Fotograma do filme As vinhas da ira (1940), de John Ford
As
famílias moviam-se rumo ao Oeste, e a técnica da construção
desses mundos melhorava, de maneira que os homens sentiam-se em
segurança; e tudo era edificado de maneira que uma família que
observava as leis sabia que as leis a protegiam.
Governos
eram formados, governos com líderes e anciãos. Um homem inteligente
descobria logo que sua inteligência era de utilidade nos
acampamentos; um homem ignorante não conseguia impor sua ignorância
ao mundo. E uma espécie de seguro desenvolvia-se nessas noites. Um
homem que tinha o que comer alimentava outro que nada tinha, e dessa
maneira assegurava comida para si próprio para quando suas reservas
se esgotassem. E quando uma criança morria, uma pequena pilha de
moedas juntava-se à porta da tenda dos pais, pois que uma criança
tem que ter um enterro condigno, já que nada obteve da vida. Um
adulto podia ser sepultado em vala comum; uma criança, nunca.
Certos
requisitos naturais eram indispensáveis para a construção de um
mundo: água, a margem de um rio, uma correnteza, uma fonte ou mesmo
um encanamento sem vigilância. Era indispensável certa quantidade
de terra plana, onde as tendas pudessem ser armadas, um pouco de
galhos secos ou lenha para fazer fogueiras. Se existisse perto do
local um depósito de lixo, tanto melhor, pois que nesses lugares
sempre se podem achar coisas úteis: panelas furadas, uma grade de
chaminé para proteger o fogo e latas de conserva que poderiam servir
de panelas e pratos.
E os
mundos eram construídos à noite. Os homens, vindos da estrada,
construíam-nos com as suas tendas, seus corações e seu cérebro.
Pela
manhã, as tendas eram desarmadas, as lonas dobradas, as estacas
amarradas umas às outras nos estribos dos carros; as camas e os
utensílios de cozinha arrumados nos veículos. E à medida que as
famílias se moviam rumo ao Oeste, a técnica da construção de um
lar à noite e sua destruição pela manhã tornava-se fixa; assim, a
tenda enrolada tinha o seu lugar certo, os utensílios de cozinha
eram contados antes de serem guardados em suas caixas. E à medida
que os veículos se moviam rumo ao Oeste, cada membro da família
sabia qual era o seu lugar, quais os seus deveres, de maneira que
cada membro da família, velhos e moços, tinha o seu lugar
determinado nos veículos; de maneira que nas noites extenuantes e
quentes, quando os veículos chegavam aos acampamentos, cada membro
de família sabia o que tinha a fazer e fazia-o sem esperar
instruções: as crianças juntavam lenha ou carregavam água, os
homens armavam as tendas e descarregavam as camas dos veículos, as
mulheres preparavam a comida e cuidavam de tudo enquanto a família
comia. E isso era feito sem palavras de comando. As famílias, cujas
fronteiras eram um sítio de dia e uma casa de noite, mudaram suas
fronteiras. Sob a prolongada e quente luz do sol, mantinham-se em
silêncio nos veículos que as levavam para o Oeste; mas quando o sol
desaparecia, uniam-se ao primeiro agrupamento que encontravam.
Assim
modificavam elas a sua vida social — modificavam como só o homem,
em todo o Universo, sabia modificar. Não mais havia sitiantes,
fazendeiros; havia era homens que emigravam. E os pensamentos, os
planos, os prolongados silêncios que, até então, recaíam sobre o
campo, mudavam-se agora para as estradas, para a distância, para o
Oeste. O homem que antes pensava em hectares pensava agora em
quilômetros. E seus pensamentos e suas preocupações não mais
limitavam à chuva, ao vento, à poeira e à sua fé no resultado das
colheistas... Seus olhos vigiavam os pneus, seus ouvidos escutavam o
ronco do motor e suas preocupações concentravam-se em torno do
óleo, da gasolina, da fina película de borracha que se ia gastando
entre as rodas e o chão. Pois que uma roda de engrenagem partida
resultava em tragédia. A água à noite e a comida no fogo eram as
únicas aspirações. A saúde era indispensável para o
prosseguimento da viagem, era a força necessária, o espírito
necessário para prosseguir. A vontade antecipava-lhes os passos, e o
medo, que antes só era provocado pelas secas e inundações, era
despertado agora por tudo que pudesse opor barreira ao avanço para o
Oeste.
A hora de
acampar tornou-se uma só: acampavam ao fim de cada dia de viagem.
E nas
estradas o pânico dominava algumas famílias, e essas famílias
viajavam noite e dia; quando paravam era para dormir nos próprios
veículos e continuarem depressa a viagem para o Oeste. Seu desejo de
se fixar, era tão grande que eles viravam as faces para o Oeste e
viajavam e viajavam sem cessar, forçando os motores superaquecidos.
Mas a
maioria das famílias aceitava a mudança e se adaptava rapidamente à
nova maneira de viver. E quando o sol tombava no horizonte...
É hora
de se arranjar um lugar pra acampar.
É. Ali
adiante já tem umas tendas.
O veículo
encostava à beira da estrada e parava, e, porque os outros chegaram
antes, era preciso usar-se de certa cortesia. E o homem, o chefe da
família, debruçava-se do carro:
A gente
pode pernoitar aqui, hein?
Pois não.
Muito prazer. De que estado são?
Do
Arkansas.
Do
Arkansas? Pois olha, ali adiante, na quarta tenda daqui para lá,
mora gente do Arkansas.
É mesmo?
E a
pergunta mais importante: Que tal a água?
Bom, não
é lá grande coisa, tá meio suja, mas tem bastante.
Bom,
muito obrigado, hein?
Não tem
de quê.
Mas a
cortesia é necessária, indispensável. O veículo anda aos
solavancos até a última tenda e para. Aí todos descem, fatigados,
a espreguiçar os músculos rígidos da viagem. Depois, a nova tenda
é armada, as crianças mais novas vão buscar água e as mais velhas
tratam de juntar ramos secos e gravetos para o fogo. O fogo é aceso
e a comida é posta para cozinhar ou fritar. Os que tinham chegado
antes acercam-se dos novos, interrogam-nos sobre de que estado são,
e muitas vezes amigos e outras vezes até parentes se descobrem.
É de
Oklahoma? De que cidade?
Cherokee.
Puxa,
pois eu tenho parentes ali! Conhece os Allen? Em Cherokee tem Allen à
beça. Conhece os Willy?
Se
conheço!
E uma
nova unidade estava formada. O crepúsculo avançava, mas antes que
as trevas chegassem a nova família já era integrante do
acampamento. Já haviam sido trocadas palavras com todas as outras
famílias. Era gente conhecida, gente boa.
Conheci
os Allen em toda minha vida. Simon Allen, o velho Simon, vivia
encrencando com a primeira mulher dele. Ela era de Cherokee. Uma
beleza, bonita!... que nem um potro negro.
Se era! E
o filho dele, aquele que casou com uma Rudolph, lembra? Pois, é como
eu disse: tão se dando muito bem. Parece que moram em Enid, agora.
É o
único dos Allen que tá bem de vida. Tem uma oficina.
Quando a
água já tinha sido trazida e a lenha cortada, as crianças
caminhavam acanhadas, cautelosas, entre as tendas. E recorriam a uma
complicada mímica para travarem conhecimento. Um menino parava perto
de outro e apanhava uma pedra, examinava-a bem, cuspia-lhe em cima e
limpava-a, ficando a olhá-la tanto tempo que o outro não podia
aguentar sem perguntar:
Que é
que cê tem aí?
Nada. Uma
pedra. Era a resposta, como que casual.
Então
porque é que cê tá olhando tanto pra ela?
Acho que
tem ouro dentro.
Como é
que ocê sabe? O ouro dentro de uma pedra não brilha, é preto.
Ora, todo
o mundo sabe disso.
Aposto
que não é ouro e ocê pensou que era.
Que nada.
Eu conheço ouro. Meu pai já achou ouro à beça e me disse como é
que a gente podia encontrar.
Seria bom
descobrir um pedaço de ouro.
Puuuxa!
Ia era comprar um puxa-puxa grande como o diabo!
Meu pai
não deixa eu dizer os nomes feios, mas eu digo assim mesmo.
Eu
também. Vamo até o riacho.
E também
as meninas faziam conhecimento e exibiam pudicamente seus encantos
nascentes. As mulheres trabalhavam junto ao fogo e apressavam-se por
saciar a fome dos estômagos vazios da família — carne de porco,
quando havia dinheiro bastante, batatas e cebola. Panqueca ou pão de
centeio, com bastante molho em cima. Filés, bifes e uma xícara de
chá preto, amargo. Sonhos fritos na banha, quando o dinheiro era
curto, sonhos tostados e crocantes, regados com molho.
As
famílias ricas ou perdulárias comiam feijão e pêssego em
conserva, pães e bolos de confeitaria, mas comiam escondidas em suas
tendas, pois parecia de mau gosto servirem-se de tanta coisa boa
diante de todos. E, apesar disso, as crianças que comiam sonhos
fritos sentiam no ar o aroma das refeições e adivinhavam-nas e
sentiam-se infelizes.
Terminada
a refeição, caía a noite e, então, reuniam-se os homens para
conversar.
E eles
falavam das terras que tinham deixado atrás de si. Não sei como vai
ser, diziam eles. Este país tá por conta do diabo.
Vai
endireitar outra vez, mas aí a gente já não estará vivo pra ver.
Um
sujeito que trabalhava pro capataz me disse: vocês deixaram a terra
cheia de barrancos. Se tivessem arado a terra em círculos não
teriam feito barrancos. Nunca tive chance de tentar fazer isso. O
trator não dá a volta no terreno, faz sempre um sulco reto de seis
quilômetros sem parar, e se for pra fazer em círculo, só Jesus
Cristo em pessoa!
Quem
sabe, pensavam eles, a gente pecou e não sabia.
E eles
falavam com brandura de seus lares antigos: havia uma cisterna
debaixo da roda do moinho. A gente sempre botava o leite lá dentro,
que era pra fazer nata, e também as melancias pra gelar. Quando
fazia um calor de rachar, lá na cisterna era um fresco bom como quê.
Ali a gente abria uma melancia e quase não podia comer ela de tão
fria que tava.
E cada um
contava as tragédias que o haviam afligido: tinha um irmão, o
Charley, louro que nem uma espiga de milho e grandalhão. Sabia tocar
harmônica que era uma beleza. Um dia tava limpando os sulcos do
arado. Bom, de repente uma cascavel deu o bote bem junto dele, e os
cavalos levaram um susto e as grades do arado espetaram a barriga
dele e arrebentaram a cara dele toda. Foi uma coisa horrível.
Falavam
sobre o futuro: só queria saber como é a vida lá no Oeste.
Bom,
pelas figuras que a gente viu até parece bem bonito aquilo lá. Eu
vi uma linda, que parecia fazer calor e tinha umas nogueira e uns pés
de groselha... e no fundo tinha montanhas altas que tinha neve nos
picos. Era uma figura bem bonita.
Basta a
gente arrumar trabalho. Nunca faz frio, nem mesmo no inverno. As
crianças podem ir sem roupa quente na escola. Agora vou cuidar pra
que meus filhos não percam nenhuma aula. Eu sei ler, mas não sei
tão bem pra encontrar prazer na leitura como aqueles que sempre ia
na escola.
E talvez
um homem puxasse seu violão e sentasse sobre um caixote, em frente a
uma tenda e tocasse. Todos no acampamento se juntavam ao redor dele,
atraídos pela música. Muita gente sabe tocar violão, mas talvez
esse homem fosse um artista de verdade. E aí tudo se torna
diferente: os tons baixos ressoam, enquanto a melodia corre a
passinhos miúdos pelas cordas. Dedos pesados e dedos que martelam o
braço do violão. O homem tocava e os outros iam se reunindo à
volta dele até que o círculo ficava fechado, e depois ele cantava
“Ten-Cent Cotton and Forty-Cent Meat”. E o círculo de homens
fazia-lhe coro, em tom baixo. E ele cantava “Why Do You Cut Your
Hair, Girls?” E a roda cantava. Lançava-se depois a uma canção
saudosa: “I’m Leaving Old Texas”, a lúgubre canção que era
entoada antes da chegada dos espanhóis, só que então a letra era
em dialeto indígena.
E agora o
grupo já formava uma unidade, uma coisa coesa, de maneira que na
escuridão olhavam para dentro de si mesmos os olhos daquela gente
toda, e seu pensamento esvoaçava para outras épocas e sua
melancolia era reconfortante qual o descanso ou o sono. Ele cantava o
“McAlester Blues” e depois, para agradar aos velhos, entoava
“Jesus Calls me to His Side”. As crianças sentiam sono com a
música e iam para as tendas e adormeciam e as canções as
acompanhavam em seus sonhos.
E pouco
depois o homem do violão deixava de tocar e bocejava. Boa noite,
pessoal, dizia ele.
E eles
murmuravam: boa noite.
E todos
eles sentiam o desejo de saber tocar violão, porque isso lhes
parecia maravilhoso. E aí eles iam para a cama, e o acampamento
mergulhava no silêncio. E as corujas esvoaçavam por entre as
tendas, ao longe os coiotes uivavam e gambás caminhavam pelo
acampamento à procura de algo que pudessem comer: gambás
bambaleantes, sem-vergonha que de nada tinham medo.
A noite
passou, e aos primeiros raios da alvorada as mulheres deixaram as
tendas, acenderam o fogo e puseram água do café a ferver. E os
homens acordaram também e conversavam em voz baixa na penumbra.
Quando se
cruza o rio Colorado chega-se ao deserto, dizem eles. Toma cuidado
que é pra não ter um enguiço no deserto. Leva bastante água, que
é pra ficar garantido se acontecer alguma coisa.
Nós vamo
viajar de noite.
Nós
também. Senão a gente acaba até com a alma ressequida.
As
famílias comiam depressa, e os pratos eram enxaguados e limpos com
um pano. Depois as tendas eram desarmadas. Todos tinham pressa. E
quando o sol surgia o acampamento já estava vazio, e somente
restavam seus vestígios. E o lugar estava pronto pra receber um novo
mundo, numa nova noite.
Mas ao
longo da estrada os veículos dos emigrantes avançavam qual
percevejos, e a estreita faixa de concreto estendia-se por
quilômetros à sua frente.
John
Steinbeck, in As vinhas da ira
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