sexta-feira, 9 de agosto de 2019

Robert de Niro


Miguel de Cervantes levou dez anos para escrever a segunda parte de Dom Quixote de La Mancha. Nestes dez anos, a primeira parte ficou famosa. De sorte que, quando o cavaleiro e seu fiel Sancho Panza retomam suas aventuras pelo mundo, é o mesmo mundo do primeiro volume, mas com uma diferença importante: neste mundo existe um livro publicado e muito comentado sobre as aventuras de um certo fidalgo chamado Dom Quixote de la Mancha e seu escudeiro, do qual o próprio Dom Quixote, tornado famoso pelo livro, ouve falar, embora não chegue a ler. As alucinações do Dom no primeiro volume tomam forma e o assolam de verdade no segundo, em grande parte porque, depois da publicação do primeiro volume, suas humilhações são esperadas, e provocadas, pelo público. E assim, como observou o escritor Martin Amis num comentário sobre a obra, o aristocrata enlouquecido pela literatura que se transforma no seu próprio personagem andante num mundo irreal, do primeiro volume, enfrenta uma realidade enlouquecida pela literatura, no segundo. Como o próprio Cervantes, que quando escreveu o segundo volume já não era o mesmo escritor, era o mesmo escritor tocado pelo sucesso da primeira parte, portanto com outra relação com seu personagem — e com a realidade.
Acho que o Borges tem um conto sobre a impossibilidade de desenhar um mapa cem por cento fiel do mundo e dos seus habitantes, pois o último homem desenhado teria que fatalmente ser o desenhista fazendo o desenhista fazendo o desenhista fazendo o desenhista fazendo o desenhista... O que impede que um filme com o, digamos, Robert de Niro seja um retrato cem por cento fiel, absolutamente realista, dos Estados Unidos? O fato que, nos Estados Unidos retratado no filme, não existe um ator chamado Robert de Niro, pois só isso explica que o personagem do Robert de Niro possa andar em qualquer lugar, no filme, sem que alguém grite “Robert de Niro!”, e peça o seu autógrafo, ou comente a semelhança do personagem com o ator, estragando toda a trama. O que isto tem a ver com o Dom Quixote de la Mancha, Borges ou o que quer que seja, pergunta você? Estou surpreso de você ter chegado até o fim deste texto, quanto mais de ainda fazer perguntas. Não posso responder. Eu não estou aqui desde a terceira linha.
Luís Fernando Veríssimo, in Banquete com os deuses

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