domingo, 22 de dezembro de 2019

O segredo de Adelaide está encerrado nos pacotes guardados no baú esquecido sobre o guarda-roupa (trecho)

Como posso suportar a bagunça em que a casa se encontra? Sempre fui ordeiro, e aí me dava bem com Adelaide. Cada coisa em seu lugar, nada esparramado. Quando meu sobrinho vinha passar o fim de semana em casa, ainda criança, eu ficava quase maluco correndo atrás dele.
Picava papel, eu recolhia. Largava pedaços de chiclete no tapete, desmontava brinquedos, esparramava os lençóis, deixava lápis pelo chão. Eu não suportava a desarrumação, ainda que Adelaide me dissesse: deixa o menino em paz, quando ele se for a gente arruma tudo.
Percebo que quase não brinquei com ele na ânsia de deixar a casa em ordem. E agora esses homens instalaram o caos, montaram um quartel-general ao jeito e gosto deles, indiferentes a que eu goste ou não. Sinto que não conto para eles, não me consideram. Apenas estou aí.
Perdi a noção do tempo, fico inquieto, quero o relógio, não sei para quê. Talvez por ser a hora de comer, tenho maus hábitos, não é cômodo abdicar deles. Se não como na hora certa, vem a dor de cabeça. Se descuido, vira enxaqueca, tenho de passar o dia no escuro.
Meu dia era dividido, setorizado, tranquilo de viver dentro. Café, ônibus, trabalho, almoço, trabalho, condução, casa, Adelaide, televisão, noticiário, dormir. Tempos exatos, razoavelmente elásticos. Tudo desandou, me sinto perdido, me refugio no relógio. De que adianta? Não há mais refúgios.
Tem comida aí?
Hein?
Tem comida aí?
Pode gritar que quase não escuto.
QUERO COMER! COMER!
Comida? Tem fritada nessa frigideira em cima do fogão. Fria, se você não se importa.
Importo sim. Importo com a fritada.
O quê?
Não gosto de fritada.
Grita bem alto.
Não gosto de fritada, detesto ovos factícios.
Ahn, ahn, sei, sei, sei. Ovo é bom. Até esses aí.
Tem gosto de plástico, e a liga é bem estranha. Ora, veja se vou ficar gritando nesta cozinha como um imbecil. O sujeito não é surdo, não, é cretino mesmo. E eu que fico discutindo sobre ovos com ele também devo ser cretino. Que coisa insuportável. Ainda por cima vou acabar comendo fritada com ovos factícios.
Não gosta por quê?
Porque não!
Quanto luxo. Se tivesse vivido como eu, sem ver ovo por anos e anos, anos mesmo, não ia ficar olhando com essa cara de quem comeu e não gostou, sem mesmo ter comido ainda. Quando entrei na sua casa e vi a geladeira cheia de ovos, juro mesmo que fiquei maluco, doido da cabeça, tudo batendo e chacoalhando, porque ovo é uma coisa que não dá mesmo para te dizer como é bom. A última vez que vi ovo, antes de entrar aqui, foi na geladeira da Subsistência, na empresa em que eu trabalhava. Não podia, não mesmo, era proibido entrar na cozinha, mas meu chefe me mandou buscar um facão. Entrei, o cozinheiro não estava, fui olhando, abri a geladeira e fiquei maluco, maluco mesmo, com o que vi. Sabe o que vi, pode adivinhar?
Um ovo?
Hein?
Um ovo!
Acertou, acertou mesmo, veja só. Tava lá, um bruta ovo, enorme, até brilhava e foi aí que veio o cozinheiro. Fiquei vidrado, perguntei:
De quem é esse ovo?
Do superintendente.
E como arranjaram ovo se as galinhas não existem mais?
Pergunta pro superintendente, foi ele quem apareceu com uma caixa.
Uma caixa? Quer dizer que tinha muito ovo? E não dividiu com o pessoal?
Dividir com o pessoal? Está pancada, está? Pro pessoal é o rango. Teve um enguiço desgraçado por causa desse ovo aí. Acabaram com um peão porque pegaram o tipinho tentando roubar o ovo. Por isso fecha essa porta e nem se aproxima. E não liga não, ouvi dizer que no outro Acampamento vai ter comida da boa. Os donos do morro aqui é que são morrinhas. Assim que acabar aqui, vocês vão enfrentar uma bruta montanha.
Viu, viu só, eu achava muito errado exibir um ovo assim na geladeira, errado mesmo, porque a peãozada só comia carne de soja, frango de soja, leite de soja, e por cima soja de laboratório. Não sei quem foi o infeliz que inventou essa comida.
Se não inventassem alguma coisa, você estava morto há muito tempo.
Não podiam dar gosto? Se tem até cheiro, e o cheiro é bom, igualzinho àqueles de quando eu era menino. Quem faz cheiro faz gosto, não faz?
No que você trabalhava?
Ih, faz tempo. Mais de dez anos que ando desempregado, a última vez foi quando vi o ovo. Companhia enorme de terraplenagem, enorme mesmo, dava gosto de trabalhar para eles. Cada maquinona, seu, valia a pena mesmo, comiam terra que era uma beleza, iam engolindo os morros, não tinha montanha para elas. Dava gosto, dava mesmo, dirigir uma bichona daquelas, tudo hidráulico, levinho, era só bater nas alavancas, ela ia derrubando, arrasando, enchendo os caminhões de terra. Trabalhei uns doze anos naquela maquinaria, dava até medo quando a gente ia entrar no bichão, todo de ferro amarelo, monstrão de pás e esteiras, ninguém podia com ele. Eu ficava manejando tudo, tudo mesmo na minha mão, pensou como um máquina daquelas faz da gente um cara poderoso, ninguém podia me desafiar, ninguém mesmo. No começo tive medo, depois me acostumei, eu e ela, amigões, entrava e gritava vamos comer morro, porque minha função era desbastar morros, nem sei quantos botei abaixo, acho que uma vez nivelei um estado inteiro ali por perto do Maranhão, conheceu o Maranhão? Amigo, que terraplenagem aquela, durou um ano, trezentas máquinas pondo abaixo montanhas de pedra, e enchendo cada vale que parecia buracão do inferno. Tirava pedra, terra, mato daqui, jogava lá embaixo, o morro descia, o buraco diminuía, até que tudo se igualava, ficava aquele campão lindo, de terra vermelha, ou então se era terra branca parecia uma praia sem fim. Não sei o que iam fazer naqueles terrenos, falavam que iam construir cidades novas, outros que eram para plantação, agora me diga, o senhor já ouviu falar de nivelar terreno para fazer plantação? Eu nunca, nunca mesmo, acho muito sem propósito, sabe o que meu chefe sempre dizia, ele era doido por aquele trabalho, doido mesmo, a gente chegava lá, ele estava a postos quando a gente saía, ele continuava, era de ferro. O sonho dele era nivelar o Brasil inteiro, então, dizia ele, seria o país mais plano do mundo, valia a pena gastar dinheiro numa terraplenagem no país inteiro, porque então iriam economizar muito para fazer estradas, estradas de ferro, pistas, o que se quisesse. Não sei não, mas aquela companhia igualou muita terra por aí, se deixassem ela mudaria este país. Me diga, diga mesmo, o senhor não acha que ia ser melhor para o Brasil? Muita economia de asfalto, cimento, sem todo esse sobe e desce, sem precisar aterros, pontes, viadutos mesmo, não é? As pessoas se cansariam menos, as cidades todas no plano, retinhas, sem ladeiras, quanta economia de energia, era o que dizia meu chefe, eu concordava com ele, um sujeito positivo. Não acha também? Veja, enfiamos uns dois ou três rios nos tubos, e olha que um deles era bruto riozão, mas domamos o bicho, fizemos uma cobertura bonita, toda de cimento, enorme, mas enorme mesmo, o batelão ficou lá embaixo, a gente podia ouvir o barulhão pelos respiradouros, parece que ficou bravo de prenderem ele daquele jeito. Mas podia perder tanto espaço que existia em cima do rio? Era o que me explicava meu chefe, nem devia ser só chefe, era homem para ser patrão mesmo, dono daquela companhia toda, ele tinha cabeça, boa cabeça, cuidava de tudo, direitinho, era um amor por aquelas máquinas, empregado que não cuidasse direito da sua levava cada uma, multa, suspensão, demissão, até mesmo pau, é isso, tinha lá uns camaradas gringos que davam cada pau nos empregados.
Xi, o homem desandou. Tudo por um ovo visto na geladeira dez anos atrás. O que fazer para que desligue? Estou com fome, vou providenciar comida, apanhar uma dessas latas que enchem o quarto. Vontade de uma boa salada de palmito. Com tomate, alface, junto com um churrasquinho.
Quero dar uma espiada no quartinho, ver o barbeiro, tenho medo de que comece a cheirar. Deve estar se decompondo com tal calor. O melhor seria entregá-lo aos Colhedores Noturnos. O problema é explicar a morte por faca, vão chamar os Civiltares, fazer a Perquisição Necessária. E então.
Aquele corpo me incomoda, queria retirá-lo depressa, ninguém gosta de cadáver nas proximidades. Nem nas proximidades nem longe. Ainda mais uma pessoa que a gente conhecia, com quem convivia, e a descobre assassinada. Se bem que o barbeiro era um sujeito saliente, desagradável.
O que me deixa arrepiado, na verdade, não é o cadáver ali jogado. É pensar que um desses homens é assassino. Não tem outra explicação. Mas por que o barbeiro? Um homem aborrecido, apenas isso, só perturbava com seus pedidos, ansioso por uma mordomia, queria mamar em todas.
Todo mundo quer, é a única alternativa de sobrevivência. Vivemos dentro de uma charada, quem soluciona ganha o direito. Encontrar a forma de rachar o Esquema. Descobrir uma brecha. Nada é permitido, tudo é consentido. Foi a fórmula aplicada para que o país não estourasse.
Solução de emergência, proclama. Vivemos nela há dez anos, menos ou mais, não sei. Acabei como Adelaide, me isolando da contagem do tempo, alheio aos seus limites. Tudo se dissolveu na desequilibrada soma de dias e semanas, horas e meses. As barreiras foram estouradas.
De repente me dou conta de que estou dentro de uma armadilha. Construída com inteligência, ou acidental? Dificílimo de determinar. Com os meios que têm em mãos, e o controle que exercem, eles podem ter provocado essa fissão nas fronteiras convencionais do tempo.
Como recurso para dissimular as barreiras físicas, concretas, que ergueram em torno de nós. Os limites da cidade, zonas neutras impostas entre o Urbano e os Acampamentos Paupérrimos. As fichas de circulação que impedem de transitar, penetrar nos bairros da redoma.
As Bocas de Distrito que nos seguram. Sim, sim, tudo teve de ser organizado a fim de a vida seguir normal, o caos não se instalar. Que ideia eles fazem do caos? Gostaria de saber. Tenho de pensar nisso, recompor a minha cabeça, talvez discutir com Tadeu Pereira, é um homem lúcido.
Está muito claro o objetivo. Eliminar a linha divisória que demarcava o tempo e ao mesmo tempo nos impor balizas estreitas a fechar nosso espaço físico. Aí é que estava a confusão, repousada em sutileza. E explicava a divisão que permanecia em nossas cabeças, incoerência obscura.
Ei, você não está prestando atenção.
Estou com fome.
Ainda não te contei o melhor.
Conta depois.
Quero te contar das barragens que ajudei a fazer. Lindo mesmo, fechamos quase todos os rios deste país, fizemos cada lago que parecia mar mesmo.
Estou de costas, ele matraqueia. Saio da cozinha com salsichas num pão de estranha coloração marrom, enganosamente macio. Cada vez que mastigo sanduíches, minha ponte se desloca. Ainda bem que o gosto não é dos piores e o cheiro é de pão fresco. Artificial, mas gostoso.
Ignácio de Loyola Brandão, in Não verás país nenhum

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