quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020

Depois da corrida

Os carros vieram em disparada rumo a Dublin, correndo juntos como balas na pista da Naas Road. Na crista da montanha em Inchicore os espectadores haviam se reunido em grupos para ver os carros acelerando rumo à linha de chegada, e por aquele canal de pobreza e inércia o Continente desfilava a riqueza e a indústria. De vez em quando os grupos de pessoas animavam a grata plateia de oprimidos. Essa simpatia, no entanto, era para os carros azuis – os carros dos amigos franceses.
Os franceses, além do mais, tinham conseguido uma vitória técnica. A equipe havia feito uma corrida consistente, ficado em segundo e em terceiro lugar, e haviam noticiado que o piloto do carro alemão vencedor era belga. Assim, os carros azuis receberam uma dupla salva de boas-vindas quando chegaram à crista da montanha, e cada grito de boas-vindas era recebido com sorrisos e acenos de cabeça pelos ocupantes do carro. Em um desses carros construídos com tanto esmero havia um grupo de quatro jovens cujo ânimo parecia estar muito acima do simples galicismo de sucesso: na verdade, esses quatro jovens eram quase hilários. Eram Charles Ségouin, o proprietário do carro; André Rivière, um jovem eletricista nascido no Canadá; um enorme húngaro chamado Villona e um jovem muito elegante chamado Doyle. Ségouin estava de bom humor porque tinha recebido algumas encomendas adiantadas (estava prestes a abrir um salão de automóveis em Paris) e Rivière estava de bom humor porque seria nomeado gerente do estabelecimento; esses dois jovens (que eram primos) também estavam de bom humor devido ao sucesso dos carros franceses. Villona estava de bom humor porque tinha comido um almoço muito agradável; e além disso era um otimista nato. O quarto integrante do grupo, no entanto, parecia empolgado demais para sentir-se genuinamente feliz.
Tinha cerca de 26 anos de idade, um bigode marrom-claro macio e olhos cinzentos de aspecto inocente. O pai, que havia começado a vida como Nacionalista, tinha mudado de ideia muito tempo atrás. Ganhou dinheiro como açougueiro em Kingstown e depois de abrir lojas em Dublin e nos subúrbios multiplicou esse dinheiro muitas e muitas vezes. Além do mais, tinha sido afortunado o bastante para garantir alguns contratos com a polícia e no fim acabou rico o suficiente para figurar nos jornais de Dublin como um príncipe mercante. Tinha mandado o filho à Inglaterra para que fosse educado em uma grande universidade católica e depois mandou-o à Universidade de Dublin para estudar Direito. Jimmy não levou os estudos muito a sério e andou pelo mau caminho durante algum tempo. Tinha dinheiro e era popular; e dividia o tempo de maneira um tanto curiosa entre círculos musicais e automobilísticos. Depois foi passar um semestre em Cambridge para viver a vida. O pai, bastante crítico, mas no fundo orgulhoso dos excessos do filho, pagou as contas e trouxe-o para casa. Foi em Cambridge que conheceu Ségouin. Os dois eram pouco mais do que conhecidos mas Jimmy gostava muito da companhia de alguém que tinha visto tantos lugares e tinha fama de ser dono de alguns dos maiores hotéis da França. Valia a pena conhecer uma pessoa assim (o pai concordava) mesmo se não fosse a excelente companhia que era. Villona também era divertido – um pianista brilhante –, mas, infelizmente, muito pobre.
O carro seguia alegre com a carga de jovens hilários. Os dois primos estavam no banco da frente; Jimmy e o amigo húngaro estavam atrás. Sem dúvida Villona estava de excelente humor; cantarolou uma melodia em um baixo profundo por vários quilômetros da estrada. Os franceses atiravam risadas e palavras leves por cima dos ombros e muitas vezes Jimmy precisava se curvar à frente para captar uma frase espirituosa. Não era muito agradável, já que quase sempre era necessário fazer uma tentativa astuta de adivinhar o significado e gritar uma resposta adequada contra o forte vento. Como se não bastasse, a cantoria de Villona confundiria qualquer um – e o barulho do carro também.
Mover-se em alta velocidade através do espaço provoca alegria; a notoriedade também; a posse de dinheiro também. Essas eram três boas razões para o entusiasmo de Jimmy. Naquele dia tinha sido visto por muitos amigos na companhia daqueles três homens do Continente. No controle Ségouin havia-o apresentado a um dos competidores franceses e, em resposta ao confuso murmúrio elogioso, o rosto moreno do piloto havia revelado uma fileira de dentes brancos reluzentes. Depois dessa honraria foi bom retornar ao mundo profano dos espectadores em meio a cutucões e olhares de admiração. Quanto ao dinheiro – de fato controlava uma quantia significativa. Ségouin talvez não achasse a quantia tão significativa assim, mas Jimmy, que apesar de alguns erros temporários no fundo tinha instintos confiáveis, sabia muito bem a dificuldade que tinha sido juntá-la. Até então esse conhecimento tinha mantido os gastos dentro dos limites de uma extravagância ponderada, e se antes havia demonstrado consciência em relação ao esforço latente no dinheiro ao tratar dos simples caprichos de uma inteligência superior, quanto mais não teria agora, prestes a apostar a maior parte da fortuna! Para ele aquilo era coisa séria.
Claro, o investimento era bom e Ségouin tinha dado a entender que era graças a um favor da amizade que aquela mixaria de dinheiro irlandês seria incluída no capital da empresa. Jimmy respeitava a astúcia do pai nos negócios e nesse caso foi o pai quem primeiro sugeriu o investimento; havia dinheiro a ser feito no setor automobilístico, rios de dinheiro. Além do mais, Ségouin tinha um ar inconfundível de riqueza. Jimmy começou a traduzir o opulento carro em que estava sentado em dias de trabalho. Como andava macio! Com que estilo haviam corrido pelas estradas rurais! A jornada tinha tocado com magia no verdadeiro pulso da vida, e o valente mecanismo dos nervos humanos esforçava-se por responder ao trajeto sacolejante do célere animal azul.
Eles desceram a Dame Street. A rua estava agitada com os buzinaços dos motoristas e os gongos dos impacientes condutores dos bondes. Próximo ao Banco Ségouin parou e Jimmy e o amigo desceram. Um pequeno grupo de pessoas reuniu-se no caminho para prestar homenagem ao motor roncante. Naquela noite os quatro jantariam juntos no hotel de Ségouin e, nesse meio-tempo, Jimmy e o amigo, que estava ficando com ele, iriam para casa se arrumar. O carro se afastou devagar em direção à Grafton Street enquanto os dois jovens abriam caminho em meio aos observadores. Caminharam rumo ao norte com um estranho sentimento de decepção nesse exercício, enquanto a cidade suspendia os pálidos globos de luz na névoa do entardecer de verão.
Na casa de Jimmy esse jantar foi considerado uma ocasião e tanto. Um certo orgulho misturou-se à apreensão dos pais, e também uma certa ânsia por agir depressa e com naturalidade, pois os nomes das grandes cidades estrangeiras têm pelo menos essa virtude. Jimmy ficou com um ótimo aspecto depois de se arrumar e, quando estava no corredor dando uma última ajeitada nos laços da gravata, o pai deve ter sentido uma satisfação até mesmo comercial por ter assegurado ao filho qualidades muitas vezes incompráveis. Assim, o pai foi especialmente amistoso com Villona e expressou um respeito genuíno pelas conquistas estrangeiras; mas a sutileza do anfitrião deve ter se perdido para o húngaro, que estava começando a sentir um profundo desejo pelo jantar.
O jantar estava excelente, extraordinário. Ségouin, pensou Jimmy, tinha um gosto muito refinado. O grupo aumentou com a chegada de um jovem inglês chamado Routh que Jimmy tinha visto na companhia de Ségouin em Cambridge. Os jovens fizeram a refeição em um confortável recinto iluminado por lâmpadas elétricas. Travaram uma conversa volúvel e pouco reservada. Jimmy, com a imaginação desperta, vislumbrou a juventude impetuosa dos franceses misturada à rígida elegância das maneiras inglesas. Uma imagem graciosa, pensou, e também justa. Ele admirou a destreza com que o anfitrião conduzia a conversa. Os cinco jovens tinham gostos variados e estavam com a língua solta. Villona, com imenso respeito, começou a revelar ao inglês um tanto surpreso as belezas do madrigal inglês e a deplorar a perda dos instrumentos antigos. Rivière, em uma iniciativa não muito engenhosa, resolveu explicar para Jimmy o triunfo dos mecânicos franceses. A voz ribombante do húngaro estava prestes a ridicularizar os alaúdes espúrios dos pintores românticos quando Ségouin pastoreou o grupo rumo aos caminhos da política. Esse era um terreno agradável para todos. Jimmy, sob a generosa influência da bebida, sentiu o ímpeto oculto do pai acordar dentro de si: e enfim despertou o apático Routh. O calor no interior do cômodo dobrou de intensidade e a tarefa de Ségouin ficava mais difícil a cada instante: corria-se até mesmo o risco de desavenças pessoais. O anfitrião sempre alerta fez um brinde à Humanidade no primeiro momento oportuno e, depois que todos beberam, abriu uma janela com um gesto prenhe de significado.
Naquela noite a cidade usava a máscara de uma capital. Os cinco jovens caminharam pelo Stephen’s Green em uma tênue nuvem de fumaça aromática. Conversaram alegres e em voz alta com os casacos pendurados nos ombros. As pessoas abriam caminho para eles. Na esquina da Grafton Street um homem gordo e baixo estava ajudando duas belas mulheres a entrar num carro aos cuidados de outro homem gordo. O carro se afastou e o homem gordo e baixo percebeu o grupo.
André.
É o Farley!
Uma torrente de conversa veio a seguir. Farley era americano. Ninguém sabia direito qual era o assunto da conversa. Villona e Rivière eram os mais ruidosos, mas todos estavam exaltados. Entraram em um carro, espremendo uns aos outros em meio a muitas risadas. Trafegaram ao lado da multidão, a essa altura transformada em cores suaves, ao som de sinos alegres. Pegaram o trem na Westland Row e em poucos instantes, como pareceu a Jimmy, estavam saindo da Kingstown Station. O condutor saudou Jimmy; era um senhor de idade.
Boa noite, senhor!
Era uma noite amena de verão; o porto estendia-se como um espelho negro logo abaixo. Seguiram em frente de braços dados, cantando Cadet Roussel em uníssono, batendo os pés a cada:
Ho! Ho! Hohé, vraiment!
Entraram em um barco a remo no cais e foram em direção ao iate do americano. Lá haveria comida, música, cartas. Villona disse, convicto:
Que bonito!
Havia um piano na cabine. Villona tocou uma valsa para Farley e Rivière, Farley fazendo as vezes de cavalheiro e Rivière de dama. Logo veio uma quadrilha improvisada, e os homens inventaram passos na hora. Quanta alegria! Jimmy participou com vontade; aquilo, enfim, era viver a vida. Então Farley perdeu o fôlego e gritou Chega! Um homem trouxe uma ceia leve, e os jovens sentaram-se por mera convenção. Mesmo assim, beberam: era um hábito boêmio. Beberam a Irlanda, a Inglaterra, a França, a Hungria, os Estados Unidos da América. Jimmy fez um discurso, um longo discurso, e Villona dizia Mais! Mais! sempre que havia uma pausa. Houve muitos aplausos quando sentou. Deve ter sido um bom discurso. Farley deu-lhe um tapa nas costas e riu alto. Que sujeitos alegres! Que ótimos companheiros!
Cartas! Cartas! Limparam a mesa. Villona retornou em silêncio ao piano e tocou de improviso. Os outros jogaram rodada atrás de rodada, lançando-se à aventura com vontade. Beberam à saúde da Dama de Copas e da Dama de Ouro. Jimmy sentiu de maneira obscura a falta de uma audiência: todos pareciam muito espirituosos. As apostas estavam muito altas e o papel começou a circular. Jimmy não sabia direito quem estava ganhando mas sabia que estava perdendo. Mas a culpa era dele mesmo porque muitas vezes confundia as cartas e os outros precisaram calcular o quanto devia. Eram companhias formidáveis mas ele queria que parassem: estava ficando tarde. Alguém fez um brinde ao iate The Belle of Newport e em seguida alguém sugeriu um grande jogo para encerrar.
O piano havia parado; Villona devia ter subido ao convés. Foi um jogo terrível. Eles pararam logo antes do fim para beber à sorte. Jimmy percebeu que a decisão seria entre Routh e Ségouin. Quanta emoção! Jimmy também estava empolgado; mas ele perderia, claro. Quanto havia assinado em dívidas? Os homens ficaram de pé para jogar as últimas cartas, falando e gesticulando. Routh ganhou. A cabine estremeceu com a comemoração dos jovens e as cartas foram guardadas. Os ganhos foram recolhidos. Farley e Jimmy sofreram as maiores perdas.
Ele sabia que se arrependeria pela manhã, mas naquele instante estava feliz com o descanso, feliz com o estupor negro que haveria de cobrir aquela insensatez. Apoiou os cotovelos na mesa e pôs a cabeça entre as mãos, contando as pulsações nas têmporas. A porta da cabine se abriu e ele viu o húngaro de pé em uma nesga de luz cinzenta:
Já é dia, senhores!
James Joyce, in Dublinenses

Nenhum comentário:

Postar um comentário