quinta-feira, 12 de setembro de 2019

Apanhar a terra com as mãos

D. Anselmo falava aos padres no mosteiro.
Pelos cálculos feitos, de direção e possível extensão da galeria subterrânea, temos aí labor de uns poucos anos, se formos diligentes e suarmos dez horas por dia naquela pedra, ou de muitos e muitíssimos anos, se for descansada e ronceira nossa atividade. Quero propor aqui à congregação que o chefe dos trabalhos, o homem que há de estar de picareta na mão durante os próximos anos, seja nosso irmão padre Hosana.
A indicação do nome de Hosana foi longamente aplaudida pela congregação, que ria à socapa, enquanto d. Anselmo, olhos cintilantes, cofiava copiosamente a barba. Nando também riu, quando viu Hosana, que se acercava dele, depois da reunião. Hosana estava ainda trêmulo de raiva.
Eu hei de dizer a todos os visitantes do mosteiro que d. Anselmo descobriu uma tênia no edifício, um pênis subterrâneo, um oleoduto de esperma de frade.
Você não dirá nada disto, Hosana. O melhor é reconhecer que o padre superior descobriu, ou desconfiou, que o informante da imprensa era você, e inventou um castigo exemplar.
Bem quando eu sentia as doçuras da vingança — disse Hosana. — Por que será que eu sempre perco, Nandinho?
Nando sentiu uma súbita onda de piedade.
Hosana, pensa um pouco em Deus, a quem você devia servir.
Pode deixar que eu penso — disse Hosana. — Caim também pensava. Inclusive tinha Deus na frente dele, como eu tenho o barbaças. Só não tinha um Smith & Wesson, calibre 32.

Você acha que eu sou muito tirano? Quer dizer, em relação a você — disse Levindo.
Você, meu bem? — disse Francisca. — O que é isso? Quem é que te acusou disto?
Levindo deu um discreto puxão na ponta dos cabelos de Winifred, como a chamar a atenção dela para o que dizia Francisca e ao mesmo tempo pedir-lhe que não se metesse. Estavam na camioneta, a caminho do Engenho do Meio. Leslie ao volante, Nando na ponta, Winifred entre os dois. No banco de trás Francisca aninhada nos braços de Levindo.
Eu também não acho que sou tirano não — disse Levindo —, muito ao contrário. Eu me considero o próprio arauto de todas as liberdades possíveis e imagináveis.
Houve um silêncio e Nando olhou com íntimo fervor e — não, inveja não, graças a Deus, e nem sequer desejo de estar no lugar de Levindo pois tinha a vida dedicada a amores mais altos — com uma espécie de obscura saudade as caras quase confundidas de Francisca e Levindo. Dos cajueiros que se espalhavam aos dois lados da estrada vinha um cheiro bom. O carro ia em marcha tranquila. Não obtendo resposta Francisca insistiu:
Quem foi que disse?
Não, ninguém. Mas me lembrei disto porque quero te pedir uma coisa. Caso eu não possa ir, é claro.
Levindo tomou as mãos de Francisca nas suas, estudou os dedos longos, depois revirou as palmas.
Vai ler minha sorte? — disse Francisca.
Levindo pôs o rosto entre as palmas e Francisca sorrindo puxou o rosto dele para que se beijassem.
Se você não puder ir aonde, seu doidinho?
Ao Centro Geográfico. Você vai em meu lugar?
O quê? Sozinha pelos matos?
Não, Francisca, tinha graça. Algum dia alguém há de ir, alguma expedição. Você pode dar um jeito, não pode?
Essa é boa. Eu vou para o Xingu e você fica aqui fazendo o quê?
Eu digo se acontecer alguma coisa que me impeça de ir.
Que coisa, Levindo? Deixa de bobagem.
Digamos que eu esteja preso, por exemplo. Ou foragido da polícia, escondido em algum canto. Você vai?
Vou, meu amor, vou aonde você quiser. Mas francamente, espero que você venha comigo.
Se eu não puder, quero que você apanhe a terra com suas mãos. É importante. É bom a gente poder dizer às pessoas: “Fui eu que apanhei esta terra.” Ou: “Foi minha noiva que apanhou esta terra. Eu não pude ir.”
Prefiro que você diga: “Fui eu que apanhei esta terra quando estive no Centro Geográfico com minha noiva.”
Eu também prefiro, lógico.
E você vindo comigo apanha a terra. Eu não sujo as mãos.
Puxa — disse Levindo —, o Xingu inteiro está lá para te lavar as mãos.
Vamos juntos — disse Francisca.
Vamos — disse Levindo — mas fica o trato.
Francisca armou em cruz seus indicadores e deu um beijo no encontro dos dois, selando a promessa.
Fica o trato — disse.
Levindo aproveitou enquanto os dedos estavam ainda armados em cruz, beijou-os também.
A vantagem é que se você apanhar a terra com estas mãos, ela já deu flor quando chegar aqui.
Vamos parar com este namoro aí atrás — disse Leslie. — Isto é carro sério.
Antonio Callado, in Quarup

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