domingo, 13 de outubro de 2019

Rumo ao Oeste

Fotograma do filme As vinhas da ira (1940), de John Ford 

As famílias moviam-se rumo ao Oeste, e a técnica da construção desses mundos melhorava, de maneira que os homens sentiam-se em segurança; e tudo era edificado de maneira que uma família que observava as leis sabia que as leis a protegiam.
Governos eram formados, governos com líderes e anciãos. Um homem inteligente descobria logo que sua inteligência era de utilidade nos acampamentos; um homem ignorante não conseguia impor sua ignorância ao mundo. E uma espécie de seguro desenvolvia-se nessas noites. Um homem que tinha o que comer alimentava outro que nada tinha, e dessa maneira assegurava comida para si próprio para quando suas reservas se esgotassem. E quando uma criança morria, uma pequena pilha de moedas juntava-se à porta da tenda dos pais, pois que uma criança tem que ter um enterro condigno, já que nada obteve da vida. Um adulto podia ser sepultado em vala comum; uma criança, nunca.
Certos requisitos naturais eram indispensáveis para a construção de um mundo: água, a margem de um rio, uma correnteza, uma fonte ou mesmo um encanamento sem vigilância. Era indispensável certa quantidade de terra plana, onde as tendas pudessem ser armadas, um pouco de galhos secos ou lenha para fazer fogueiras. Se existisse perto do local um depósito de lixo, tanto melhor, pois que nesses lugares sempre se podem achar coisas úteis: panelas furadas, uma grade de chaminé para proteger o fogo e latas de conserva que poderiam servir de panelas e pratos.
E os mundos eram construídos à noite. Os homens, vindos da estrada, construíam-nos com as suas tendas, seus corações e seu cérebro.
Pela manhã, as tendas eram desarmadas, as lonas dobradas, as estacas amarradas umas às outras nos estribos dos carros; as camas e os utensílios de cozinha arrumados nos veículos. E à medida que as famílias se moviam rumo ao Oeste, a técnica da construção de um lar à noite e sua destruição pela manhã tornava-se fixa; assim, a tenda enrolada tinha o seu lugar certo, os utensílios de cozinha eram contados antes de serem guardados em suas caixas. E à medida que os veículos se moviam rumo ao Oeste, cada membro da família sabia qual era o seu lugar, quais os seus deveres, de maneira que cada membro da família, velhos e moços, tinha o seu lugar determinado nos veículos; de maneira que nas noites extenuantes e quentes, quando os veículos chegavam aos acampamentos, cada membro de família sabia o que tinha a fazer e fazia-o sem esperar instruções: as crianças juntavam lenha ou carregavam água, os homens armavam as tendas e descarregavam as camas dos veículos, as mulheres preparavam a comida e cuidavam de tudo enquanto a família comia. E isso era feito sem palavras de comando. As famílias, cujas fronteiras eram um sítio de dia e uma casa de noite, mudaram suas fronteiras. Sob a prolongada e quente luz do sol, mantinham-se em silêncio nos veículos que as levavam para o Oeste; mas quando o sol desaparecia, uniam-se ao primeiro agrupamento que encontravam.
Assim modificavam elas a sua vida social — modificavam como só o homem, em todo o Universo, sabia modificar. Não mais havia sitiantes, fazendeiros; havia era homens que emigravam. E os pensamentos, os planos, os prolongados silêncios que, até então, recaíam sobre o campo, mudavam-se agora para as estradas, para a distância, para o Oeste. O homem que antes pensava em hectares pensava agora em quilômetros. E seus pensamentos e suas preocupações não mais limitavam à chuva, ao vento, à poeira e à sua fé no resultado das colheistas... Seus olhos vigiavam os pneus, seus ouvidos escutavam o ronco do motor e suas preocupações concentravam-se em torno do óleo, da gasolina, da fina película de borracha que se ia gastando entre as rodas e o chão. Pois que uma roda de engrenagem partida resultava em tragédia. A água à noite e a comida no fogo eram as únicas aspirações. A saúde era indispensável para o prosseguimento da viagem, era a força necessária, o espírito necessário para prosseguir. A vontade antecipava-lhes os passos, e o medo, que antes só era provocado pelas secas e inundações, era despertado agora por tudo que pudesse opor barreira ao avanço para o Oeste.
A hora de acampar tornou-se uma só: acampavam ao fim de cada dia de viagem.
E nas estradas o pânico dominava algumas famílias, e essas famílias viajavam noite e dia; quando paravam era para dormir nos próprios veículos e continuarem depressa a viagem para o Oeste. Seu desejo de se fixar, era tão grande que eles viravam as faces para o Oeste e viajavam e viajavam sem cessar, forçando os motores superaquecidos.
Mas a maioria das famílias aceitava a mudança e se adaptava rapidamente à nova maneira de viver. E quando o sol tombava no horizonte...
É hora de se arranjar um lugar pra acampar.
É. Ali adiante já tem umas tendas.
O veículo encostava à beira da estrada e parava, e, porque os outros chegaram antes, era preciso usar-se de certa cortesia. E o homem, o chefe da família, debruçava-se do carro:
A gente pode pernoitar aqui, hein?
Pois não. Muito prazer. De que estado são?
Do Arkansas.
Do Arkansas? Pois olha, ali adiante, na quarta tenda daqui para lá, mora gente do Arkansas.
É mesmo?
E a pergunta mais importante: Que tal a água?
Bom, não é lá grande coisa, tá meio suja, mas tem bastante.
Bom, muito obrigado, hein?
Não tem de quê.
Mas a cortesia é necessária, indispensável. O veículo anda aos solavancos até a última tenda e para. Aí todos descem, fatigados, a espreguiçar os músculos rígidos da viagem. Depois, a nova tenda é armada, as crianças mais novas vão buscar água e as mais velhas tratam de juntar ramos secos e gravetos para o fogo. O fogo é aceso e a comida é posta para cozinhar ou fritar. Os que tinham chegado antes acercam-se dos novos, interrogam-nos sobre de que estado são, e muitas vezes amigos e outras vezes até parentes se descobrem.
É de Oklahoma? De que cidade?
Cherokee.
Puxa, pois eu tenho parentes ali! Conhece os Allen? Em Cherokee tem Allen à beça. Conhece os Willy?
Se conheço!
E uma nova unidade estava formada. O crepúsculo avançava, mas antes que as trevas chegassem a nova família já era integrante do acampamento. Já haviam sido trocadas palavras com todas as outras famílias. Era gente conhecida, gente boa.
Conheci os Allen em toda minha vida. Simon Allen, o velho Simon, vivia encrencando com a primeira mulher dele. Ela era de Cherokee. Uma beleza, bonita!... que nem um potro negro.
Se era! E o filho dele, aquele que casou com uma Rudolph, lembra? Pois, é como eu disse: tão se dando muito bem. Parece que moram em Enid, agora.
É o único dos Allen que tá bem de vida. Tem uma oficina.
Quando a água já tinha sido trazida e a lenha cortada, as crianças caminhavam acanhadas, cautelosas, entre as tendas. E recorriam a uma complicada mímica para travarem conhecimento. Um menino parava perto de outro e apanhava uma pedra, examinava-a bem, cuspia-lhe em cima e limpava-a, ficando a olhá-la tanto tempo que o outro não podia aguentar sem perguntar:
Que é que cê tem aí?
Nada. Uma pedra. Era a resposta, como que casual.
Então porque é que cê tá olhando tanto pra ela?
Acho que tem ouro dentro.
Como é que ocê sabe? O ouro dentro de uma pedra não brilha, é preto.
Ora, todo o mundo sabe disso.
Aposto que não é ouro e ocê pensou que era.
Que nada. Eu conheço ouro. Meu pai já achou ouro à beça e me disse como é que a gente podia encontrar.
Seria bom descobrir um pedaço de ouro.
Puuuxa! Ia era comprar um puxa-puxa grande como o diabo!
Meu pai não deixa eu dizer os nomes feios, mas eu digo assim mesmo.
Eu também. Vamo até o riacho.
E também as meninas faziam conhecimento e exibiam pudicamente seus encantos nascentes. As mulheres trabalhavam junto ao fogo e apressavam-se por saciar a fome dos estômagos vazios da família — carne de porco, quando havia dinheiro bastante, batatas e cebola. Panqueca ou pão de centeio, com bastante molho em cima. Filés, bifes e uma xícara de chá preto, amargo. Sonhos fritos na banha, quando o dinheiro era curto, sonhos tostados e crocantes, regados com molho.
As famílias ricas ou perdulárias comiam feijão e pêssego em conserva, pães e bolos de confeitaria, mas comiam escondidas em suas tendas, pois parecia de mau gosto servirem-se de tanta coisa boa diante de todos. E, apesar disso, as crianças que comiam sonhos fritos sentiam no ar o aroma das refeições e adivinhavam-nas e sentiam-se infelizes.
Terminada a refeição, caía a noite e, então, reuniam-se os homens para conversar.
E eles falavam das terras que tinham deixado atrás de si. Não sei como vai ser, diziam eles. Este país tá por conta do diabo.
Vai endireitar outra vez, mas aí a gente já não estará vivo pra ver.
Um sujeito que trabalhava pro capataz me disse: vocês deixaram a terra cheia de barrancos. Se tivessem arado a terra em círculos não teriam feito barrancos. Nunca tive chance de tentar fazer isso. O trator não dá a volta no terreno, faz sempre um sulco reto de seis quilômetros sem parar, e se for pra fazer em círculo, só Jesus Cristo em pessoa!
Quem sabe, pensavam eles, a gente pecou e não sabia.
E eles falavam com brandura de seus lares antigos: havia uma cisterna debaixo da roda do moinho. A gente sempre botava o leite lá dentro, que era pra fazer nata, e também as melancias pra gelar. Quando fazia um calor de rachar, lá na cisterna era um fresco bom como quê. Ali a gente abria uma melancia e quase não podia comer ela de tão fria que tava.
E cada um contava as tragédias que o haviam afligido: tinha um irmão, o Charley, louro que nem uma espiga de milho e grandalhão. Sabia tocar harmônica que era uma beleza. Um dia tava limpando os sulcos do arado. Bom, de repente uma cascavel deu o bote bem junto dele, e os cavalos levaram um susto e as grades do arado espetaram a barriga dele e arrebentaram a cara dele toda. Foi uma coisa horrível.
Falavam sobre o futuro: só queria saber como é a vida lá no Oeste.
Bom, pelas figuras que a gente viu até parece bem bonito aquilo lá. Eu vi uma linda, que parecia fazer calor e tinha umas nogueira e uns pés de groselha... e no fundo tinha montanhas altas que tinha neve nos picos. Era uma figura bem bonita.
Basta a gente arrumar trabalho. Nunca faz frio, nem mesmo no inverno. As crianças podem ir sem roupa quente na escola. Agora vou cuidar pra que meus filhos não percam nenhuma aula. Eu sei ler, mas não sei tão bem pra encontrar prazer na leitura como aqueles que sempre ia na escola.
E talvez um homem puxasse seu violão e sentasse sobre um caixote, em frente a uma tenda e tocasse. Todos no acampamento se juntavam ao redor dele, atraídos pela música. Muita gente sabe tocar violão, mas talvez esse homem fosse um artista de verdade. E aí tudo se torna diferente: os tons baixos ressoam, enquanto a melodia corre a passinhos miúdos pelas cordas. Dedos pesados e dedos que martelam o braço do violão. O homem tocava e os outros iam se reunindo à volta dele até que o círculo ficava fechado, e depois ele cantava “Ten-Cent Cotton and Forty-Cent Meat”. E o círculo de homens fazia-lhe coro, em tom baixo. E ele cantava “Why Do You Cut Your Hair, Girls?” E a roda cantava. Lançava-se depois a uma canção saudosa: “I’m Leaving Old Texas”, a lúgubre canção que era entoada antes da chegada dos espanhóis, só que então a letra era em dialeto indígena.
E agora o grupo já formava uma unidade, uma coisa coesa, de maneira que na escuridão olhavam para dentro de si mesmos os olhos daquela gente toda, e seu pensamento esvoaçava para outras épocas e sua melancolia era reconfortante qual o descanso ou o sono. Ele cantava o “McAlester Blues” e depois, para agradar aos velhos, entoava “Jesus Calls me to His Side”. As crianças sentiam sono com a música e iam para as tendas e adormeciam e as canções as acompanhavam em seus sonhos.
E pouco depois o homem do violão deixava de tocar e bocejava. Boa noite, pessoal, dizia ele.
E eles murmuravam: boa noite.
E todos eles sentiam o desejo de saber tocar violão, porque isso lhes parecia maravilhoso. E aí eles iam para a cama, e o acampamento mergulhava no silêncio. E as corujas esvoaçavam por entre as tendas, ao longe os coiotes uivavam e gambás caminhavam pelo acampamento à procura de algo que pudessem comer: gambás bambaleantes, sem-vergonha que de nada tinham medo.
A noite passou, e aos primeiros raios da alvorada as mulheres deixaram as tendas, acenderam o fogo e puseram água do café a ferver. E os homens acordaram também e conversavam em voz baixa na penumbra.
Quando se cruza o rio Colorado chega-se ao deserto, dizem eles. Toma cuidado que é pra não ter um enguiço no deserto. Leva bastante água, que é pra ficar garantido se acontecer alguma coisa.
Nós vamo viajar de noite.
Nós também. Senão a gente acaba até com a alma ressequida.
As famílias comiam depressa, e os pratos eram enxaguados e limpos com um pano. Depois as tendas eram desarmadas. Todos tinham pressa. E quando o sol surgia o acampamento já estava vazio, e somente restavam seus vestígios. E o lugar estava pronto pra receber um novo mundo, numa nova noite.
Mas ao longo da estrada os veículos dos emigrantes avançavam qual percevejos, e a estreita faixa de concreto estendia-se por quilômetros à sua frente.
John Steinbeck, in As vinhas da ira

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