segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

Chico Brabo

O que mais me desagradava naqueles dias de cegueira periódica era a fala de Seu Chico Brabo, o vizinho da direita. A minha cama de lona, encostada à parede que nos separava do beco, estava perto da família Sabiá. A casa de Seu Chico Brabo distanciava-se: havia de permeio a sala de jantar e a despensa. Mas quando ele falava, o bendito de D. Conceição esmorecia, findavam as conversas, os cochichos dos moleques na cozinha, o rumor do abano, o crepitar das labaredas que lambiam o angico no fogão. Era como se o homem tivesse atravessado muros e portas, estivesse ali junto de mim. Surpreendia-me o vozeirão tremendo, quase irreconhecível despido das gentilezas macias que o abrandavam na calçada e na rua.
Seu Chico Brabo era solteiro, de meia-idade, grosso, baixo, na cara balofa e amarelenta uma barba ruiva, olhos miúdos e de porco. Não me lembro de tê-lo visto nas cavaqueiras de proprietários e negociantes, que, depois do Vigário e do Juiz, formavam a aristocracia do lugar e marcavam a distinção usando capotes e cache-nez de lã no inverno. Vivia modestamente, aparecia em mangas de camisa, no peito descoberto uma grenha vermelhaça. Ignoro que ofício tinha. Arredio, isentava-se dos deveres sociais com sorrisos tímidos, cumprimentos, alguma frase obsequiosa.
Manipulava, drogas, possuía uma farmácia caseira, chegava se aos doentes e medicava-os de graça. Fazia festas às crianças, acariciava-as passando-lhes nos cabelos os dedos curtos e gordos. Interessou-se vivamente pela asma de Leonor. Debruçado à janela, conversou com minha mãe, pedindo notícias e dando conselhos. No dia seguinte ofereceu-lhe uns pacotinhos de pó branco. Seguindo as prescrições dele, minha irmã curou-se.
Na casa de Seu Chico Brabo não havia saias: todo o serviço estava a cargo de João, um garoto de dez anos, estabanado, alegre, a alma se espelhando em duas filas de dentes largos, sempre expostos. João preparava a comida, trazia da feira os mantimentos, ia buscar água na cacimba da Intendência. Da minha cama de inválido, eu notava pedaços do trabalho dele: móveis deslocados, o chiar da vassoura no tijolo. De repente tudo se sumia, dominado pelo grito rouco e poderoso de Seu Chico Brabo:
João! Ô João!
O rapaz se esquivava, o chamado persistia, enérgico:
João! Ô João!
Eu desejava que o menino acorresse, findasse o brado longo, a repreensão, o castigo. Se ele tardasse, o amo se zangaria, agravaria a punição. Engano. Seu Chico Brabo não se zangava: prosseguia do mesmo jeito, até que o pequeno se desentocasse e fosse receber as pancadas. Essa falta de pressa nas duas partes me alarmava, dava-me suores frios. Como podia alguém conservar tranquilidade em semelhante situação? Quando me acontecia, uma desgraça como aquela, mexia-me, na tremura e no medo, a tentar uma defesa improvável, a condenar-me.
Realmente eu não sabia se Seu Chico Brabo estava tranquilo. Talvez houvesse nele uma cólera maciça, inalterável. O objeto dela ficaria escondido muitas horas, sem aumentá-la, sem diminuí-la. A ausência de gradação enchia-me de pasmo, de mal-estar novo. As cinco sílabas caíam pesadas, as duas primeiras juntas, as últimas depois de uma pausa. Arrepiava-me, cobria as orelhas com as palmas das mãos úmidas, torcia-me Com desespero, mentalmente me dirigia a um esconderijo:
Sai, João. Vai logo.
Certamente aquilo era pior que todas as chicotadas. Um instante de silêncio, resfôlego encatarroado, tosse, gorgolejo de bicho frio. Na minha imaginação um corpo lento se desenroscava, o toicinho da papada tomava consistência, a brancura e a moleza se coloriam. Dedos curtos se alongavam, transformavam-se em garras. E o apelo tornava, rouco, formidável grunhido paciente de animal forte que nunca deixa o sossego.
Bem. Agora João tinha resolvido largar o refúgio, confiar-se ao destino, mas isto não abreviava a representação. Antes de lhe tombar no cachaço, com força de malho, o punho cabeludo, havia uma extensa arguição, um minucioso rol de culpas, dividido em capítulos espaçados, findos na voz imutável:
João! Ô João!
Como se gritava daquele modo a uma pessoa que estava ali perto, Deus do céu? Um grito longo, interrompido, recomeçado. Na cara biliosa haveria, sem dúvida umas gotas de sangue. Isto não precipitava o desenlace: a tortura se aprofundava e alargava, metódica. Duas mãos inchadas seguravam braços finos, sacudiam-nos reforçando as objurgatórias. Suponho que Seu Chico Brabo não sentia prazer em magoar fisicamente a criança: gostava de aperreá-la devagar, feri-la com palavras. É possível que as palavras não ferissem, resvalassem na alma habituada às ameaças. Afinal dois ou três golpes fofos. Guinchos de um; sopros, respiração ofegante do outro. Depois tudo se acalmava e os rumores comuns voltavam a embalar-me.
No dia seguinte João estaria assobiando, cantando, arrastando as cadeiras, varrendo o tijolo. O homem lívido espalharia as banhas de capado no peitoril da janela, rosnaria grave e tímido à saudação dos transeuntes, falaria às mulheres da vizinhança, ensinando-lhes mezinhas, prestimoso, solícito.
Duas figuras me perseguiam na doença prolongada: o sujeito amável, visto na rua, e a criatura feroz da sala de jantar. As discrepâncias avultavam, acumulavam-se - e era difícil admitir que alguém fosse tão generoso e tão cruel.
A recordação daquela doçura mole, dos papelinhos de pó branco, dos sorrisos, trazia-me ao espírito bondade completa; os urros furiosos e os sopapos descarregados em João exibiam-me completa maldade. Onde estava Chico Brabo? Qual dos dois era o verdadeiro Chico Brabo? Estarrecia-me esse desdobramento. Decerto havia nos filhos de Deus muito desconchavo e muita rabugem. Poucos chegavam, como D. Maria, a apresentar serenidade invariável, resistente a dores de barriga e enxaquecas. Mas, D. Maria, a velha professora quase analfabeta, aproximava-se da santidade. Os outros viventes possuíam virtudes e defeitos, com desvios e oscilações.
Chico Brabo parecia-me dois seres incompatíveis. Em vão tentei harmonizá-los. As lembranças multiplicavam-se, exageravam-se. Arriado na cama de lona, as pálpebras coladas, via distintamente um deles. Os ouvidos excitados na cegueira fixavam-me na imaginação o segundo.
Quando a visão tornava, os dois tipos faziam as pazes, reciprocavam concessões. Os meus olhos enchiam-se de imagens. Os meninos de Teotoninho Sabiá esvoaçavam. José da Luz vinha contar-me histórias. Uma porta se abria na Rua da Palha, expunha à vila a festa permanente do jardim florido. Nos sábados o largo se povoava de barracas; matutos, de gibão e guarda-peito, andavam na feira, aos tropicões, as rosetas das esporas tilintando. Domingo, na missa das dez, nuvens de incenso escureciam os altares, ramagens de chita e véus de noivas; repiques de sinos abafavam o burburinho da multidão, gritos de almas novas a esgoelar-se na pia, batizando-se. A vila se agitava. E nessa agitação Chico Brabo se diluía, pedaços de Chico Brabo se confundiam com pedaços de outros viventes. Os meus olhos piscos divagavam, buscando andorinhas no céu ou tropeçando na leitura.
Mas tornavam a inutilizar-se, a esconder-se, lacrimosos e supurantes, sob o pano escuro. E Chico Brabo novamente se desagregava. A parte boa ficava lá fora, gastando-se em gentilezas, em obséquios às donas de casas, aos meninos asmáticos.
A parte ruim se concentrava na sala de jantar e demolia João. Se Chico Brabo tivesse criados, vaqueiros, mulher, filhos, moleques na cozinha, dividiria, subdividiria a zanga, distribuí-la-ia equitativamente, e as parcelas nem seriam percebidas. Chico Brabo só dispunha daquela pequena subserviência. Depositava nela o veneno que produzia, purificava-se, voltava à sala, ia alagar as crianças, oferecer remédio às vizinhas.
Graciliano Ramos, in Infância

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