sexta-feira, 7 de fevereiro de 2020

Domingo na estrada

Do avião saltamos para a jardineira, a caminho da cidade. A princípio, só o trajeto aborrecido, na pressa de chegar. Que fazer desses ermos lobrigados de passagem, que não sensibilizam a vista, e daqui a pouco esqueceremos na contemplação de outras formas naturais menos secas? Há uma lagoa na região, e não se deixa ver. De repente começamos a sentir que essa terra humilde vai nos interessando, em seu desconforto. O mato dos barrancos perdeu o verde nativo; tudo ficou vermelho, amarelo ou pardo, tocado de pó incansável. Como se chamam esses vegetais, só Riobaldo Tatarana sabe, e hei de consultá-lo na volta. A paisagem toca pelo que não tem, pela pobreza calma. Não há imprevisto. Nos pastos de grama pouca, só as grandes bossas dos cupins se expõem, bichos imobilizados. E à paz do campo mineiro se ajunta, aprofundando-a, a paz do domingo mineiro.
Nunca será tão domingo como aqui, e domingos e domingas de eternidade se concentram em vigorosa dominicalização. Não acontecer nada, que beatitude! Deixar o mato crescer — mas o próprio mato foge à obrigação, e goza o domingo. Lá estão o touro zebu e seu harém de nobres e modestas vacas — porque o zebu alia à majestade indiana a placidez das Minas, e boi nenhum se fez tão mineiro quanto esse, e bicho nenhum é tão mineiro quanto o boi, em seu calado conhecimento da vida, sua participação no trabalho. O rebanho amontoa-se em círculo, algumas reses em pé, outras deitadas, chifres cumprimentando-se sem ruído. Parece um só boi espalhado, maginando. Com o pincel do rabo, executa o milenar movimento de repelir a mosca, se é que não o pratica pelo prazer de abanar-se. Mas há bois esparsos, bois solitários, que se postam junto a árvores, aparentemente recolhidos; ou fitam o carro que levanta poeira sobre a poeira habitual, e ruminam não sei que novelas de boi.
A terra é um universal domingo, as estampas não se destacam, desaparecem na série. Figura humana é que custa a aparecer. Só o garotinho que brincava no barro, entre galinhas, e o braço de homem, no fundo escuro da casa desbeiçada, erguendo a garrafa.
Gente começa afinal a surgir, desembocando da ruazinha de arraial, em caminhões alegres, com inscrições: “Deus e pé na tábua”, “Chiquinha casa comigo”, e um ar de festa que é também domingueiro, festa nas roupas claras, nos lenços coloridos das cabeças; no riso largo, nos gritos. Rapazes de calção, viajando de pé, aos berros. Vão disputar a grande partida em um dos dez lugares da redondeza, onde o futebol resolveu o problema da felicidade repartindo-a com todos, do meritíssimo doutor juiz de direito aos presos da cadeia, que assistem atrás de grades ou por informação, e tomam conhecimento do gol do seu clube pelo ruído particular dos foguetes. As moças vão também, salve, ó moças! Já não têm nenhum ar especificamente montanhês, o cabelo aparado em pontas irregulares, a calça comprida e justa internacionalizaram há muito o tipo feminino, as garotas não são mais da França, da Turquia ou do Ceará, são todas de capa de revista, e mesmo assim continuam sendo a bem-aventurança e o licor da Terra, e passam chispando no caminhão Fenemê, e desacatam o policial do posto da divisa, e vão entoando o sagrado nome do clube e a vitória certa.
Há também o bêbedo da estrada. Não é patético como o dos poetas neorromânticos que exploram o gênero, é simplesmente bêbedo, sem pretensões, também ele universal na pureza de sua irresponsabilidade. Está a mil sonhos do futebol, mas a parada do caminhão para tomar água lhe comunica a chama do esporte, e ei-lo que engrola a exortação enérgica:
Vocês me tragam a vitó… a vitóooria! Eu fico esperando a vit…
Todos aplaudem freneticamente. Mas as pernas arriam, e ele fica ali, desmanchado, à sombra da goiabeira, dormindo na manhã de Minas Gerais.
Carlos Drummond de Andrade, in A bolsa & a vida

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