Adelaide
ficou a noite inteira na poltrona. Vigiando, ou à espera que eu
adormecesse e ela pudesse enfaixar minha mão. Suportou com bravura
os cigarros, fumei todos. Refumei os tocos, gastei minha cota. A
noite toda percebi cochichos, não sei se na sala ou no corredor
externo.
Cochilava,
acordava, ela não estava lá. E então ouvia os cochichos, ruídos
abafados, pensei reconhecer a voz da sua mãe. Ou da vizinha que vive
de espanador e vassoura na mão, a lutar contra o pó constante.
Cochilava, acordava, ela continuava sentada, eu não sabia se tinha
sonhado.
Adelaide
sofre. Não devo ter pena, e tenho. Casei-me quando já não gostava
mais dela. Não tinha como recuar, estava aferrado a velhos
princípios, a coisas como dignidade, palavra empenhada. Namoramos
tantos anos, desde adolescentes, quando achei que ela me
acompanharia, cresceríamos juntos.
Uma
decisão no momento exato; ela me faltou. O medo do não. O fascínio
que eu tinha por ele. Estranho mecanismo interno o meu, retardado,
funcionando como se houvesse uma diferença de fusos horários.
Adelaide era boa amiga, mas eu não precisava ter-me casado com ela.
O que pretendo provar agora?
Sempre
aceitei este casamento como fato normal, nunca reagi contra. A gente
nem sempre faz as coisas que gostaria, mas termina se adaptando a
elas. Desde que consinta. O pior é o consentimento. A aceitação
passiva do princípio de “que nem tudo na vida é como a gente
quer”. Mas tem de ser.
Gostava
dela, mas era somente um vácuo dentro da solidão. Nunca preencheu
nada, não foi essencial. Pensei muitas vezes nisso. Se ela
desaparecer não vou sentir sua falta, tudo continuará igual. Ela
não era indispensável. Não é um consolo pensar nisso, me
inquieta. Por ela, e por mim.
Minha
indiferença serviu para torná-la, aos poucos, mulher amarga e
desesperançada. Sem horizontes, nenhuma promessa de futuro. Agora,
sem nenhum apoio. Ela tentou construir um lar dentro desta casa.
Jamais participei dele, me isolava, parece que não queria me
comprometer, me assumir. Para estar em disponibilidade, poder largar
tudo a qualquer hora e fugir. Desde moço tenho essa necessidade.
Estar
pronto para partir. Não querer nunca o mesmo lugar, renovar-se
incessantemente. Escapar de tudo, desprender-se, me atirar. Para
longe, encontrar um lugar onde ninguém me encontrasse.
Não
penso mais. Sei. Não há mais o longe, o perto. Não há fuga, nem
refúgios, tudo foi devassado. Sinto em mim estranha nostalgia.
Antiga, muito antiga. Não dos tempos em que meus bisavós furavam o
sertão do Mato Grosso, ou do Paraná. Mais para trás. Muito mais.
De tempos em que eu ainda não era.
O que
faço com a disponibilidade? Sei apenas que, se não fosse o furo na
mão e toda essa situação, eu jamais fugiria. Estaria ali, vendo
televisão. Olhando Adelaide a costurar um tapete, a limpar o pó dos
móveis, a embrulhar calendários, e reclamando dos carecas que batem
pedindo comida, água.
Ao descer
da cama, bati com o pé no urinol. A urina derramou-se pelo soalho,
espalhou-se. Passei um minuto num brinquedo infantil observando as
manchas que fazia, desenhos que formava, tentando adivinhar o que
podia ser. Árvore, bicho, nuvem, montanha, pedra, navio. Ou então,
nada. Formas sem forma.
A mancha
se tornou verde, espessa. Sem nenhum contorno. No meio dela, a
mover-se, outra mancha, marrom, comprida. Me deixou inquieto, me
imobilizou. Tenho medo, dizem que um dos sintomas do enfarte é a
imobilidade, principalmente nos braços. Por alguns segundos, a
mancha desaparece, vejo a urina.
Adelaide
levantou-se. Saiu do quarto sem fechar a porta. Nunca, nos anos de
casados, nenhum dos dois deixou a porta aberta quando entrava ou
saía. Nenhuma outra pessoa, parente ou não, entrou no quarto,
espécie de lugar secreto, refúgio. Santuário nosso, não
ultrapassado, inviolado.
– Vamos
embora logo. Ou não compramos nada hoje – disse ela ao voltar.
– Vai
você. Não tenho vontade.
– Vai
você, vai você. É só isso que sabe dizer agora?
– E se
a gente não for? Precisamos de alguma coisa?
– Como?
Não quero pensar nisso. A gente já vive tão apertado. Eu não
suportaria viver na Marcação. Você viu o que aconteceu com a prima
de dona Alcinda! E ela só deixou de comprar duas semanas seguidas
porque estava doente. Não, Souza! Vamos, que eles não aceitam
desculpas. Nem que seja para trazer um saquinho de sal.
Um
inferno sair na segunda-feira. A neblina baixa, as pessoas andando
devagar. E o sol. Não há nenhuma sombra para me abrigar, a cabeça
arde, como se eu tivesse levado uma tijolada. Na frente de algumas
casas, as árvores. Pintadas em grandes painéis plastificados,
coloridos. São os Jardins Representados.
Qualquer
um pode comprar. Paga por metro quadrado. Costumam colocar diante das
janelas, para se ter a impressão que olhamos o verde. Outros,
vaidosos, mantêm os painéis de frente para a rua. Sinais de status,
são caríssimos, principalmente os tridimensionais. Ou os
naturalmente aromáticos.
Adelaide
caminha um pouco à frente. Tem vergonha do furo na mão. Claro que
tem. Hoje ela me detesta porque resisti ferozmente às faixas, ao
bandeide. Para não mortificá-la muito, fico com a mão no bolso, a
fim de evitar a curiosidade. Mesmo assim ela está ressentida. Assume
e me evita.
O
Distrito das Compras é vertiginoso com um calor destes. Os ônibus
circulares-consumistas despejam multidões. Os Privados das Compras
se amontoam junto às cercas-limites, estendendo a mão com dinheiro,
pedindo mercadorias aos que entram. Muita gente vive disso. Fornecer
compras ilegais aos Privados.
Os
Privados são uma categoria que conseguiu a isenção para o dia de
obrigação de consumo. O problema é que, com a isenção, eles têm
de se restringir às pequenas lojas, nos próprios círculos em que
moram. Não podem se utilizar dos serviços amplos do Distrito de
Compras, onde há tudo.
Para ser
Privado, basta comprovar o rendimento mínimo anual de treze
salários. Acontece que os Privados, às vezes, economizam e correm
para as cercas, tentando obter produtos raros. Como as frutas
factícias orientais: figos secos, tâmaras, passas. Ou qualquer
coisa que não me ocorre.
Ficam
gritando, implorando, estendendo dinheiro, vales, enquanto os
interceptadores atendem, anotam. Tudo na base da confiança. O
interceptador compra e vai levar em casa. Leva mesmo. Age na base dos
códigos de ética dos antigos bicheiros, o código que regia o jogo
antes do Bicho ser legalizado.
Se o
inspetor apanha alguém passando mercadoria sobre a cerca, não se
sabe o que pode acontecer. Porque não se encontra mais a pessoa.
Penso às vezes que estou vivendo dentro de um sonho, um situação
imaginária, surrealista, um balão de gás que pode explodir de um
momento para outro.
Vejo,
misturados na cerca, os carecas, os despelancados e também uma gente
que nunca tinha visto antes. Têm os olhos quase fechados, cheios de
remelas, como se os globos estivessem inflamados. Me dão mal-estar.
Todos se comprimem, gritam. Sinto-me um privilegiado, porém isso não
me afeta.
O
Distrito é um tormento. As pessoas parecem gostar. Riem, se
divertem, se encontram, bebem, falam alto, entram nas lojas,
amontoam-se. Há uma atração neste Distrito, não há dúvida. As
galerias são frescas, acondicionadas, luzes naturais filtram-se
através dos telhados de vidro.
O prédio
a que temos direito ainda não atingiu a Cotação Limite. A fila
quase não para, a entrada é contínua. Quem não tem direito não
vem mais. No começo, as pessoas tentavam entrar, furar filas,
provocavam congestionamentos e tumultos. Agora, desistiram. Em pouco
tempo, estamos dentro.
Iluminadas
por luz natural, as lojas não têm teto. Economia de eletricidade.
Já se foi o tempo dos grandes luminosos, das orgias de placas a
néon. Quando a última hidroelétrica parou por falta de água, o
Reator Nuclear das Caatingas começou a funcionar, fornecendo energia
para o país inteiro.
Houve
problema com as linhas de distribuição por cima da reservas
multi-internacionais. O Esquema não conseguiu autorização, tiveram
de fazer linhas subterrâneas, bem fundo no solo, para não
prejudicar a fertilidade das terras estrangeiras. Custou caríssimo;
impuseram novos impostos.
– Pensei
em comprar uns cheiros – disse Adelaide.
– Vamos
procurar um Cheiro de Fim de Tarde.
– E
também um de Água na Terra Seca. Era tão bom. Um dia quente, o pó,
vinham aqueles pingos, batiam forte, o pó subia, o cheiro também.
– Estão
em falta – disse o caixeiro.
– Do
que tem?
– Folha
Seca, Folha Podre Úmida, Eucalipto no Fim da Tarde, Coqueiro,
Flores, Verduras, Café Torrado, Papel Novo, Algodãozinho, Chá
Mate, Bosta de Vaca, Leite Queimado na Chapa. Pão de Forno, Serraria
Depois de Cortar Tronco de Cedro, Alfazema, Jasmim, Igreja na Hora da
Bênção, Sanitário Limpo de Cinema, Moça que Tomou Banho com
Sabonete, Roupa Passada, Jatobá Aberto, Frango Assando, Jaca, Hálito
de Criança Após Escovar o Dente. E mais uns duzentos.
– Nacionais?
– Só o
Bosta de Vaca, o Roupa Passada, o Gás de Escapamento e o Quarto
Fechado Há Longo Tempo.
Compramos
três sprays. Leite Queimado na Chapa, Serraria Depois de Cortar
Tronco de Cedro e Carvão Queimado na Fornalha de Locomotiva. Meu avô
forneceu muita lenha para a estrada, posso reconstituir o cheiro do
vapor a hora que quiser. Ficava à beira da linha enquanto carregavam
o Tender.
– Você
viu? Coisa horrível.
– O
quê?
– Os
mutilados!
– Não,
onde?
– Dobraram
por aquela galeria. Não tinham braços, um buraco só no lugar do
nariz, orelhas imensas. Pareciam bichos. O engraçado é que eram
absolutamente iguais, os dois. Como deixam entrar?
Na Boca
de Distrito, o fiscal carimbou “Compras Cumpridas”. Salvos por
mais uma semana. Enquanto esperávamos o ônibus, eu tinha a mão em
pala diante dos olhos. O sol, atravessando o furo, produzia no chão
um círculo de luz, mais mancha que círculo, de tal modo a sobra
estava diluída.
Movia a
mão para cima e para baixo. O círculo aumentava, diminuía. De
cócoras, brinquei com a luz. Ela atravessava a minha mão. Gostei
dessa imagem, a luz que traspassa minha mão e forma um símbolo.
Claro, aquele pequeno círculo podia ser um meio, um sinal
transmissor. Ter um sentido. Ser aviso.
Nas
catedrais, muitas vezes, eu passava horas observando o lento caminhar
da luz através dos orifícios das abóbodas. Até que chegava o
momento em que o sol, batendo direto sobre o altar, iluminava o
sacrário. Devia haver naquilo mais do que uma coincidência. Era uma
intenção deliberada.
Podia ser
homenagem, a luz aos pés do divino. Podia ser a confirmação de que
Deus é luz. Também podia representar uma mensagem qualquer que os
iniciados entenderiam. Mensagem que atravessaria milênios e seria
sempre captada, não importa em que época ou tempo. Essa história
de iniciados me revolta.
Haveria
sempre homens capazes de decifrar alguma coisa contida neste círculo
de luz. Sensação de conforto e paz. Isso eu sentia naquelas
catedrais europeias, sentado no banco, contemplativo por horas e
horas, a observar o movimento tênue, imperceptível daquela luz em
direção ao sacrário.
Harmonia
em busca de um objetivo. Sempre alcançado. Todos os dias, há
séculos, a luz, variável segundo a época, percorria o seu trecho,
batendo primeiro no chão da nave. Continuando, alcançava o altar na
hora determinada. Engraçado, agora penso naquilo com uma impressão
desagradável: no imutável que representava.
Ao mesmo
tempo, era a certeza do imutável nas grandes coisas do universo. No
seu funcionamento, na sua estrutura. Será que ainda hoje aquela luz
percorre um trecho idêntico, à mesma hora, com igual intensidade?
Será que esse imutável já não foi alterado? Daria tudo para estar
de novo nas catedrais.
Há
várias noções de imutáveis, portanto. A primeira, ampla, geral,
necessária, que é do próprio universo, intocável. A outra, dos
pequenos sistemas que nós mesmos construímos e que necessitam de
alterações, ajustes de tempos em tempos, a fim de se adaptarem à
ordem constituída, maior, soberana.
Ou me
confundo? Não sei. Ando sem clareza em relação à situação. Onde
fica o homem dentro disso tudo? Qual a sua função dentro da
natureza, do universo? Ele rege ou é regido? E esse esforço
tremendo que o homem fez durante séculos para ser o dominador, o que
detém o poder?
Teria o
homem ido além, ousando alterar a estrutura interna do universo?
Modificá-la, sem antes sequer compreender, ou dominar, as pequenas
estruturas que somadas formam o nosso mundo? Quer dizer: ele ainda
não estava preparado para a grande modificação e cometeu um grande
erro. Em algum ponto.
Ignácio
de Loyola Brandão, in Não verás país
nenhum
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