Não
deu para entender. De jeito nenhum. Fiquei paralisado, vendo a mancha
marrom diante de meus olhos e o formigamento correndo pelo corpo. Sem
acreditar, sem poder acreditar no que estava vendo. Por que mataram o
barbeiro? E a que horas foi? Como o trouxeram para cá?
Um
homem inofensivo, vivia de suas barbas, não se metia na vida dos
outros. Se sabia das coisas do prédio é porque os velhos contavam.
Desciam à barbearia para um bate-papo, que gente velha é dada a
tais costumes antigos. Não pode ter sido um dos velhos, não teriam
força.
Não
tenho prática, mas posso ver que o barbeiro resistiu. A camisa toda
rasgada no peito, os cortes do punhal ou da faca cheios de sangue
ressequido, coagulado. Se fosse tiro, seria provavelmente um buraco
redondo, pequeno. Foi alguém forte, decidido e de sangue frio. Um
profissional.
Burro,
claro que foi um dos três homens que invadiram. Como entrariam? Mas
a que horas fizeram isso? Quando cochilei? Mas tenho o sono leve,
teria acordado ao mínimo ruído. E eu estava no sofá da sala,
portanto quase no meio do caminho deles. Podem também ter-me dopado.
Não
adianta nada ficar pensando, o melhor é perguntar. Chamar alguém,
temos de tirar o cadáver daqui, está enrijecido, vai feder daqui a
pouco. Não quero empestear minha casa. E não me agrada a ideia de
conviver com um defunto me rondando. Isso me encheu muito, agora. Já
é demais.
A
paralisação desaparece, a mancha marrom fica ainda por alguns
instantes. Tenho certeza, a mancha não é mais estática, existe
alguma coisa se movendo em seu interior. Cada dia toma mais forma, se
eu tiver paciência, ela ainda se definirá, vou poder descobrir o
que é, por quê.
Quanta
coisa a descobrir no mundo de hoje. Tentar entender a confusão à
minha volta e ainda me debater com esses problemas interiores. Se eu
tivesse coragem iria a um médico. Coragem e dinheiro, ninguém
suporta o que eles cobram. Além disso, faria tantos exames, mas
tantos.
Caiu
na mão de um, não se escapa mais. Jamais será o primeiro a
encontrar o que tenho. Vou passar de especialista em especialista,
deixarei todo meu sangue, fezes e urina nos laboratórios, serei
sugado, esmagado, utilizado. E, depois, entrarei no fabuloso ciclo de
farmácias.
Por
isso a gente evita ir aos médicos. Se não encontram um mal
definido, mandam a gente aos Psis. Ah, e aí, então, adeus mundo!
Porque a função principal dos Psis é te convencer de que você não
tem capacidade de cuidar da própria vida, portanto é louco. Sem
contemplação, te atestam insanidade.
E
loucos vão para o Isolamento dos Mentais. No momento em que o
paciente entra, automaticamente os seus rendimentos são desviados
para a tesouraria do Isolamento, a fim de pagar o tratamento. Não é
à toa que existe nesta cidade uma intensa caça, comandada pelos
Psis. Peritos, eles nos envolvem.
Se
você localiza um deficiente mental e dá o sinal, os Psis mandam
buscar. E há uma recompensa em cotas de água, ou outro privilégio
qualquer. Entendem agora por que as pessoas andam na rua com passos
comedidos, evitam falar com os outros, não fazem gestos bruscos, nem
gritam?
Qualquer
movimento suspeito, atitude fora do normal, pode indicar a existência
de uma perturbação. E lá vem os Psis pra cima, babando como
cachorro louco. É também por essa razão que a maioria prefere não
sair de casa. Nunca se sabe. De repente, um espirro com som
diferente, e adeus.
A
minha vontade agora era sair correndo, gritando, pulando. De horror
desse homem esfaqueado, largado em minha casa. Ah, Adelaide, você
fez bem em sumir, não aguentaria tais cenas. Nem fomos feitos para
suportá-las, mas temos de carregá-las, enfrentá-las, são o
cotidiano, feijão com arroz.
Há
quantos anos penso assim: este é o meu cotidiano, tenho de vivê-lo
o melhor possível. Todo mundo pensa assim e, portanto, as coisas
andam como andam. Imaginei, muito tempo atrás, que, se eu
conseguisse estabelecer reformas dentro do grupo, seria possível uma
revolução geral.
Cada
um agindo no seu grupo. Então somaríamos tais reformas e teríamos
uma modificação. Claro que haveria uma tendência geral, uma linha
a seguir, que desse unidade a tais mudanças. Pensei, mas não fiz.
Fiquei preocupado com a sobrevivência, manter minha família, a
casa.
Lutei
para pagar a casa, aceitei a troca pelo apartamento, briguei para
arranjar emprego, aceitei o que me deram, apavorado com a perspectiva
do não futuro. E foi exatamente ao não presente que cheguei.
Olhando para trás, vejo que vivi dentro de um não passado. E a
conclusão é simplesmente terrível.
Sim,
porque um homem que atravessou um não passado e caiu dentro de um
não presente, esse homem não existe. Que ideia mais engraçada e
louca. Não existo. Aqui estou, posso me tocar, me pegar. Penso,
reflito, concluo. Me vejo inteiro, mas não me reflito, não há
imagem.
Então
olha só que coisa mais maluca que me ocorre: porque consegui pensar,
não existo, não sou. Não fui e não serei. E, no entanto, aqui
estou. Só quero ver a cara do sabichão que se senta sempre à ponta
da mesa, quando eu expuser esse raciocínio. O que ele vai dizer,
comentar?
Na
cozinha, deparo com os três tomando café com bolachas secas. As
bolachas trincadas pelos dentes fazem um ruído uniforme, regular. É
a única coisa que se ouve, além de água fervendo no fogo. Há um
ovo na panela e fico assombrado. Um ovo. Mais fascinante que a
descoberta do cadáver.
Ter
um ovo boiando na panela fervente. Tais homens devem ser poderosos.
Ou meu sobrinho tem mais poder do que eu penso, e não estou tirando
proveito disso. Um magnífico ovo, de casca branca, rolando dentro da
panela. Não me contenho, o espetáculo me hipnotiza. Nada mais
simples que um ovo.
Nada
mais impossível que ele. E, todavia, ali está, à minha frente,
posso tocá-lo, sentir a sua quentura. É um grande conforto, uma
sensação de segurança. O ovo me dá certeza, alguma coisa
permanece. O ovo é uma verdade. Sinto que me reconquisto. Ao mesmo
tempo, o ovo é um mistério, me dá prazer.
– O
que vocês fizeram? Tem um cadáver lá no quartinho!
– Morreu
um daqueles coitados?
– Não,
um de vocês matou o barbeiro lá de baixo.
– Não
sabia. O que você me conta é novidade. Vamos investigar.
– Investigação
das mais fáceis.
– Assassinato
é coisa séria. Pode ser que nenhum de nós tenha morto o homem.
Quem garante que ele não caiu aí na porta e a gente recolheu?
Aliás, foi isso o que aconteceu. Ele bateu à porta de madrugada,
pedindo socorro. Estava todo ensanguentado. Recolhemos, ele morreu na
cozinha, sem dizer o que tinha se passado.
– Por
que não me acordaram?
– Para
quê? Você ia salvar o homem?
– Um
homem morreu na minha casa e fiquei sabendo por acaso. E se eu não
fosse ao quartinho? O cadáver ia apodrecer, empesteava toda a casa.
– Deixa
disso, ninguém morre por cheiro. Morresse, não tinha ninguém vivo
na cidade, tinha?
– Essa
conversa é uma loucura. Tem um homem morto no quartinho. É disso
que precisamos cuidar.
– Vai
ser cuidado. Tá tudo planejadinho.
– Planejado?
Quer dizer que existe uma operação que não sei o que é e inclui
até assassinatos.
– Calma,
esfria essa cabeça. Hoje à noite tudo estará resolvido.
– Como
resolvido?
O
ovo borbulha, o homem que está sempre comendo doces consulta o
relógio. Parece que o ovo é dele, ao menos observa ansiosamente o
cozimento. Ele cruza com meu olhar deslumbrado e não tem gesto de
solidariedade. Nem sorriso, ou oferecimento, nem vontade de
partilhar.
Enfim,
o ovo é dele, faça o que quiser. Já vi tanta coisa que não posso
ter, não vou me amargurar por mais uma, tão pequena. Azar. É que
não me sai da cabeça o corpo do barbeiro. Minha obsessão tem um
motivo que só agora realizo. A morte está muito perto, nós apenas
tentamos sair dela.
Daí
minha raiva contra o barbeiro e esses homens. Me devolvem uma ideia
que recuso, combato, procuro esquecer. Acho que o processo da cabeça
da gente num campo de batalha deve ser este: abstrair a possibilidade
da morte, ainda que todo mundo caia em volta de nós. É o único
modo de sobreviver.
Diante
do cadáver, tenho de admitir: estou na lista. Posso ser o próximo.
Quero me livrar do morto bem depressa. Eliminar uma situação que me
dá consciência. Voltar ao meu isolamento quente e confortável. O
problema é que não dá para estar só, existem os invasores. Não
vou me livrar deles.
O
pavor diante do homem morto, encerrado no quartinho de empregada,
jogado no meio de feridos desmaiados, tudo vira minha cabeça.
Gritar, me jogar contra a parede, deixar tudo. Que esses homens tomem
conta, assumam a casa. Porcaria de casa que me alucina. Por que a
defendo?
Sempre
preso a alguma coisa, gente, objetos, pensamentos. Cheguei aonde
cheguei junto com todo mundo. Vou atrás de Tadeu, ele tem a cabeça
boa, me falou de um grupo, ou coisa semelhante. Quero ir, me afastar
desses homens. Nem sei quem são, não me disseram. Também mal
perguntei.
– Tem
um bom terraço lá em cima?
– Tem.
– Grande?
– Ocupa
toda a extensão do prédio.
– Quer
dar uma subida comigo?
– Fazer
o que no terraço?
– Examinar.
Saber se aguenta peso.
Não
esperamos os elevadores, fomos subindo. Ele tem agilidade, vai de
dois em dois degraus, pedi que me esperasse. Não estou a fim de
arrebentar meu coração. As escadas são imundas, camadas pretas e
oleosas empestam cada degrau. Escorregamos, a pasta se gruda aos
sapatos.
Meu
companheiro parece não sentir, não se incomoda com a sujeira, o
cheiro. Subimos tateando, as luzes apagadas, nem trocam mais lâmpadas
queimadas. As paredes ardem como brasa, o sol da manhã bate direto.
Vai ser mais sufocante que ontem, pior que anteontem. Muito melhor
que amanhã.
Suando,
paramos no vigésimo nono, ouvindo barulhos familiares de pratos e
panelas, o chiado do gás. Ao menos gás é coisa que não falta,
produto reciclado do lixo. Sobra matéria-prima nesta cidade.
Estrondos longínquos, como se fossem tiros de canhão, dinamite
explodindo.
– Não
entendo essas explosões – disse ele.
– Faz
dias que vêm acontecendo.
– E
se fossem trovões?
Nova
escalada, chegamos ao topo. A porta para o terraço está trancada,
cadeado e fechadura enferrujados. Há anos as pessoas não devem
subir aqui. Quando nos mudamos, Adelaide vinha, de vez em quando, e
descobria moças tomando banho de sol. As moças mudaram ou
envelheceram.
O
homem que costuma se sentar à ponta da mesa tirou o revólver.
Jamais imaginei que andasse armado. Dois tiros e o cadeado voou.
Engraçado como estamos acostumados com toda sorte de barulhos. Os
tiros soaram naturais, a porta estava emperrada, um pontapé. Ela se
abriu como em filme.
Terraço
imenso, me deu a impressão de um deserto, tal a quantidade de pó e
areia trazidos pelo vento (tempos atrás), ou lentamente, através
dos meses, anos. Cadeiras quebradas, um tampo de mesa, garrafas
empilhadas. Tudo de plástico. Amontoados indefinidos, cobertos de
terra.
Nossos
pés mergulham fundo, o pó bate na canela, deixamos pegadas
profundas à medida que caminhamos. Por um instante, um desses raros
momentos, se fez um silêncio completo sobre a cidade. Nada mais que
segundos. Que parecem, todavia, uma eternidade, de tal modo nos
habituamos ao ensurdecedor.
Considero
um mistério essas faixas de silêncio. Como se fossem combinadas,
longamente ensaiadas, articuladas por um plano preciso, milimétrico.
Cessa tudo. Vozes, passos, gritos de orgasmo, berros, batidas,
explosões, tosses, pigarros, música, raspados, choques, apitos,
murmúrios, gargalhadas.
Como
se a própria vida humana tivesse deixado de existir. Cessasse. E
flutuamos, soltos, do mesmo modo que os astronautas antigos, aqueles
homens que na década de sessenta percorreram inutilmente o espaço.
Semelhante aos dois que na Lua pisaram pó depositado por milênios.
Aqui,
neste terraço, sinto a Lua, planeta a vagar, e eu, isolado da terra,
do mundo, pronto para recomeçar. À minha frente o deserto, e daqui
a pouco, do meio desta terra seca e calcinada que recobre o prédio,
surgirão larvas, casulos, amebas, novas espécies, adaptadas ao sol,
ao calor, à secura.
Deliro,
certamente. Minha vista embaça, o sol me bate na cabeça, a camisa
está empapada. Corro para me abrigar, há um pequeno telheiro com
portas fechadas. O homem que parece o líder dos ocupantes percorre o
terraço, batendo com o pé, examinando as bordas. O que pretende?
– Ei,
vamos descer, está quente demais – grito.
– Já,
já. Vi o que queria. Acho que vai dar certo.
– O
quê?
– Aguenta.
Vai ser uma operação rápida.
– Para
que me trouxe aqui em cima?
– Para
me acompanhar.
– Só?
– Para
que mais? Você está ficando histérico dentro de casa. Precisa
sair, tomar ar. Por que não vai para a cidade?
– Fico
mais abalado na cidade que em casa.
– A
casa não é mais casa, é uma prisão.
– Gosto
da minha casa, me sinto bem.
– Alguém
esqueceu as roupas no varal.
Havia
calças, camisas, uma camisola, um pijama, meias, penduradas em
cordas de náilon. A roupa estava esfarrapada, dura, pendia como
estalactite. Alguém que deixou a secar e se foi rapidamente. Teria
sido preso? Teria fugido correndo? Quem explica tais mistérios? Ou
foi só esquecimento?
Toquei
na camisola, nem dava para saber se era seda, náilon, algodão.
Roupa fossilizada, imaginei. Há quantos anos estaria aqui, exposta
ao tempo? O pano era quebradiço, se diluía como areia, manchava os
dedos. O passado nos legou peixes, pássaros, animais fossilizados.
Árvores
petrificadas, também. Por meio delas foi possível estudar a
história, reconstituir as épocas. Nós estamos legando ao futuro
bens de consumo fossilizados. Roupas, carros, aparelhos eletrônicos,
e milhares de outros produtos, úteis e inúteis, que marcam esta
civilização.
Nossa
história se resume nesse varal. Toda a insanidade desta época vai
poder ser estudada com o que restar em terraços, terrenos, caves dos
metrôs, porões, apartamentos abandonados, supermercados em ruínas,
templos vazios. Ah, se as lavadeiras antigas me vissem delirando.
Iam
deixar dezenas de peças espalhadas pelos varais, a apodrecer,
dizendo: vamos ajudar os moços, eles precisam da gente, senão a
história se acaba. O que seria da história sem as lavadeiras do
passado? Olha, passado mesmo, que lavadeira de tanque se acabou com
minha avó.
– Gosto
deste terraço. Ao menos é um lugar vazio, dos poucos, ainda.
Meu
companheiro contempla com olhar vago esse deserto particular. À
nossa volta, observando os edifícios mais baixos, descortinamos
outros desertos suspensos, semelhantes. Houve época em que os
Civiltares lacraram o alto de todos os prédios por causa dos
franco-atiradores.
Os
topos ainda são áreas de segurança. Não é conveniente que alguém
nos veja por aqui. Para onde quer que se olhe, o que se vê são
superfícies empoeiradas, vazias. Se cair chuva, um dia, vai dar um
lameiro pesado, pode ser que as lajes não suportem o peso.
Imaginaram? Pantanais sobre os prédios.
– Tudo
tão igual. Por isso é que minha cabeça funde.
– Igual
a quê?
– À
terra de onde vim, as regiões por onde passei.
– Eram
assim?
– Pior.
Muito pior. Tenho tentado esquecer. Evito o assunto. Mas está na
minha cabeça, não é coisa que se esqueça. Entende agora por que
você não sabe muito de mim, de onde vim? Tentei apagar a memória,
imbecil que sou. Apagar, quando devemos fazer o contrário, lembrar,
conservar vivo o horror, para lutar contra ele.
Aí
vem o falador, teorizando. Sei de tudo isso, ele não precisa me dar
aulas. Tenho um pouco de ojeriza por esse homem, gostaria de
descobrir por quê. O que existe nele que provoca alergia, comichão?
Os outros dois quase não existem, circulam como se fossem
invisíveis.
Este,
não. Pode ser a segurança com que enfrenta situações. Talvez eu
veja nele o idealizador da invasão de minha casa. O homem que ocupa
os meus espaços privados e procura me provar que há um novo
conceito de privacidade. Novo conceito? Que nada, é justificativa.
Ele é um enrolador.
Desculpa
para explicar a invasão de minha casa, de minha cabeça. Devemos
repartir; mas por que apenas algumas classes? Por que não invadem as
cúpulas geodésicas, não tomam os Círculos dos Ministros
Embriagados, não conquistam as Áreas dos Milionários Adeptos da
Energia Nuclear?
– Está
pior. Pior como?
– Lá
em cima, no Nordeste, nas zonas não tomadas pelas Reservas das
Multinter, que era onde podíamos circular, tudo que se via era a
terra calcinada, nenhuma vegetação, o chão juncado de esqueletos
de animais, empoeirados, se desfazendo ao sol. Também nós quase nos
desfazíamos, era só ficar algum tempo ao sol.
– De
rachar a cuca, como se dizia antigamente?
– Rachava
a cuca, moía os ossos, dissolvia a pele.
Ignácio
de Loyola Brandão, in Não verás país
nenhum
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