Em
muitas de suas fotografias, Marcel Proust aparece vestido com um
clássico e frondoso sobretudo. Evitava dele se afastar: era seu
casulo. Usava-o mesmo quando estava em casa, sozinho, debruçado
sobre seus escritos. O casaco foi uma espécie de escudo protetor,
último recurso de um homem hipersensível para se contrapor aos
golpes do real.
Um
século depois, a jornalista italiana Lorenza Foschini, autora de
Sobretudo de Proust (Rocco, tradução de Mario Fondelli),
reencontra o célebre sobretudo guardado em uma caixa de papelão no
Museu Carnavalet, em Paris. O museu é dedicado à preservação da
história da capital francesa; Marcel Proust é, ainda hoje, a alma
da cidade.
Descreve
Lorenza, sem dissimular o espanto: “O sobretudo está diante de
mim, acomodado no fundo da caixa, em cima de uma folha branca que
quase parece um lençol, enrijecido pelo forro de papel que a
preenche: parece realmente vestir um morto”. Das mangas, como
lagartas, saem tufos de papel de seda. O casaco parece estufado, o
que reafirma a presença perpétua de Proust em seu interior.
Descreve Lorenza ainda: “Tenho a impressão de estar vendo um
boneco sem cabeça e sem mãos”. Tão vivo quanto o próprio
escritor a quem vestiu, o sobretudo resiste como um destroço.
É
trespassado na frente e fechado por uma fileira dupla de botões.
Aflita, Lorenza o desabotoa, em busca de algum segredo – talvez um
rasto do espírito do escritor. Nada encontra. Nervosa, chega a
revistar os bolsos, mas só esbarra com o vazio. O que, na verdade,
ela encontra? A morte de Marcel Proust, sua ausência definitiva –
buraco de que o sobretudo é uma casca. Em uma das laterais da caixa,
só então, ela percebe a inscrição fria: “Sobretudo de Proust”.
Lorenza agradece ao diretor do museu, Jean-Marc Léri, e se vai. Como
se saísse de um velório que atravessasse um século.
Dentro
do sobretudo, Lorenza já sabe enquanto desce as escadarias do museu,
se guarda não só um fantasma, mas um livro. O livro que agora estou
a ler. Conta a história do célebre casaco, que, mais que uma peça
de roupa, é uma relíquia. Quase sagrada, ou talvez sagrada mesmo –
se alteramos um pouco a ideia de sagração.
Logo
após a morte de Proust, em 1922, o sobretudo foi recolhido por seu
irmão, o doutor Robert Proust, famoso cirurgião parisiense, que
também se tornou o responsável por seus manuscritos. Eles incluíam
longos trechos inéditos de La recherche. Esses manuscritos,
assim como o casaco, foram parar, mais tarde, nas mãos do
colecionador e industrial do perfume, Jacques Guérin. Relíquias,
assim como almas perdidas, percorrem tortuosos caminhos até
encontrarem seu descanso.
Em
torno da história do sobretudo, o livro de Lorenza traz à cena
outros célebres personagens da intelectualidade parisiense, como
Violette Leduc, Pablo Picasso e Erik Satie. É Paris, um pouco, que
ressuscita naquele casaco. Essas celebridades, contudo, simplesmente
murcham diante da peça de roupa perdida em que Proust se escondeu ao
longo de tantos anos e dentro da qual – como um bicho-da-seda em
seu casulo – produziu seu tesouro. Hoje, observado por olhos
distraídos, não passa de um invólucro qualquer. Uma velharia. Não
é qualquer um que consegue enxergar, naquela roupa roída pelo
tempo, a presença perpétua de uma alma.
O
pequeno livro de Lorenza segue o fascínio dos historiadores
contemporâneos pela história das miudezas. É escrito no estilo de
um falso romance, mas pode ser também (e talvez seja mesmo) uma
reportagem. Não importa. Em associações rápidas, ele evoca outras
peças do vestuário de grandes escritores de que só com dificuldade
separamos seus donos. Invólucros também, em que alguns nacos da
vida se perpetuam.
Penso
no célebre turbante de Simone de Beauvoir. Na peruca (ou falsa
peruca, pois os cabelos também enganam) que certa vez avistei, como
folhas murchas, escorrendo na cabeça da portuguesa Agustina Bessa
Luís. As batas esvoaçantes e exageradas de Vinicius de Moraes, em
sua temporada baiana, e também de Hilda Hilst, em seu sítio místico
de Campinas. O antigo colete de cavaleiro do apocalipse usado na
Normandia, em seus últimos dias, pelo francês Alain Robbe-Grillet,
paradoxalmente, chefe da escola do Novo Romance.
Os
ternos impecáveis de José Saramago. As camisas amarfanhadas de
Nelson Rodrigues. As echarpes elegantes que ainda hoje Lygia Fagundes
Telles, como uma rainha, desfila pelas livrarias de São Paulo. Os
cabelos longos e inacreditáveis de Ferreira Gullar, que evocam
poetas que o precederam, mas, de certo modo, desmentem seus versos.
As bermudas vagabundas de João Antônio.
A
lista dessas pequenas intimidades é interminável. São detalhes,
quase desprezíveis, a que poucos atribuem importância e que,
talvez, não mereçam importância mesmo. Contudo, observados de
certa perspectiva, eles anotam um estilo. M ais que um estilo: se
parecem com os selos de cera que, no passado, vedavam as cartas
secretas.
São
sintomas, na verdade, de corpos – manifestações sutis, em uma
cabeça, um pescoço, um tronco, uma perna, sinais de alguma coisa
que, antes delas, já se apresenta na obra. São expressões, talvez
vícios, como no caso de Proust, e, no entanto, é preciso levá-las
a sério. Uma fotografia de Marcel Proust com seu sobretudo tirada em
Evian no ano de 1905 resume o que tento dizer. Ali está um estilo,
não porque esteja escrito, mas porque está vestido. Porque toma a
frente da cena e transforma seu portador em um segredo. Uma parte,
portanto, da própria ficção, que nada mais é do que a arte de
ocultar mostrando.
Proust
fez de todos nós, como observou William Sansom, “computadores
ambulantes, carregando conosco as gravações do passado”. Não
passamos, talvez, de filmes projetados do nosso passado que,
capturados no presente, destinam a nós, sim, a nós mesmos, homens
de carne e osso, e não a peças lendárias como o sobretudo, um
aspecto irreal. Poucas coisas são tão reais, ainda hoje, quanto o
sobretudo de Marcel Proust. Ele carrega dentro de si não um homem,
mas um mundo que jamais perderemos.
José
Castello, in Sábados inquietos
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