Nós
já conhecemos este discurso. A culpa já foi da guerra, do
colonialismo, do imperialismo, do apartheid, enfim, de tudo e
de todos. Menos nossa. É verdade que os outros tiveram a sua dose de
culpa no nosso sofrimento. Mas parte da responsabilidade sempre morou
dentro de casa.
Estamos
sendo vítimas de um longo processo de desresponsabilização. Esta
lavagem de mãos tem sido estimulada por algumas elites africanas que
querem permanecer na impunidade. Os culpados estão, à partida,
encontrados: são os outros, os da outra etnia, os da outra raça, os
da outra geografia.
Há
um tempo atrás fui sacudido por um livro intitulado Capitalist
Nigger: The Road to Success de um nigeriano chamado Chika A.
Onyeani. Reproduzi num jornal nosso um texto desse economista que é
um apelo veemente para que os africanos renovem o olhar que mantêm
sobre si mesmos. Permitam-me que leia aqui um excerto desse texto.
Caros
irmãos:
Estou
completamente cansado de pessoas que só pensam numa coisa:
queixar-se e lamentar-se num ritual em que nos fabricamos mentalmente
como vítimas. Choramos e lamentamos, lamentamos e choramos.
Queixamo-nos até à náusea sobre o que os outros nos fizeram e
continuam a fazer. E pensamos que o mundo nos deve qualquer coisa.
Lamento dizer-vos que isto não passa de uma ilusão. Ninguém nos
deve nada. Ninguém está disposto a abdicar daquilo que tem, com a
justificação de que nós também queremos o mesmo. Se quisermos
algo temos que o saber conquistar. Não podemos continuar a mendigar,
meus irmãos e minhas irmãs.
Quarenta
anos depois da Independência continuamos a culpar os patrões
coloniais por tudo o que acontece na África dos nossos dias. Os
nossos dirigentes nem sempre são suficientemente honestos para
aceitar a sua responsabilidade na pobreza dos nossos povos. Acusamos
os europeus de roubar e pilhar os recursos naturais de África. Mas
eu pergunto-vos: digam-me, quem está a convidar os europeus para
assim procederem, não somos nós?
Queremos
que outros nos olhem com dignidade e sem paternalismo. Mas, ao mesmo
tempo, continuamos olhando para nós mesmos com benevolência
complacente: somos peritos na criação do discurso
desculpabilizante. E dizemos:
• que
alguém rouba porque, coitado, é pobre (esquecendo que há milhares
de outros pobres que não roubam);
• que
o funcionário ou o polícia são corruptos porque, coitados, têm um
salário insuficiente (esquecendo que ninguém, neste mundo, tem
salário suficiente);
• que
o político abusou do poder porque, coitado, na tal África profunda,
essas práticas são antropologicamente legítimas.
A
desresponsabilização é um dos estigmas mais graves que pesa sobre
nós, africanos, de norte a sul. Há os que dizem que se trata de uma
herança da escravatura, desse tempo em que não se era dono de si
mesmo. O patrão, muitas vezes longínquo e invisível, era
responsável pelo nosso destino. Ou pela ausência de destino.
Hoje,
nem sequer simbolicamente matamos o antigo patrão. Uma das formas de
tratamento que mais rapidamente emergiu de há uns dez anos para cá
foi a palavra “patrão”. Foi como se nunca tivesse realmente
morrido, como se espreitasse uma oportunidade histórica para se
relançar no nosso quotidiano. Pode-se culpar alguém desse
ressurgimento? Não. Mas nós estamos criando uma sociedade que
produz desigualdades e que reproduz relações de poder que
acreditávamos estarem já enterradas.
Mia
Couto, in Os sete sapatos sujos
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