quinta-feira, 8 de agosto de 2019

Segunda é o dia obrigatório de compras. O povo deve consumir, para que as fábricas possam fabricar e não haja a insidiosa recessão

Adelaide ficou a noite inteira na poltrona. Vigiando, ou à espera que eu adormecesse e ela pudesse enfaixar minha mão. Suportou com bravura os cigarros, fumei todos. Refumei os tocos, gastei minha cota. A noite toda percebi cochichos, não sei se na sala ou no corredor externo.
Cochilava, acordava, ela não estava lá. E então ouvia os cochichos, ruídos abafados, pensei reconhecer a voz da sua mãe. Ou da vizinha que vive de espanador e vassoura na mão, a lutar contra o pó constante. Cochilava, acordava, ela continuava sentada, eu não sabia se tinha sonhado.
Adelaide sofre. Não devo ter pena, e tenho. Casei-me quando já não gostava mais dela. Não tinha como recuar, estava aferrado a velhos princípios, a coisas como dignidade, palavra empenhada. Namoramos tantos anos, desde adolescentes, quando achei que ela me acompanharia, cresceríamos juntos.
Uma decisão no momento exato; ela me faltou. O medo do não. O fascínio que eu tinha por ele. Estranho mecanismo interno o meu, retardado, funcionando como se houvesse uma diferença de fusos horários. Adelaide era boa amiga, mas eu não precisava ter-me casado com ela. O que pretendo provar agora?
Sempre aceitei este casamento como fato normal, nunca reagi contra. A gente nem sempre faz as coisas que gostaria, mas termina se adaptando a elas. Desde que consinta. O pior é o consentimento. A aceitação passiva do princípio de “que nem tudo na vida é como a gente quer”. Mas tem de ser.
Gostava dela, mas era somente um vácuo dentro da solidão. Nunca preencheu nada, não foi essencial. Pensei muitas vezes nisso. Se ela desaparecer não vou sentir sua falta, tudo continuará igual. Ela não era indispensável. Não é um consolo pensar nisso, me inquieta. Por ela, e por mim.
Minha indiferença serviu para torná-la, aos poucos, mulher amarga e desesperançada. Sem horizontes, nenhuma promessa de futuro. Agora, sem nenhum apoio. Ela tentou construir um lar dentro desta casa. Jamais participei dele, me isolava, parece que não queria me comprometer, me assumir. Para estar em disponibilidade, poder largar tudo a qualquer hora e fugir. Desde moço tenho essa necessidade.
Estar pronto para partir. Não querer nunca o mesmo lugar, renovar-se incessantemente. Escapar de tudo, desprender-se, me atirar. Para longe, encontrar um lugar onde ninguém me encontrasse.
Não penso mais. Sei. Não há mais o longe, o perto. Não há fuga, nem refúgios, tudo foi devassado. Sinto em mim estranha nostalgia. Antiga, muito antiga. Não dos tempos em que meus bisavós furavam o sertão do Mato Grosso, ou do Paraná. Mais para trás. Muito mais. De tempos em que eu ainda não era.
O que faço com a disponibilidade? Sei apenas que, se não fosse o furo na mão e toda essa situação, eu jamais fugiria. Estaria ali, vendo televisão. Olhando Adelaide a costurar um tapete, a limpar o pó dos móveis, a embrulhar calendários, e reclamando dos carecas que batem pedindo comida, água.
Ao descer da cama, bati com o pé no urinol. A urina derramou-se pelo soalho, espalhou-se. Passei um minuto num brinquedo infantil observando as manchas que fazia, desenhos que formava, tentando adivinhar o que podia ser. Árvore, bicho, nuvem, montanha, pedra, navio. Ou então, nada. Formas sem forma.
A mancha se tornou verde, espessa. Sem nenhum contorno. No meio dela, a mover-se, outra mancha, marrom, comprida. Me deixou inquieto, me imobilizou. Tenho medo, dizem que um dos sintomas do enfarte é a imobilidade, principalmente nos braços. Por alguns segundos, a mancha desaparece, vejo a urina.
Adelaide levantou-se. Saiu do quarto sem fechar a porta. Nunca, nos anos de casados, nenhum dos dois deixou a porta aberta quando entrava ou saía. Nenhuma outra pessoa, parente ou não, entrou no quarto, espécie de lugar secreto, refúgio. Santuário nosso, não ultrapassado, inviolado.
Vamos embora logo. Ou não compramos nada hoje – disse ela ao voltar.
Vai você. Não tenho vontade.
Vai você, vai você. É só isso que sabe dizer agora?
E se a gente não for? Precisamos de alguma coisa?
Como? Não quero pensar nisso. A gente já vive tão apertado. Eu não suportaria viver na Marcação. Você viu o que aconteceu com a prima de dona Alcinda! E ela só deixou de comprar duas semanas seguidas porque estava doente. Não, Souza! Vamos, que eles não aceitam desculpas. Nem que seja para trazer um saquinho de sal.
Um inferno sair na segunda-feira. A neblina baixa, as pessoas andando devagar. E o sol. Não há nenhuma sombra para me abrigar, a cabeça arde, como se eu tivesse levado uma tijolada. Na frente de algumas casas, as árvores. Pintadas em grandes painéis plastificados, coloridos. São os Jardins Representados.
Qualquer um pode comprar. Paga por metro quadrado. Costumam colocar diante das janelas, para se ter a impressão que olhamos o verde. Outros, vaidosos, mantêm os painéis de frente para a rua. Sinais de status, são caríssimos, principalmente os tridimensionais. Ou os naturalmente aromáticos.
Adelaide caminha um pouco à frente. Tem vergonha do furo na mão. Claro que tem. Hoje ela me detesta porque resisti ferozmente às faixas, ao bandeide. Para não mortificá-la muito, fico com a mão no bolso, a fim de evitar a curiosidade. Mesmo assim ela está ressentida. Assume e me evita.
O Distrito das Compras é vertiginoso com um calor destes. Os ônibus circulares-consumistas despejam multidões. Os Privados das Compras se amontoam junto às cercas-limites, estendendo a mão com dinheiro, pedindo mercadorias aos que entram. Muita gente vive disso. Fornecer compras ilegais aos Privados.
Os Privados são uma categoria que conseguiu a isenção para o dia de obrigação de consumo. O problema é que, com a isenção, eles têm de se restringir às pequenas lojas, nos próprios círculos em que moram. Não podem se utilizar dos serviços amplos do Distrito de Compras, onde há tudo.
Para ser Privado, basta comprovar o rendimento mínimo anual de treze salários. Acontece que os Privados, às vezes, economizam e correm para as cercas, tentando obter produtos raros. Como as frutas factícias orientais: figos secos, tâmaras, passas. Ou qualquer coisa que não me ocorre.
Ficam gritando, implorando, estendendo dinheiro, vales, enquanto os interceptadores atendem, anotam. Tudo na base da confiança. O interceptador compra e vai levar em casa. Leva mesmo. Age na base dos códigos de ética dos antigos bicheiros, o código que regia o jogo antes do Bicho ser legalizado.
Se o inspetor apanha alguém passando mercadoria sobre a cerca, não se sabe o que pode acontecer. Porque não se encontra mais a pessoa. Penso às vezes que estou vivendo dentro de um sonho, um situação imaginária, surrealista, um balão de gás que pode explodir de um momento para outro.
Vejo, misturados na cerca, os carecas, os despelancados e também uma gente que nunca tinha visto antes. Têm os olhos quase fechados, cheios de remelas, como se os globos estivessem inflamados. Me dão mal-estar. Todos se comprimem, gritam. Sinto-me um privilegiado, porém isso não me afeta.
O Distrito é um tormento. As pessoas parecem gostar. Riem, se divertem, se encontram, bebem, falam alto, entram nas lojas, amontoam-se. Há uma atração neste Distrito, não há dúvida. As galerias são frescas, acondicionadas, luzes naturais filtram-se através dos telhados de vidro.
O prédio a que temos direito ainda não atingiu a Cotação Limite. A fila quase não para, a entrada é contínua. Quem não tem direito não vem mais. No começo, as pessoas tentavam entrar, furar filas, provocavam congestionamentos e tumultos. Agora, desistiram. Em pouco tempo, estamos dentro.
Iluminadas por luz natural, as lojas não têm teto. Economia de eletricidade. Já se foi o tempo dos grandes luminosos, das orgias de placas a néon. Quando a última hidroelétrica parou por falta de água, o Reator Nuclear das Caatingas começou a funcionar, fornecendo energia para o país inteiro.
Houve problema com as linhas de distribuição por cima da reservas multi-internacionais. O Esquema não conseguiu autorização, tiveram de fazer linhas subterrâneas, bem fundo no solo, para não prejudicar a fertilidade das terras estrangeiras. Custou caríssimo; impuseram novos impostos.
Pensei em comprar uns cheiros – disse Adelaide.
Vamos procurar um Cheiro de Fim de Tarde.
E também um de Água na Terra Seca. Era tão bom. Um dia quente, o pó, vinham aqueles pingos, batiam forte, o pó subia, o cheiro também.
Estão em falta – disse o caixeiro.
Do que tem?
Folha Seca, Folha Podre Úmida, Eucalipto no Fim da Tarde, Coqueiro, Flores, Verduras, Café Torrado, Papel Novo, Algodãozinho, Chá Mate, Bosta de Vaca, Leite Queimado na Chapa. Pão de Forno, Serraria Depois de Cortar Tronco de Cedro, Alfazema, Jasmim, Igreja na Hora da Bênção, Sanitário Limpo de Cinema, Moça que Tomou Banho com Sabonete, Roupa Passada, Jatobá Aberto, Frango Assando, Jaca, Hálito de Criança Após Escovar o Dente. E mais uns duzentos.
Nacionais?
Só o Bosta de Vaca, o Roupa Passada, o Gás de Escapamento e o Quarto Fechado Há Longo Tempo.
Compramos três sprays. Leite Queimado na Chapa, Serraria Depois de Cortar Tronco de Cedro e Carvão Queimado na Fornalha de Locomotiva. Meu avô forneceu muita lenha para a estrada, posso reconstituir o cheiro do vapor a hora que quiser. Ficava à beira da linha enquanto carregavam o Tender.
Você viu? Coisa horrível.
O quê?
Os mutilados!
Não, onde?
Dobraram por aquela galeria. Não tinham braços, um buraco só no lugar do nariz, orelhas imensas. Pareciam bichos. O engraçado é que eram absolutamente iguais, os dois. Como deixam entrar?
Na Boca de Distrito, o fiscal carimbou “Compras Cumpridas”. Salvos por mais uma semana. Enquanto esperávamos o ônibus, eu tinha a mão em pala diante dos olhos. O sol, atravessando o furo, produzia no chão um círculo de luz, mais mancha que círculo, de tal modo a sobra estava diluída.
Movia a mão para cima e para baixo. O círculo aumentava, diminuía. De cócoras, brinquei com a luz. Ela atravessava a minha mão. Gostei dessa imagem, a luz que traspassa minha mão e forma um símbolo. Claro, aquele pequeno círculo podia ser um meio, um sinal transmissor. Ter um sentido. Ser aviso.
Nas catedrais, muitas vezes, eu passava horas observando o lento caminhar da luz através dos orifícios das abóbodas. Até que chegava o momento em que o sol, batendo direto sobre o altar, iluminava o sacrário. Devia haver naquilo mais do que uma coincidência. Era uma intenção deliberada.
Podia ser homenagem, a luz aos pés do divino. Podia ser a confirmação de que Deus é luz. Também podia representar uma mensagem qualquer que os iniciados entenderiam. Mensagem que atravessaria milênios e seria sempre captada, não importa em que época ou tempo. Essa história de iniciados me revolta.
Haveria sempre homens capazes de decifrar alguma coisa contida neste círculo de luz. Sensação de conforto e paz. Isso eu sentia naquelas catedrais europeias, sentado no banco, contemplativo por horas e horas, a observar o movimento tênue, imperceptível daquela luz em direção ao sacrário.
Harmonia em busca de um objetivo. Sempre alcançado. Todos os dias, há séculos, a luz, variável segundo a época, percorria o seu trecho, batendo primeiro no chão da nave. Continuando, alcançava o altar na hora determinada. Engraçado, agora penso naquilo com uma impressão desagradável: no imutável que representava.
Ao mesmo tempo, era a certeza do imutável nas grandes coisas do universo. No seu funcionamento, na sua estrutura. Será que ainda hoje aquela luz percorre um trecho idêntico, à mesma hora, com igual intensidade? Será que esse imutável já não foi alterado? Daria tudo para estar de novo nas catedrais.
Há várias noções de imutáveis, portanto. A primeira, ampla, geral, necessária, que é do próprio universo, intocável. A outra, dos pequenos sistemas que nós mesmos construímos e que necessitam de alterações, ajustes de tempos em tempos, a fim de se adaptarem à ordem constituída, maior, soberana.
Ou me confundo? Não sei. Ando sem clareza em relação à situação. Onde fica o homem dentro disso tudo? Qual a sua função dentro da natureza, do universo? Ele rege ou é regido? E esse esforço tremendo que o homem fez durante séculos para ser o dominador, o que detém o poder?
Teria o homem ido além, ousando alterar a estrutura interna do universo? Modificá-la, sem antes sequer compreender, ou dominar, as pequenas estruturas que somadas formam o nosso mundo? Quer dizer: ele ainda não estava preparado para a grande modificação e cometeu um grande erro. Em algum ponto.
Ignácio de Loyola Brandão, in Não verás país nenhum

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