segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

Banquete com os deuses

Preparando seu livro sobre o imperador Adriano, Marguerite Yourcenar encontrou numa carta de Flaubert esta frase: “Quando os deuses tinham deixado de existir e o Cristo ainda não viera, houve um momento único na história, entre Cícero e Marco Aurélio, em que o homem ficou sozinho.” Os deuses pagãos nunca deixaram de existir, mesmo com o triunfo cristão, e Roma não era o mundo, mas no breve momento de solidão flagrado por Flaubert o homem ocidental se viu livre da metafísica – e não gostou, claro. Quem quer ficar sozinho num mundo que não domina e mal compreende, sem o apoio e o consolo de uma teologia, qualquer teologia? O monoteísmo paternal substituiu as divindades convivais da Antiguidade, em pouco tempo Constantino adotaria o cristianismo como a religião do império e o homem perdeu sua oportunidade de se emancipar dos deuses.
A ciência, pelo menos até Einstein, nunca pretendeu desafiar a metafísica dominante, mesmo quando desmentia seus dogmas. Copérnico cumpria seus deveres de cônego da catedral de Frauenburg, enquanto bolava a heresia que destruiria mil anos de ensinamento da Igreja, e seu tratado revolucionário sobre o Universo heliocêntrico foi dedicado, sem nenhuma ironia que se saiba, ao papa Paulo III. Galileu também foi inocentemente a Roma demonstrar na corte papal o telescópio com o qual confirmara a teoria explosiva de Copérnico, talvez o exemplo histórico mais acabado de falar em corda na casa de enforcado.
Quando foi julgado pela Inquisição, concordou em renunciar à ideia maluca de que a Terra se movia em torno do Sol, para ficar vivo, e a frase famosa que teria dito baixinho — “E pur se muove” — só foi acrescentada ao relato do julgamento um século depois, provavelmente também originando a frase: “Se não é verdade é um bom achado.” Quando o astrônomo Joseph Halley, o do cometa, entusiasmado com a recém-publicada Principia de Isaac Newton, quis dar uma ideia da importância da teoria newtoniana da gravidade e do movimento dos astros, disse que com ela “fomos admitidos aos banquetes dos deuses”, pois até então a ciência só especulara sobre a geometria celestial — algo como o Woody Allen dizendo que fazer cinema sério, ao contrário de comédias, era sentar-se à mesa com os adultos. Com Newton passamos a conversar seriamente com os deuses. É curioso que Halley tenha preferido “deuses” a Deus, evocando o tempo pré-cristão em que as divindades andavam entre os homens e podiam até ser seus comensais. O trabalho de Newton fazia parte da “filosofia natural”, o pseudônimo com que, na Europa do século XVII, a ciência especulativa convivia com a teologia. Ir aos banquetes com os deuses não era exatamente um ato de rebeldia com a teologia, mas era uma maneira de trazer a metafísica de volta a um plano humano. A luta pela emancipação continua até hoje.
Luís Fernando Veríssimo, in Banquete com os deuses

Nenhum comentário:

Postar um comentário