sábado, 21 de dezembro de 2019

O moleque José

A preta Quitéria engendrou vários filhos. Os machos fugiram, foram presos, tornaram a fugir — e antes da abolição já estavam meio livres.
Sumiram-se. As fêmeas, Luísa e Maria, agregavam-se à gente de meu avô. Maria, a mais nova nascida forra, nunca deixou de ser escrava. E Joaquina, produto dela, substituiu-a na cozinha até que, mortos os velhos, a família não teve recurso para sustentá-la. Aí Joaquina se libertou. E casou, diferençando-se das ascendentes. Luísa era intratável e vagabunda. Em tempo de seca e fome chegava-se aos antigos senhores, instalava-se na fazenda, resmungona, malcriada, a discutir alto, a fomentar a desordem. Ao cabo de semanas arrumava os picuás e entrava na pândega, ia gerar negrinhos, que desapareciam comidos pela verminose ou oferecidos, como crias de gato. Parece que só escaparam os dois recolhidos por meu pai.
A moleca Maria tinha a natureza da mãe. E não podendo revelar-se, lavava pratos e varria a casa em silêncio, morna, fechada, isenta de camaradagens, esperando ganhar asas e voar. Realizou esse projeto.
O moleque José, tortuoso, sutil, falava demais, ria constantemente, suave e persuasivo, tentando harmonizar-se com todas as criaturas. Repelido, baixava a cabeça. Voltava, expunha as suas pequenas habilidades sem se ofender, jeitoso, humilde, os dentes à mostra. Não era alegre. Os olhos brancos ocultavam-se, frios e assustados, os beiços tremiam às vezes, mas isto se disfarçava numa careta engraçada que amolecia a cólera das pessoas grandes.
E José se escapulia, escorregava, brando e gelatinoso, das mãos que o queriam agarrar. Apanhado na malandragem, mentia, inocente e sem-vergonha. Juntava os indicadores em cruz, beijava-os: “Por Deus do céu, pelas cinco chagas de Nosso Senhor Jesus Cristo, por esta luz que nos alumia.” Franzino, magrinho, achatava-se. Uma insignificante mancha trêmula.
Nunca o vi chorar. Gemia, guinchava, pedia, soluçava infinitas promessas, e os olhos permaneciam enxutos e duros. Enchia-me de inveja, desejava conter as minhas lágrimas fáceis. Tomava-o por modelo. E, sendo-me difícil copiar-lhe as ações, imitava-lhe a pronúncia, o que me rendia desgosto. Esfriavam-me a ambição de melhorar e instruir-me, forçavam-me a recuperar a fala natural.
Haviam obrigado o moleque a tratar-me por senhor, não admitiam que me reconhecesse indigno, me privasse voluntariamente daquele respeito miúdo.
José, insensível às minhas desvantagens, perseverava na obediência, modesto, a proteger-me.
Íamos com frequência ao sítio que meu pai cultivava perto da rua, para lá do cemitério novo.
Debaixo das árvores do aceiro, descansando sobre folhas secas, conservava-me horas entorpecido, a olhar as fileiras de mandioca, as cercas, periquitos que namoravam espigas amarelas. José vadiava nos ranchos vizinhos.
Logo ao sair de casa, dobrando a esquina do Cavalo Morto, reunia-se a um lote de garotos. E o bando aumentava, era diante do muro de Seu Paulo Honório um pelotão ruidoso, que enfeitava a areia, com flores de mulungu. As mulheres da lavoura percebiam nas corolas encarnadas formas indecentes, pisavam-nas furiosas, dirigiam insultos às moitas. Os pirralhos ocultos gritavam, corriam pelo mato, espalhavam no chão outras flores, vermelhas e peludas, ficavam de tocaia, aperreando as mulheres. Montado no meu carneiro branco, espantava-me da indignação delas, queria saber por que esmagavam com os pés coisas tão bonitas. Achava tola a brincadeira e enjoava-me dos meninos barulhentos. Certo dia um se aproximou de mim, puxou conversa usando palavras misteriosas. José interveio:
Cala a boca. Ele não entende isso.
Entristeci, humilhado por anunciarem a minha ignorância. Quis reclamar, fingir-me esperto, mas desanimei, confessei interiormente que eles procediam de modo singular. Afastei-me sério, livre de curiosidade.
O meu carneiro branco morreu, os passeios ao sítio findaram.
José conhecia luares, pessoas, bichos e plantas. Uma vez enganou-se. Presumiu enxergar meu bisavô num cavaleiro encourado visto de longe:
Seu Ferreira de gibão, no cavalo de Seu Afro.
Discordei. Meu bisavô só vestia couro no trabalho do campo. Na rua apresentava-se de colarinho e gravata, à feira, à missa, às eleições, ao júri. E não viajava em animal emprestado. Quando o homem se avizinhou, notamos o equívoco — e isto me deu satisfação. Senti o moleque próximo e falível. Eu julgava a ciência dele instintiva e segura. Modifiquei o juízo e alimentei a esperança de, com esforço, decorar nomes também, orientar-me em caminhos e veredas.
Apesar do erro, o prestígio de José não diminuiu. Convenci-me de que ele se havia expressado bem e repeti com entusiasmo:
Seu Ferreira de gibão, no cavalo de Seu Afro.
Acabei por dividir a frase em dois versos, que a princípio declamei e depois cantei:

Seu Ferreira de gibão,
No cavalo de Seu Afro.

Minha mãe se aborreceu, atirou-me os qualificativos ordinários. Estúpido, idiota. Mordi os beiços, fui esconder-me no armazém, olhar o beco. Mas, trepado na janela, as pernas caídas para fora, não esquecia o disparate e monologava, batendo com os calcanhares no tijolo:

Seu Ferreira de gibão,
No cavalo de Seu Afro.

José deu-me várias lições. E a mais valiosa marcou-me a carne e o espírito. Lembro-me perfeitamente da cena. Era de noite, chovia, as goteiras pingavam. Na sala de jantar meu pai arguia o pretinho, que se justificava mal. Nenhum indício de tempestade e violência, pois a culpa era leve e meu pai não estava zangado: contentar-se-ia com algumas injúrias. Achando-se disposto a absolver, aceitava facilmente as explicações. A um desconchavo do acusado, a voz áspera se amaciava, um riso grosso estalava — e a calma se restabelecia. Atravessávamos, porém, momentos difíceis: não podíamos saber se ele ia abrandar ou enfurecer-se. E o nosso procedimento o levava para um lado, para outro. Acertávamos ou falhávamos como se jogássemos o cara-ou-cunho.
Se os fregueses andavam direito na loja, obtínhamos generosidades imprevistas; se não andavam, suportávamos rigor. Provavelmente é assim em toda a parte, mas ali essas viravoltas se expunham com muita clareza.
Naquela noite José, como de costume, negou uma traquinada insignificante. Apertado na inquirição, continuou a negar. Vieram provas, surgiu a evidencia. O negro estava obtuso, não percebeu que devia soltar ao menos uns pedaços de confissão e defender-se depois, jurar por "esta luz, pelas chagas de Cristo, não reincidir. Perdeu o ensejo — e a autoridade se arrenegou, não por causa da falta, venial, mas pela teimosia, agravada talvez com a recordação de fatos estranhos. Agora o infeliz precisava resignar-se ao castigo. E resistia, procurava atenuar a raiva esmagadora. A infração inchava, confundia-se com outras mais velhas, já perdoadas, e estas cresciam também, tornavam-se crimes horríveis.
Quando meu pai se tinha irado bastante, segurou o moleque, arrastou-o à cozinha. Segui-os, curioso, excitado por uma viva sede de justiça. Nenhuma simpatia ao companheiro desgraçado, que se agoniava no pelourinho, aguardando a tortura. Nem compreendia que uma intervenção moderada me seria proveitosa, originaria o reconhecimento de um indivíduo superior a mim.
Conservei-me perto da lei, desejando a execução da sentença rigorosa. Não me afligiam receios, porque ninguém me acusava, ninguém me bulia a consciência.
Não distinguindo perigos, supunha que eles se haviam dissipado inteiramente.
As brasas no fogão cobriam-se de cinza, morriam sob chuviscos; a água da bica salpicava o ladrilho escorregadio; a labareda fumacenta do candeeiro oscilava. Num murmúrio, a criança beijava os dedos finos. De repente o chicote lambeu-lhe as costas e uma grande atividade animou-a. Pôs-se a girar, desviando-se dos golpes. E as palavras afluíam num jorro:
Por esta luz, meu padrinho. Pelas cinco chagas de Nosso Senhor Jesus Cristo.
A súplica lamurienta corria inútil, doloroso ganido de cachorro novo.
Muitas vergastadas se perdiam, fustigavam as canelas do juiz transformado em carrasco. Este largou o instrumento de suplício, agarrou a vítima pelas orelhas, suspendeu-a e entrou a sacudi-la. Os gemidos cessaram. O corpo mofino se desengonçava, a sombra dele ia e vinha na parede tisnada, alcançava a telha, e os pés se agitavam no ar.
Aí me veio a tentação de auxiliar meu pai. Não conseguiria prestar serviço apreciável, mas estava certo de que José havia cometido grave delito e resolvi colaborar na pena. Retirei uma acha curta do feixe molhado, encostei-a de manso a uma das solas que se moviam por cima da minha cabeça. Na verdade apenas toquei a pele do negrinho. Não me arriscaria a magoá-lo: queria somente convencer-me de que poderia fazer alguém padecer. O meu ato era a simples exteriorização de um sentimento perverso, que a fraqueza limitava.
Se a experiência não tivesse gorado, é possível que o instinto ruim me tornasse um homem forte. Malogrou-se — e tomei rumo diferente.
Com certeza José nada sentiu. Cobrei ânimo, cheguei-lhe novamente ao pé o inofensivo pau de lenha. Nesse ponto ele berrou com desespero, a dizer que eu o tinha ferido. Meu pai abandonou-o. E, vendo-me armado, nem olhou o ferimento: levantou-me pelas orelhas e concluiu a punição transferindo para mim todas as culpas do moleque. Fui obrigado a participar do sofrimento alheio.
Graciliano Ramos, in Infância

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