Miguel
de Cervantes levou dez anos para escrever a segunda parte de Dom
Quixote de La Mancha. Nestes dez anos, a primeira parte ficou
famosa. De sorte que, quando o cavaleiro e seu fiel Sancho Panza
retomam suas aventuras pelo mundo, é o mesmo mundo do primeiro
volume, mas com uma diferença importante: neste mundo existe um
livro publicado e muito comentado sobre as aventuras de um certo
fidalgo chamado Dom Quixote de la Mancha e seu escudeiro, do qual o
próprio Dom Quixote, tornado famoso pelo livro, ouve falar, embora
não chegue a ler. As alucinações do Dom no primeiro volume tomam
forma e o assolam de verdade no segundo, em grande parte porque,
depois da publicação do primeiro volume, suas humilhações são
esperadas, e provocadas, pelo público. E assim, como observou o
escritor Martin Amis num comentário sobre a obra, o aristocrata
enlouquecido pela literatura que se transforma no seu próprio
personagem andante num mundo irreal, do primeiro volume, enfrenta uma
realidade enlouquecida pela literatura, no segundo. Como o próprio
Cervantes, que quando escreveu o segundo volume já não era o mesmo
escritor, era o mesmo escritor tocado pelo sucesso da primeira parte,
portanto com outra relação com seu personagem — e com a
realidade.
Acho
que o Borges tem um conto sobre a impossibilidade de desenhar um mapa
cem por cento fiel do mundo e dos seus habitantes, pois o último
homem desenhado teria que fatalmente ser o desenhista fazendo o
desenhista fazendo o desenhista fazendo o desenhista fazendo o
desenhista... O que impede que um filme com o, digamos, Robert de
Niro seja um retrato cem por cento fiel, absolutamente realista, dos
Estados Unidos? O fato que, nos Estados Unidos retratado no filme,
não existe um ator chamado Robert de Niro, pois só isso explica que
o personagem do Robert de Niro possa andar em qualquer lugar, no
filme, sem que alguém grite “Robert de Niro!”, e peça o seu
autógrafo, ou comente a semelhança do personagem com o ator,
estragando toda a trama. O que isto tem a ver com o Dom Quixote de la
Mancha, Borges ou o que quer que seja, pergunta você? Estou surpreso
de você ter chegado até o fim deste texto, quanto mais de ainda
fazer perguntas. Não posso responder. Eu não estou aqui desde a
terceira linha.
Luís
Fernando Veríssimo, in Banquete com os deuses
Nenhum comentário:
Postar um comentário