quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

Araucania

Enquanto estive longe, destacado nas ilhas do arquipélago distante, o mar sussurrava e o mundo silencioso estava cheio de coisas que falavam à minha solidão. Mas as guerras frias e quentes mancharam o serviço consular e foram fazendo de cada cônsul um autômato sem personalidade, que nada pode decidir e cujo trabalho aproxima-se suspeitosamente ao da polícia.
O Ministério impunha que se averiguasse as origens raciais das pessoas: africa-nos, asiáticos ou israelitas. Nenhum destes grupos humanos podia entrar em minha pátria.
A idiotice alcançava graus tão extremos que eu mesmo fui vítima dela quando fundei, sem nenhum dinheiro do fisco chileno, uma revista primorosa. Dei-lhe o título de Araucania e coloquei na capa o retrato de uma bela araucana, rindo com todos os dentes. Foi o quanto bastou para que o Ministério das Relações Exteriores de então me chamasse severamente a atenção pelo que considerava um desacato. Tudo isso porque o presidente da república era Dom Pedro Aguirre Cerda, em cujo rosto simpático e nobre viam-se todos os elementos de nossa mestiçagem.
Já se sabe que os araucanos foram aniquilados e por fim esquecidos ou vencidos e a história é escrita ou pelos vencedores ou pelos que desfrutaram da vitória. Porém poucas raças há sobre a terra mais dignas que a raça araucana. Algum dia haveremos de ver universidades araucanas, livros impressos em araucano, e nos daremos conta de tudo o que perdemos em diafaneidade, em pureza e em energia vulcânica.
As absurdas pretensões “racistas” de algumas nações sul-americanas, produtos elas mesmas de múltiplos cruzamentos e mestiçagens, é uma tara de tipo colonial. Querem montar um tablado onde uns quantos esnobes, escrupulosamente brancos ou esbranquiçados, apresentem-se em sociedade, gesticulando diante dos arianos puros ou dos turistas sofisticados. Por sorte tudo isso vai ficando para trás e a ONU está se enchendo de representantes negros e mongólicos, isto é, a folhagem das raças humanas está mostrando, com a seiva da inteligência que ascende, todas as cores de suas folhas.
Acabei por cansar-me e um dia renunciei para sempre ao meu posto de cônsul-geral.
Pablo Neruda, in Confesso que vivi

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