adstringente, manifesta na fala cavernosa e autoritária, no riso grosso e incômodo. Bondade espessa, com cheiro de curtume, de angico.
Perneiras, gibões, peitorais, enormes chapéus de barbicachos, pendiam de tornos cravados na taipa negra. Rolos de sola arrumavam-se nos cantos, cordas flexíveis em sebo. Enfileiravam-se num cavalete selas de campo de suadouros úmidos e escuros. Sapatões cabeludos em toda a parte, mantas de peles, correias, cabrestos, chicotes, látegos. Isso animalizava um pouco as pessoas.
Em dias de matança trepava-me na porteira do curral, via meu avô derrubar a machado, sangrar e esfolar uma novilha, aprumar-se no chão vermelho, as mãos vermelhas. Comparei-o mais tarde aos judeus antigos, Abraão, Isaac, Esaú, religiosos e carnívoros.
A religião de meu avô era segura e familiar. Revelava-se diante do oratório erguido na sala, sobre a mesa coberta de pano vistoso. Na gaveta desse altar guardavam-se macetes, chifres de veado, sovelas, cera, pregos, torqueses, pedaços de couro em que se pulverizava fumo torrado. Em cima, na luz, entre fitas e flores secas, litografias piedosas, figurinhas santas esculpidas por imaginários rudes. O velho se ajoelhava na esteira, persignava-se, batia no peito, ouvia a ladainha que Maria Melo, sacerdotisa e mulher do vaqueiro, cantava numa espécie de latim. Ali agachado e contrito, perto da negra Vitória e de Maria Moleca, voluntariamente escravas porque não tinham em que empregar a liberdade, reduzia-se muito, não se diferençava quase de Ciríaco, pastor de cabras. Finda a cerimônia, recuperava a grandeza e o comando:
Ó negra!
Maria Moleca trazia a gamela de água, vinha lavar-lhe os pés, de cócoras, enxugá-los na toalha encardida. Essa posição era natural. De cócoras preparava a comida, temperava a panela, atiçava o fogo na trempe de pedras. De cócoras varria a casa com um molho de vassourinha cortado no fundo do terreiro, onde o muçambê e o velame desbotavam. Dormia de cócoras, arrimada à parede, sob as cortinas de pucumã que desciam do teto.
Se a gamela tardava, minha avó intervinha ranzinza:
Vai lavar os pés de teu senhor, negra.
Dirigia-se a uma negra indeterminada, pois temia o gênio de Vitória, que arrastava no serviço o quarto desmantelado, andava cambaleando, fazia trabalhos duros de homem, zangava-se facilmente e, endireitando o busto franzino de virgem murcha, uma coragem feroz a sacudi-la, despia a subserviência hereditária, roncava:
Cativeiro já se acabou, dona. Se eu morrer na cozinha de Seu Pedro Ferro, não me salvo.
Mas envelhecia, encarquilhava-se na cozinha. Às vezes a coxa se desarticulava — e a infeliz se torcia gemendo, os bugalhos doloridos fixos nas crianças, que mangavam das caretas dela. Os amos se condoíam, levavam para a cama de varas a pequena máquina desarranjada, tentavam desenferrujá-la e azeitá-la. Os ossos se juntavam, levantavam-se, iam coxeando consertar as cercas do jardim, regar os craveiros e a losna, encher no rio o pote, que voltava penso na rodilha, ameaçando cair, um penacho de folhas verdes no gargalo.
Essa ruína vacilante e obstinada era um refúgio: defendia-nos dos perigos caseiros, enrolava-nos na saia de chita, protegia-nos as orelhas e os cabelos com ternura resmungona, esquisita expressão de maternidade gora. Estávamos em segurança perto dela.
Se eu morrer na cozinha de Seu Pedro Ferro, não me salvo.
Morreu de supetão, vomitando sangue, debaixo do jirau onde se acumulavam frigideiras, mochilas de sal, réstias de alho. E com certeza se salvou, porque endureceu na virgindade e conservou o espírito limpo. Fez muita falta, embora, já não podendo ser vendida e com uma banda desconchavada, representasse apenas valor estimativo.
Antes da abolição alguns pretos haviam abandonado a casa, sido presos pelo capitão-de-mato, fugido novamente. Meu avô os deixara em paz, julgando-os malucos e ingratos. Como se arranjariam? Ali estavam quietos. O serviço exigia pouco esforço, as vaquejadas eram torneios, o proprietário passava dias no banco do copiar ou escanchado na rede, fungando tabaco, um lenço no ombro, de alpercatas e roupa de algodão cru, descaroçado na bolandeira próxima, tecido no tear doméstico.
A catinga imensa não tinha dono, o gado pastava livremente nela, de ribeira a ribeira, aumentava, definhava, bichos de várias fazendas, reconhecíveis pelas marcas a fogo. De manhã as vacas leiteiras saíam, voltavam à tarde. O resto dos animais ficava longe, sumido na vegetação rala, de cardo e favela, que vestia a campina. A riqueza aparecia no inverno, sem vantagem sensível, desapareceria no verão, sem inconveniente. Na prosperidade, os hábitos da família não se modificavam, porque a ausência de saber limitava os desejos; se a penúria chegava, permaneciam todos calmos, recolhendo-se à boca da noite, rezando o terço.
Meu avô possuía bois em abundância, espalhados na capoeira, difíceis de juntar. Não os levava ao mercado. Esperava que o marchante viesse buscá-los.
Mandava então pegar alguns, mirava-os cuidadoso e determinava o peso: tantas arrobas e tantas libras. Nunca se enganava. Debatido pachorrentamente o negócio, afastados os compradores, sumia-se nas trevas do quarto, cochichava números à mulher, ia esconder um maço de notas em arca de boas dobradiças e boa fechadura. No tempo da monarquia o tesouro certamente era invisível, constituído por moedas amarelas. Depois, variável e de papel, foi necessário às vezes desentranhá-lo, exibi-lo na rua a pessoas idôneas, antes que ele se convertesse num montão de símbolos desvalorizados.
Nos meses de seca, os raros habitantes daqueles cafundós mexiam-se cavando bebedouros na areia, cortando em cestos mandacaru para o gado, que se finava no carrapato. Dobravam-se as redes. As mãos sangravam no trabalho rijo, curavam-se as rachaduras dos pés com sebo derretido na brasa. Nenhuma nuvem toldava os dias compridos; voos sinistros de arribações riscavam o céu azul; os ramos das árvores eram gravetos escuros; as folhas tostavam-se; no chão branco e liso da vazante abriam-se largas fendas.
Inúteis os cuidados com os bichos moribundos, porque Deus os condenava e contra as resoluções de Deus ninguém pode. Entretanto meu avô andava para cima e para baixo, furando-se nos espinhos, ordenando, fanhoso e lento, medidas vãs. Sossegaria quando os estragos, completos, abrandassem a cólera divina. Sentar-se-ia de novo na rede, sem credores, isento de culpa. Inquietações e fadigas eram penitência que ele mesmo se impunha. O seu tribunal, antigo e particular, estava longe do de Padre João Inácio. Purgava no extenso verão pecados ligeiros, o inverno ia encontrá-lo forte e altivo. A certeza de proceder bem dava-lhe aquela serenidade perfeita. Cumpria deveres simples, não poderia viver de outra maneira. Tratar do gado, vê-lo multiplicar-se ou diminuir; gerar filhos, criá-los, proporcionar-lhes batismo e casamento, não se afastar muito deles, ampará-los na pobreza e na doença, pôr-lhes a vela na mão, amortalhá-los, conduzi-los ao cemitério e à eternidade. Nenhum pensamento estranho o perturbava, nenhum escrito ia modificar o velho Deus agreste e pastoril.
Os livros existentes na fazenda eram as minhas cartonagens insossas, que o patriarca, nessas férias, tentou esclarecer-me no vozeirão temível findo em riso grosso. Não conseguiu melhorar-me o intelecto. A repreensão fingida e a alegria rouca me atordoavam. Desviei-me das carícias rústicas, das barbas alvas que me arranhavam a cara.
A ferida do pé cicatrizou. Fui ocultar-me entre as catingueiras que ensombravam as margens da lagoa vazia. Meninos andavam por ali, brincando com ossos e seixos. Serapião me ensinava complicações da História do Brasil, errando bastante. E quando não havia testemunhas, uma rapariguinha silenciosa me examinava pacientemente o corpo. Levantava-me a camisa de chita, a roupa que eu usava no campo, utilizava os dedos e os olhos, num estudo profundo.
Graciliano Ramos, in Infância

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