E
daí, não; ele resume as reflexões que fiz no dia seguinte ao
Quincas Borba, acrescentando que me sentia acabrunhado, e mil outras
coisas tristes. Mas esse filósofo, com o elevado tino de que
dispunha, bradou-me que eu ia escorregando na ladeira fatal da
melancolia.
– Meu
caro Brás Cubas, não te deixes vencer desses vapores. Que diacho! é
preciso ser homem! ser forte! lutar! vencer! brilhar! influir!
dominar! Cinquenta anos é a idade da ciência e do governo. Ânimo,
Brás Cubas; não me sejas palerma.
Que
tens tu com essa sucessão de ruína ou de flor a flor? Trata de
saborear a vida; e fica sabendo que a pior filosofia é a do
choramingas que se deita à margem do rio para o fim de lastimar o
curso incessante das águas. O ofício delas é não parar nunca;
acomoda-te com a lei, e trata de aproveitá-la.
Vê-se
nas menores coisas o que vale a autoridade de um grande filósofo. As
palavras do Quincas Borba tiveram o condão de sacudir o torpor moral
e mental em que andava. Vamos lá; façamo-nos governo. Crê-lo-eis
pósteros? Eu não havia intervindo até então nos grandes debates.
Cortejava a pasta por meio de rapapés, chás, comissões de votos; e
a pasta não vinha. Urgia apoderar-me da tribuna.
Comecei
devagar. Três dias depois, discutindo-se o orçamento da Justiça,
aproveitei o ensejo para perguntar modestamente ao ministro se não
julgava útil diminuir a barretina na guarda nacional. Não tinha
vasto alcance o objeto da pergunta; mas ainda assim demonstrei que
não era indigno das cogitações de um homem de Estado; e citei
Filopêmen, que ordenou a substituição dos broquéis de suas
tropas, que eram pequenos, por outros maiores, e bem assim as lanças,
que eram demasiado leves; fato que a história não achou que
desmentisse a gravidade de suas páginas. O tamanho das nossas
barretinas estava pedindo um corte profundo, não só por serem
deselegantes, mas também por serem anti-higiênicas. Nas paradas, ao
sol, o excesso do calor produzido por elas podia ser fatal. Sendo
certo que um dos preceitos de Hipócrates era trazer a cabeça
fresca, parecia cruel obrigar um cidadão, por simples consideração
de uniforme, a arriscar a saúde e a vida, e consequentemente o
futuro da família. A Câmara e o Governo deviam lembrar-se que a
Guarda Nacional era o anteparo da liberdade e da independência, e
que o cidadão, chamado a um serviço gratuito, frequente e penoso,
tinha direito a que se lhe diminuísse o ônus, decretando um
uniforme leve e maneiro. Acrescia que a barretina, por seu peso,
abatia a cabeça dos cidadãos, e a pátria precisava de cidadãos
cuja fronte pudesse levantar-se altiva e serena diante do poder; e
conclui com esta ideia; o chorão, que inclina os seus galhos para a
terra, é árvore de cemitério; a palmeira, ereta e firme, é árvore
do deserto, das praças e dos jardins.
Vária
foi a impressão deste discurso. Quanto à forma, ao rapto eloquente,
à parte literária e filosófica, a opinião foi só uma;
disseram-me todos que era completo, e que de uma barretina ninguém
ainda conseguira tirar tantas ideias. Mas a parte política foi
considerada por muitos deplorável; alguns achavam o meu discurso um
desastre parlamentar; enfim, vieram dizer-me que outros me davam já
em oposição, entrando nesse número os oposicionistas da câmara,
que chegaram a insinuar a convivência de uma moção de
desconfiança. Repeli energicamente tal interpretação, que não era
só errônea, mas caluniosa, à vista da notoriedade com que eu
sustentava o Gabinete; acrescentei que a necessidade de diminuir a
barretina não era tamanha que não pudesse esperar alguns anos; e
que, em todo caso, eu transigiria na extensão do corte,
contentando-me com três quartos de polegada ou menos; enfim; dado
mesmo que a minha ideia não fosse adotada, bastava-me tê-la
iniciado no parlamento.
O
Quincas Borba, porém, não fez restrição alguma. Não sou homem
político, disse-me ele ao jantar; não sei se andaste bem ou mal;
sei que fizeste um excelente discurso. E então notou as partes mais
salientes, as belas imagens, os argumentos fortes, com esse
comedimento de louvor que tão bem fica a um grande filósofo;
depois, tomou o assunto à sua conta, e impugnou a barretina com tal
força, com tamanha lucidez, que acabou convencendo-me efetivamente
do seu perigo.
Machado
de Assis, in Memórias póstumas de Brás Cubas
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