segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

Ah, sim, a velha poesia...

Poesia a minha velha amiga...
eu entrego-lhe tudo
a que os outros não dão importância nenhuma...
a saber:
o silêncio dos velhos corredores
uma esquina
uma lua
(porque há muitas, muitas luas...)
O primeiro olhar daquela primeira namorada
que ainda ilumina, ó alma como
uma tênue luz de lamparina,
a tua câmara de horrores.
E os grilos?
Não estão ouvindo, lá fora, os grilos?
Sim, os grilos...
Os grilos são os poetas mortos.
Entrego-lhe grilos aos milhões um lápis verde um retrato
amarelecido um velho ovo de costura os teus pecados
as reivindicações as explicações — menos
o dar de ombros e os risos contidos
mas
todas as lágrimas que o orgulho estancou na fonte
as explosões de cólera
o ranger de dentes
as alegrias agudas até o grito
a dança dos ossos...
Pois bem
às vezes
de tudo quanto lhe entrego,
a Poesia faz uma coisa que parece que nada
tem a ver com os ingredientes mas que tem por isso mesmo um sabor total:
eternamente esse gosto de nunca e de sempre.
Mário Quintana

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