Fotograma do filme: As vinhas da Ira, de John Ford
O
pregador estava ajoelhado junto às rodas.
— Posso
ajudar? — perguntou.
— No
momento, não. Mas logo que todo o óleo passar pro balde e eu soltar
os parafusos, vamo tirar o cárter pra fora. Aí eu vou precisar do
senhor.
— Tornou
a meter-se debaixo do carro, trabalhou com a chave de parafuso e
depois foi girando os parafusos com os dedos, afrouxando-os de todo.
Mas não retirou os das duas extremidades para evitar que o cárter
caísse de repente.
— O
chão ainda está muito quente — disse. E acrescentou: — Escuta,
Casy, o senhor tem andado muito quieto esses últimos dias. Por quê,
hem? Quando a gente se encontrou pela primeira vez, o senhor me fez
um discurso a cada meia hora. E agora leva dois dias sem dizer
palavra. Que é que há? Está farto disto tudo, hem?
Casy
deitou-se de costas e espiou para baixo do carro. O queixo áspero
com sua barba rala estava apoiado nas costas da mão. Seu chapéu,
tombado para trás, cobria totalmente a nuca.
— Já
falei bastante quando era um pregador — disse.
— É,
mas depois disso o senhor também falava sempre alguma coisa.
— Tenho
andado preocupado, muito preocupado — disse Casy. — Enquanto
ainda era um pregador, não sabia naturalmente, mas o fato é que
tenho perdido muito tempo por aí. Já que não sou mais pregador,
acho que agora devo me casar. Sinto o desejo da carne, sabe, Tommy?
— Eu
também — disse Tom. — No dia em que saí de McAlester tava
completamente alucinado. Aí arrumei uma mulher, uma mulher da vida,
como se ela fosse um coelho. Nem queira saber o que aconteceu; tenho
até vergonha de dizer.
Casy
riu.
— Calculo.
Uma vez me meti no mato e estive muito tempo por lá. Quando voltei
aconteceu a mesma coisa.
— É
mesmo? — perguntou Tom. — Bom, eu sei que economizei o meu
dinheiro e ela não se queixou. Ela pensou que eu era louco. Eu sei
que tinha que dar alguma coisa a ela, mas só tinha cinco dólares.
De mais a mais, ela nem quis dinheiro... Bom, agora o senhor pode
ajudar. Vai aí pra baixo e se agarra a qualquer coisa. Aí o senhor
tira esse parafuso e eu tiro o outro, assim fica mais fácil. Cuidado
com o mancal! Precisamos fazer com que ele saia inteirinho. Esses
Dodges antigos só têm quatro cilindros. Uma vez eu já desmontei um
carro assim. Agora... cuidado, bem devagar... segure firme. Abra as
juntas em cima, lá onde ainda estão presas... Atenção!... Isso,
muito bem. — O tanque de óleo estava no chão, entre os dois, e
ainda havia um pouco de óleo no fundo. Tom meteu a mão num dos vãos
e tirou dele alguns pedaços de metal. — Aqui estão — disse, e
ficou-os girando entre os dedos. — O eixo está solto. Arraste-se
um pouco pra trás, até achar a manivela e vai girando ela até eu
dizer pra parar.
Casy
levantou-se, achou a manivela e a segurou.
— Pronto?
— Sim...
devagar, agora... mais um pouco... mais um pouquinho... aí!
Casy
ajoelhou-se e tornou a olhar por baixo do carro. Tom fez a biela
ressoar de encontro ao eixo.
— É
aqui que está quebrado — disse.
— Que
é que você acha? Qual é a causa?
— O
diabo é que sabe! Esse calhambeque já rodou mais de treze anos. Tá
com noventa e cinco mil quilômetros marcando, o que quer dizer que
correu pelo menos duzentos mil. Deus sabe quantas vezes eles já
desmarcaram o hodômetro. Esquenta muito depressa, também. Acho que
deixaram o nível de óleo muito baixo. E aí, adeus... — Puxou
para fora as cavilhas e assestou a chave de fenda no mancal da biela.
Começou a girá-lo e a chave escapou da fenda. Um longo corte surgiu
nas costas de sua mão esquerda. Tom examinou-o. O sangue brotava
abundantemente do ferimento, misturava-se com o óleo e pingava no
balde.
— Está
ruim, isto — disse Casy. — É melhor eu continuar, enquanto você
amarra a mão.
— Qual
o quê! Eu nunca fiz reparos num automóvel sem me cortar. Já
aconteceu, nem ligo mais pra isso. — Tornou a assestar a chave de
fenda. — Se ao menos tivesse uma chave curva! — disse, e bateu
com o punho contra o cabo da chave, até que os parafusos afrouxaram.
Tirou-os todos e depositou-os junto com as cavilhas no tanque de
óleo. Depois tirou os pistões para fora e colocou-os com a biela no
cárter. — Graças a Deus! — Ele saiu de baixo do carro e
arrastou consigo o tanque de óleo. Limpou as mãos num pedaço de
pano de aniagem e examinou o corte novamente. — Sangra como quê! —
disse. — Mas vai parar rapidinho; quer ver? — Urinou no chão,
apanhou um punhado da terra embebida de urina e untou com ela o
ferimento. Por um instante, o sangue correu ainda; depois parou. —
É o que há de melhor pra estancar o sangue — disse Tom.
— Um
pouco de teia de aranha faz o mesmo efeito — disse Casy.
— Eu
sei, mas aqui não tem teia de aranha. E mijar a gente sempre pode. —
Tom sentou-se no estribo e examinou o mancal quebrado. — Se a gente
encontrasse agora um Dodge 25 e pudesse comprar uma biela usada e
algumas chapinhas, dava um jeito no carro agora mesmo. O Al deve
estar longe como o diabo.
A
sombra do grande cartaz de beira de estrada tinha já um comprimento
de dois metros. A tarde ia esmorecendo. Casy sentou-se no estribo e
olhou na direção oeste.
— Estamos
quase chegando às montanhas altas — disse ele, e ficou em silêncio
por alguns momentos. Depois continuou: — Tom!
— Sim?
— Tom,
eu tenho olhado os carros que a gente encontrou aí pela estrada,
aqueles que a gente ultrapassou e os que nos ultrapassaram. E tenho
pensado...
— Em
quê?
— Tom,
são centenas de famílias como esta nossa que vão pro Oeste. Eu
reparei. Estás compreendendo? Nenhuma delas para Leste; todas para
Oeste! Não notou isso?
— Notei,
sim...
— Bem,
isso... isso parece até como quando se foge de soldados inimigos. É
como se um povo inteiro estivesse fugindo diante de uma invasão.
— Sim
— disse Tom. — É um povo inteiro que está fugindo. Nós também
estamos fugindo.
— Pois
é. Então, veja só. Suponha que toda essa gente não encontre
trabalho lá.
— Que
leve tudo o diabo! Como é que eu posso saber? — gritou Tom. —
Não faço outra coisa senão botar um pé diante do outro. Já fiz o
mesmo durante quatro anos em McAlester, entrar e sair da cela, entrar
e sair do refeitório. Meu Deus, e eu que pensei que agora ia ser
diferente! Que quando saísse, a coisa mudava! Lá dentro, o sujeito
não pode pensar de outra maneira, senão acaba louco varrido. E
também agora convém não se pensar em coisa nenhuma! —
Aproximou-se de Casy. — Está vendo? Esse mancal aí quebrou. A
gente não sabia que ia quebrar e por isso não teve preocupações.
Agora que está quebrado, vamo tratar de consertar ele. É assim com
todas as outras coisas no mundo. Eu é que não quero me preocupar
com coisa nenhuma. Não quero e nem posso. Este pedacinho de ferro
aqui, está vendo?, pois este pedacinho de ferro é a única coisa
que no momento me preocupa. Só queria saber por que diabo o Al tá
demorando tanto.
Casy
disse:
— Escuta
aqui, Tom... Mas, que inferno! Coisa mais difícil, a gente querer
explicar uma coisa e não conseguir.
Tom
removeu a camada de terra suja que lhe cobria a mão e deixou-a cair
no chão. O ferimento surgiu desenhado com a lama. Ele lançou um
olhar ao pregador.
— O
senhor tá preparando um discurso, não está? Pois vá lá. Eu gosto
de ouvir discursos. O nosso carcereiro também gostava de discursar.
Pra nós tanto fazia, e ele ficava convencido de que era muito
importante.
Casy
coçou os dedos nodosos.
— Alguma
coisa vai acontecer, e o pessoal está com histórias. Essa gente,
essa que bota um pé diante do outro, como você diz, não pensa no
que está fazendo. Está certo. Mas todos eles esticam os pés na
mesma direção. E se você prestar atenção, ouve-os mover-se,
sente-os rastejar, sussurrar, desassossegados. Há coisas que
acontecem sem que toda essa gente em movimento possa perceber, pelo
menos por enquanto. Vai acontecer alguma coisa, alguma coisa que
mudará tudo.
— E,
apesar disso, eu continuo a botar minhas patas na frente uma da outra
— disse Tom.
— Sim,
mas quando você encontrar uma cerca pela frente, tem que pular.
— Pois
é o que eu faço quando encontro uma cerca pela frente.
Casy
suspirou.
— É
o melhor que se pode fazer. Tenho que concordar com você. Mas há
cercas diferentes. Existe gente, como eu, que trepa em cercas que
ainda nem estão barrando o seu caminho. Não depende mais de mim.
John
Steinbeck, in As vinhas da ira
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