terça-feira, 3 de setembro de 2019

Escolas e mestres

O capítulo anterior foi uma explicação de uma multidão imensa, ou rebanho de Cachalotes, e também foram mencionadas as causas possíveis dessas grandes aglomerações. Ora, embora às vezes tais multidões sejam encontradas, até os dias de hoje, como vimos, pode-se em algumas ocasiões observar pequenos bandos isolados, de vinte a cinquenta indivíduos. Tais grupos são conhecidos por escolas. Em geral, são de dois tipos: os constituídos quase que só por fêmeas e os que reúnem apenas machos jovens e vigorosos, ou touros, como são conhecidos informalmente.
A escoltar cavalheirescamente o cardume de fêmeas, vê-se sempre um macho adulto, mas não velho; o qual, ao menor sinal de alarme, revela sua galanteria indo para a retaguarda, para dar cobertura à fuga das senhoras. Na verdade, esse cavalheiro é um voluptuoso Otomano, que nada pelo mundo das águas acompanhado de todos os estímulos e carícias de um harém. O contraste entre esse Otomano e as suas concubinas é notável; pois ele é sempre de enormes proporções leviatânicas, ao passo que as damas, mesmo quando adultas, não têm nem um terço do volume de um macho médio. Em comparação, elas são de fato delicadas; e ouso afirmar que suas cinturas não excedem meia dúzia de jardas. Não obstante, não se pode negar que em geral elas sejam hereditariamente en bon point.
É curiosíssimo observar esse harém e o seu sultão em suas indolentes perambulações. Como janotas, estão sempre agitados, numa desocupada busca de diversão. Pode-se encontrá-los na linha do Equador por ocasião do pleno desabrochar da temporada de alimentação, talvez recém-chegados, depois de passar o verão nos mares setentrionais, burlando o cansaço e o calor desagradável do verão. Depois de terem passeado pelo Equador por algum tempo, partem para as águas Orientais, na iminência da estação fresca, e assim evitam a outra temperatura exagerada do ano.
Quando avança serenamente em suas viagens, se alguma visão suspeita ou estranha se lhe depara, meu Senhor Cachalote mantém olhos atentos à sua interessante família. Se um jovem Leviatã insolente vier naquela direção sem autorização e tomar a liberdade de se aproximar com intimidade de alguma das damas, com que fúria prodigiosa o paxá o ataca e o expulsa dali! Seria ótimo mesmo se fosse permitido aos jovens libertinos sem princípios como ele invadir a santidade da bem-aventurança familiar; no entanto, não importa o que o paxá faça, não consegue manter o mais notório Lotário longe de seu leito; pois, ai!, todos os peixes se deitam juntos. Como em terra, as damas muitas vezes provocam os duelos mais terríveis entre seus admiradores rivais; exatamente como ocorre com as baleias que às vezes travam batalhas mortais, e tudo por amor. Esgrimem com as compridas mandíbulas inferiores, que às vezes se travam, e assim, combatem pela supremacia, como os alces quando entrelaçam os seus chifres numa justa. Não poucas são capturadas com as cicatrizes profundas desses encontros: sulcos na cabeça, dentes quebrados, barbatanas fatiadas e, em alguns casos, mandíbulas torcidas ou deslocadas.
Mas, supondo que o invasor da bem-aventurança doméstica resolva fugir à primeira investida do senhor do harém, então é muito divertido observar esse senhor. Insinua-se gentilmente, com o seu vulto enorme no meio delas e ali festeja por algum tempo, na vizinhança sedutora do jovem Lotário, como o piedoso Salomão prestando seu culto devoto, em meio às suas mil concubinas. Caso outras baleias estejam à vista, raras vezes os pescadores dão caça a um desses grão-turcos; pois os grão-turcos são muito pródigos em força e têm, portanto, pouca untuosidade. Quanto aos filhos e filhas que engendram, pois bem, esses filhos e filhas devem cuidar de si mesmos; no máximo, contando com a ajuda materna. Pois, como outros amantes onívoros e errantes, de quem aqui se poderia dizer os nomes, ao meu Senhor Cachalote não apraz o quarto das crianças, embora lhe apraza a alcova; e assim, por ser um grande viajante, espalha bebês anônimos pelo mundo; todos exóticos. Na hora propícia, contudo, quando declina o ardor da juventude; quando os anos e as depressões aumentam; quando a reflexão acarreta pausas solenes; em suma, quando a lassidão generalizada toma conta do turco saciado; então um amor pelo descanso e pela virtude suplanta o amor pelas donzelas; nosso Otomano entra no estágio da impotência, do arrependimento e das repreensões da vida, e repudia e dispersa o harém, tornando-se uma alma exemplar e rabugenta, e segue sempre sozinho pelos meridianos e paralelos, fazendo as suas orações e prevenindo os jovens Leviatãs contra os seus erros de amor.
Ora, como o harém de baleias é chamado pelos pescadores de escola, assim o amo e senhor dessa escola é conhecido tecnicamente por mestre. Não é portanto muito próprio, embora deveras irônico, que, depois de frequentar a escola, ele vá para o exterior apregoar não o que aprendeu, mas o desatino ali contido. O seu título, mestre, poderia derivar naturalmente do nome dado ao harém, mas há conjecturas de que o homem que assim batizou o Cachalote Otomano teria lido as memórias de Vidocq e sabia que espécie de mestre da zona rural o famoso Francês foi nos seus dias de juventude, e a natureza das aulas secretas que dava a alguns de seus discípulos.
A mesma reclusão e o isolamento a que o mestre Cachalote se retira na idade avançada se dá com todos os velhos Cachalotes. Quase universalmente uma baleia solitária – como se chama o Leviatã sozinho – significa uma baleia velha. Como o venerável Daniel Boone com suas barbas de musgo, o Cachalote não admitirá ninguém ao seu lado a não ser a própria Natureza; e toma-a por esposa no agreste das águas, a ela, que é a melhor das esposas, embora guarde tantos segredos melancólicos.
Os cardumes compostos apenas por machos jovens e vigorosos, previamente mencionados, fazem um forte contraste com os haréns. Pois, enquanto essas fêmeas são tipicamente tímidas, os machos jovens, ou touros de quarenta barris, como os chamam, são de longe os Leviatãs mais belicosos e proverbialmente os mais perigosos de deparar; excetuando as assombrosas baleias grisalhas às vezes encontradas, e estas lutam como demônios implacáveis, exasperadas pela gota penosa.
Os cardumes de touros de quarenta barris são maiores que os haréns. Como uma multidão de jovens colegiais, são cheios de combatividade, de alegria e de maldade, saltando ao redor do mundo com uma velocidade tão afoita e travessa que nenhum agente cauteloso lhes faria um seguro, assim como não o fazem para um jovem desordeiro em Yale ou em Harvard. Mas depressa desistem dessa turbulência, e, quando chegam quase à idade adulta, dispersam-se e cada um busca se estabilizar, ou seja, encontrar o seu harém.
Um outro ponto de diferença entre os cardumes de machos e fêmeas é ainda mais característico dos sexos. Suponha que você atingiu um touro de quarenta barris… pobre coitado! Todos os companheiros dele o abandonam. Mas, se atingir um membro de um harém, as companheiras delas nadam ao redor com todos os sinais de preocupação, e às vezes chegam tão perto e permanecem tanto tempo, que se transformam elas mesmas em presas.
Herman Melville, in Moby Dick

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